Responsável pela Igreja Apostólica Ortodoxa Antioquina no Centro-Oeste, padre Rafael Magul defende que o ser humano lembre o exemplo de humildade de Cristo no Natal

Protopresbítero padre Rafael Magul, responsável pela pastoral do Centro-Oeste da Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina | Foto: Fábio Costa/Jornal Opção

Esperançoso de que as pessoas se aproveitarão do espírito caridoso e solidário que o Natal costuma trazer às famílias, o padre Rafael Magul, protopresbítero responsável pela pastoral do Centro-Oeste da Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina, deseja que o ser humano se espelhe no exemplo de Jesus Cristo para reencontrar o caminho da humildade e da doação. “O objetivo é viver a unidade entre o humano e o divino. Natal nos lembra desta unidade, porque Jesus se fez homem para nos mostrar qual é o caminho da dignidade. Ele humanizou.”

Aos parentes que brigaram durante o período eleitoral na defesa de um ou outro candidato, o padre Rafael afirma que o Natal é um bom momento para acalmar os ânimos e deixar para trás palavras agressivas e discussões passadas. “Como disse São Paulo aos colossenses, Natal é o momento de deixar a raiva, a maldade, as palavras obscenas. É o momento de nos revestirmos do homem novo. O que é um homem novo? Um homem que perdoa. Quem mais sofre é quem não sabe perdoar. Se eu não perdoo, o outro também não está nem aí, mas eu sofro porque não sei perdoar. Natal é um momento de reconciliação”, pontua.

Marcelo Mariano – Como estão os preparativos da igreja para o Natal? Quais são as diferenças entre a Igreja Católica Ortodoxa, a Igreja Católica Romana e as evangélicas, que são as mais tradicionais entre os brasileiros?
Nós começamos uma preparação que se chama tempo de advento e vai de 15 de novembro até o Natal. São 40 dias nos quais a igreja nos prepara com oração, jejum, leituras espirituais. Porque nós consideramos o ser humano em mente, corpo e espírito. Para celebrar o Natal, precisamos prepara o ser humano em si. O corpo se prepara com uma vida saudável, com o jejum, porque justamente as comidas saudáveis ajudam o estado espiritual. Então fazemos 40 dias de jejum [Jejum da Natividade].

O Senhor Jesus Cristo nos ensinou que um espírito maligno só sai com oração e jejum. Sempre a igreja pregou e demonstra o quanto é importante para cuidar do corpo o jejum, a alimentação. E a alimentação não passa só por alimentar o corpo, mas também o espírito. Por isso de nada vale fazer jejum sem participar das celebrações, da eucaristia. O povo participa também da eucaristia aos domingos e nas distintas celebrações. Preparamos o espírito por meio da oração. Jejum e oração. E preparamos nossa mente por meio das leituras, as leituras bíblicas, mas também espirituais, da patrologia – dos padres da igreja -, que iluminam nosso caminho e nossa visão do mundo.

Preparamos também os líderes, que me acompanham no grupo, com objetivo espiritual, o que fizemos em Ipameri (GO). Um grande desafio que encontramos na igreja é formar formadores, ter dirigentes, ter líderes. Por isso, nós fazemos o caminho de Jesus. Estamos com a multidão, estamos os apóstolos, que seriam os líderes, e estamos com o que nos ilumina. O padre que tampouco reza, faz disso vida espiritual e não tem Deus em seu coração, como vai passar Deus para os demais? O padre também tem de ter uma vida espiritual. Isso é o que nós fazemos para nos preparamos para o Natal.

Natal é tempo de renovação, esperança, vida nova e o caminho para chegar ao mais transcendente que há no ser humano, que é a ressurreição. Nascer qualquer um nasce, mas ressuscitar só o que é divino e o que chega a viver com dignidade. O ser humano se une a Deus no que nós chamamos em grego “theosis”, que é a divinização. O objetivo é viver a unidade entre o humano e o divino. Natal nos lembra desta unidade, porque Jesus se fez homem para nos mostrar qual é o caminho da dignidade. Ele humanizou.

E para humanizar tudo, Jesus mostrou um caminho. Qual é caminho? Nasceu numa manjedoura, em um presépio, um lugar humilde, para mostrar-nos que a primeira e essencial virtude de um ser humano é a humildade. Por isso, na Páscoa da Ressurreição temos o domingo que antecipa como o Domingo de Ramos. Jesus entrou no reino dos céus montado em um burrinho. Como rei dos céus, mas montado em um burrinho. Para mostrar-nos de novo que o caminho a viver a ressurreição de Cristo, a grande festa dos cristãos, é a humildade.

Hoje o Natal, por consumismo, tomou uma notoriedade maior do que a Páscoa. Na verdade o Natal nos prepara para a Páscoa. O que temos de agradecer à cultura de hoje é que o Natal nos sensibiliza. Natal sensibilizou tanto as pessoas que o povo se volta mais solidário e pensa no outro, “tenho que deixar algo de mim”. E isso também é algo que tínhamos quando morávamos em Buenos Aires (Argentina), onde estivemos por dez anos e tive a bênção de trabalhar com o papa Francisco por três anos, que naquele momento era bispo, em uma comissão ecumênica. Ele pregava e dizia: “Nós só doamos. Quando você doa, você tem de sentir que algo sai de você”. Por isso Francisco dizia que se você doa não é só dar, mas que a outra pessoa sinta o calor humano, que saia algo de você. Dar o que sobra não serve.

Natal nos lembra, também, o que Basílio, o Grande, pregou: “Se realmente nós somos cristãos e o homem se conformasse com o que precisaria para viver, não haveria ricos nem pobres”. Um dos grandes desafios que temos hoje é a distribuição das riquezas, a falta de inclusão das pessoas. Se o Natal nos volta a lembrar como um ato de consciência. Por isso dizemos que o Natal também é paz. Quando chega o Natal e se diz que há a sensação de dever cumprido neste ano, o Natal se associa com felicidade, porque quando alguém está em paz é feliz.

Quando eu não posso dormir a noite é porque não estou em paz. Quando se está em paz dorme tranquilo. Por isso os franceses diziam que o melhor travesseiro do ser humano é a consciência. Natal serve a nós como um elemento de consciência: até aqui, onde chegamos, aonde vamos? E então valorizar o sentido da vida. Natal nos lembra também quão importante é o sentido da vida. Estamos aqui com uma missão. Cada um de nós tem de descobrir. Um como jornalista, outro padre, outro como médico.

Natal nos lembra que ser cristão não é ser mercenário. Quando Jesus nos fala do bom pastor, que dá a vida por suas ovelhas. E o que dizia Max Weber, que eu sempre repito, é que o nosso grande desafio é viver de ou viver para. Natal nos lembra que temos de viver para o ser humano, porque Jesus nasceu para o ser humano, para levantar-lhes, para mostrar um caminho diferente, que é a divinização. Mas o primeiro passo para ser divino é ser humano. Como falar a ele de Deus se eu primeiro não sou humano, se eu não sento com ele, se eu sou indiferente, se eu sou hipócrita ou falso com ele?

Por isso entra um dito famoso de Santo Agostinho: “Ama e faz o que quiseres”. Porque é honesto, não rouba, não é falso, não é hipócrita, não toma o que não é dele. O que ama como um pai e uma mãe. Natal nos lembra justamente a imagem de José e de Maria: José pai, Maria mãe e Jesus menino. Se temos a imagem do coração de pai, coração de mãe e se somos como um menino, honesto, íntegro, o mundo vai ser diferente. Que pai não vai dar aquilo que não tem a seu filho? Que mãe vai ser diferente?

Augusto Diniz – O sr. citou o coração grande de pai e mãe às vésperas do Natal e acabamos de passar por um período conturbado com famílias brigando por motivos políticos e eleitorais. Como o sr. acredita que será a ceia e o almoço de Natal das famílias que brigaram durante a eleição? O que é preciso fazer para que os parentes se reconciliem no período natalino?
Natal é tocar o coração das pessoas. O amor sempre vence. Como disse São Paulo aos colossenses, Natal é o momento de deixar a raiva, a maldade, as palavras obscenas. É o momento de nos revestirmos do homem novo. O que é um homem novo? Um homem que perdoa. Quem mais sofre é quem não sabe perdoar. Se eu não perdoo, o outro também não está nem aí, mas eu sofro porque não sei perdoar. Natal é um momento de reconciliação.

Natal é o momento em que teremos que identificarmos com a imagem verdadeira do Natal, que é José, Maria e Jesus. Infelizmente a situação nos colocou em uma situação em que tivemos que tomar partido por um ou outro. Mas temos de começar a pensar com maturidade. Que maturidade? Viver o amor. E o que é o amor? É aceitar ao outro como ele é. Se pensa diferente, tomar o diferente e crescer com ele.

É o que disse Gibran Khalil ao afirmar que o amor é crescer juntos, não um à sombra do outro. E crescer com a diferença. Nós aqui não somos um e pensamos igual. Não somos. Mas o amor é aceitar o outro como ele é. Quando eu coloco condição ao outro já não é o amor, é um poder a mais, já quero vencê-lo. Minha ideia é mais forte. Como dizia Platão, a verdade está com o mais forte. E até hoje, mais de 2 mil anos depois, é a que está funcionando. Mas nós estamos aqui para servir, como dizia Jesus. O que quer ser você em primeiro lugar, que seja servidor de todos. Não há coisa mais bonita do que nos sentirmos úteis.

Ganhou Bolsonaro, ganhou Haddad, ganhou outro, o importante é quem ganha. Ganhamos todos quando nos unimos em um mesmo ideal. E o ideal é pensar que o amor é o que vence. Se hoje foi eleito Bolsonaro, daqui quatro, oito ou 16 anos outra pessoa estará no poder. Impérios caíram. Um presidente não vai ser maior do que um imperador. É importante que saibamos que estamos em uma cadeira transitoriamente. As cadeiras passam, fica a instituição. E é o que temos de pensar.

As pessoas vão passar, mas fica o Brasil, a nossa nação. Pensar o Brasil como um todo, não como uma parte. Sair do nosso conforto. Esse é o grande desafio. Se a pessoa está acomodada, este é o momento para desacomodar. Vamos juntar todas as peças e pensar em um Brasil melhor. Na família é a mesma coisa, o que está acomodado precisa começar a pensar em um projeto de família que não é sozinho. Você não é o todo, mas parte de uma engrenagem. E que juntos podemos fazer um mundo melhor, mais justo, mais solidário, um Brasil em que exista inclusão, igualdade de oportunidade para todos e todas. Um Brasil em que cresçamos e haja menos pobres, menos injustiças sociais.

Evita Perón dizia que não haverá paz entre os homens enquanto existir injustiça social. Hoje o que estamos vivendo não é nada novo. Caim matou Abel por inveja, por ciúme. Jesus tinha ideia clara quando dizia deixemos para trás ciúme, inveja, raiva, mentira. Revistamo-nos do homem novo. Se nos revestirmos desse jeito a humanidade será diferente.

Marcelo Mariano – O sr. comentou que o Natal se tornou uma data consumista, em que muitas pessoas se esquecem do real sentido do Natal e se concentram em dar e receber presentes. O que a igreja tem feito para tentar resgatar o espírito do Natal?
Um dos caminhos, que graças a Deus nos ajuda, é o da solidariedade. Um dos exemplos que posso citar é uma palestra que fiz este ano sobre ação de graças. A entrada era um litro de óleo. Recebemos 1,2 mil litros de óleo. Talvez com cinco ou seis pessoas seja possível juntar essa quantidade de doações. Mas a ideia era fazer cada um sentir que algo estava saindo dele. A pessoa tem de pensar que o Natal é um tempo diferente. É preciso tocar o coração das pessoas. Só se muda o mundo quando as pessoas mudam. E as pessoas mudam quando você toca o coração deles.

Quando você toca o coração das pessoas se produz o que? Em Jeremias capítulo 31, versículos 31 a 34, diz que a nova aliança não se dará no corpo, se dará no coração. Para sair deste consumismo, nós temos de trazer fatos concretos pelos quais mostremos que Natal não é um shopping, que o presente de Natal não é um objeto material. Seria um gesto? Talvez. Quando escrevo uma carta para Augusto e lhe dou um bombom. O conteúdo que estou passando na carta é muito mais importante do que um relógio, uma calça ou uma camisa que eu dê de presente, porque estou dando o meu ser.

As pessoas têm de conscientizar-se de que o melhor presente para o outro é a pessoa, não uma matéria. Matéria passa. Você tem um objeto hoje, amanhã não mais. Por isso Gibran Khalil dizia que um tirano pode tirar tudo de você, menos a sabedoria. Os presentes hoje você tem, amanhã não. O vínculo que você criou com as pessoas sim.

“Nossa prioridade não é fazer com que um católico romano ou um evangélico seja ortodoxo. Queremos que os ortodoxos vivam sua fé”

Fotos: Fábio Costa/Jornal Opção

Marcelo Mariano – Os fiéis da Igreja Católica Ortodoxa são basicamente brasileiros sírios e libaneses ou têm brasileiros sem parentesco?
Aqui nós temos membros de origem ortodoxa antioquina síria, libanesa e palestina, gregos, ucranianos, russos e muitos poucos da Sérvia e outros países. A Igreja Ortodoxa tem muita presença nos países eslavos. Também temos alguns brasileiros que se convertem à ortodoxia, que encontram na ortodoxia um meio de santificação e salvação das suas almas. Originalmente, nossa Igreja Ortodoxa chegou aqui para atender os filhos de origem ortodoxa. Mas nossa igreja as portas a ninguém.

Nossa prioridade não é um tema de proselitismo, mas não fechamos a porta. Nossa prioridade não é fazer com que um católico romano ou um evangélico seja ortodoxo. Queremos que os ortodoxos vivam sua fé, porque se os ortodoxos puderem viver a sua fé podem cativar os demais. Primeiro se convertia ao cristianismo por ver como o cristão vivia a sua fé. Religião é fé e obra. Infelizmente, hoje estamos vendo e vivendo o relativismo, onde parece que tudo vale. A ortodoxia é vida. E a igreja é vida.

Augusto Diniz – A ideia do Cristo caridoso, Cristo de coração, se perdeu na disputa entre igrejas cristãs que querem ser as verdadeiras donas da fé ou representantes do cristianismo com o maior número de fiéis possível? Que momento a igreja vive hoje com essa disputa de quem tem o melhor cristianismo?
É um tema muito delicado e muito específico. Minha experiência me diz que quando uma pessoa precisa dizer que sua religião é melhor do que a outra ou menospreza a outra, sua fé está passando a ser um poder humano. Volto a dizer o que falei no princípio: a religião deve saber e pensar que eu tenho de viver em fé, abraçar a fé do outro, aceitar o outro como é, unindo-me ao outro na obra, na ação, e respeitar a sua crença. O que acontece, muitas vezes por falta de caridade – amor -, é que muitas vezes eu quero mostrar ao outro que eu tenho razão e que para você ser bom você tem de ser como a gente, você tem de pensar como a gente. O que deve unir todos os religiosos é a ação, o fato.

Por exemplo, temos católicos romanos que lotam as igrejas, ortodoxos que, graças a Deus, lotam as igrejas, evangélicos que precisam até de estádios de futebol de tantas pessoas que vão. Imagine todas essas pessoas fazendo obra de bem no mundo. Há uma dicotomia entre o que falam e o que fazem. Esse é o grande desafio dos religiosos e dos formadores de opinião. Temos de tomar consciência e trabalhar mais aquilo que une. O que une não é só o que falam, mas o que fazem. Tenho de levar o idealismo à prática.

O pior que está acontecendo é que se ataca o idealismo. E não é por acaso. É o que chamamos na cultura pós-moderna de desfundamentação. A desfundamentação faz com que tudo o que é estrutura, todas as igrejas que são conservadoras não cresçam. Você acha que é por acaso? Nada acontece por acaso. É porque as pessoas, no fundo, não querem compromisso. Não se trata de pessoas, como sacerdotes, casadas ou não. Eu sou casado, tenho uma família.

Quem serve melhor? Quem serve melhor é que é mais íntegro, mais autêntico com sua vocação. Um médico, porque é casado, quando é médico de verdade, deixa de ser médico quando o chamam às 2 da manhã, deixa sua família e vai atender? Padre é igual. Se o fiel, às 2 da manhã, precisa, o padre deixa a sua família e vai. E a família acompanha. Porque se a família do médico não o acompanha ele se divorcia.

A família tem de ver que se vive como uma vocação, não como uma profissão. Não é um funcionário da comunidade, é um líder da comunidade. Cobra para fazer um batismo, cobra para fazer um casamento. Recebe e já cumpriu seu papel com aquela pessoa? Não. Ele é um pai. E como um pai, cuida de seu rebanho. E cuida com toda a família. Não se trata de um padre ser casado ou não, trata-se de ser autêntico com sua vocação. Minha esposa dirige o coral da igreja, me ajuda na contenção com os refugiados que vêm bater à porta, sírio, venezuelano ou haitiano. Nós acolhemos.

Temos todos os domingos uma família haitiana que vêm à igreja. Michel e Pablo. Os dois me ajudam na igreja. Não significa que o padre passa a ser um ideal. A função que faz do padre o ideal.

Marcelo Mariano – Como funciona o trabalho que a Igreja Ortodoxa faz com os refugiados?
Temos várias atividades realizadas com os refugiados. Tudo se resume a uma palavra: inclusão. Um vez perguntaram ao Michel [Magul, filho] em uma palestra: “Temos brasileiros com problemas e vocês se dedicam aos refugiados?”. Michel respondeu que se você não se dedica também aos refugiados você está deixando um problema para os brasileiros. E, por outro lado, quem disse que no futuro não podemos ser refugiados? Não temos de pensar em nós mesmos e nada mais. Temos de ser abertos.

Com o trabalho de inclusão, há acolhimento com carinho, tentamos dar aulas de português para ajudar na comunicação, buscamos com membros da comunidade procurar emprego para que tenham condição de se sustentar. De fato, vários já têm emprego. Por outro lado, alguns casos de moradia. Uma família refugiada é uma família que a igreja tem mais é de cuidar. Quando falo em igreja, não falo o padre Rafael. Eu falo o padre Rafael, o conselho paroquial, a Sociedade Beneficente Ortodoxa de Goiás e eu falo os membros comuns, que quando chegam dão comida, entram, tomam um café.

Por isso, organizei uma comissão na paróquia que se chama Acolhida Pastoral. Uma pessoa, quando vê membros novos, os acolhe, os recebe, os faz entrar, toma um café com eles para que se sintam em uma família. É isso o que temos de pregar, a sociedade uma só família. Nós homens dividimos e fizemos países e fronteiras, mas o mundo é um só. Hoje estamos em uma fronteira, somos Brasil, que tem em suas raízes valores cristãos. Suas raízes nasceram com valores e princípios.

Marcelo Mariano – Outro tema que envolve brasileiros e árabes é o posicionamento do presidente eleito Jair Bolsonaro em relação à embaixada do Brasil em Israel, que ele tem prometido transferir de Tel Aviv para Jerusalém. Como o sr. avalia esse anúncio e como ficam os cristãos que estão na Palestina?
Não sei que grau de compromisso Bolsonaro tem com o Estado de Israel. É um confronto sem sentido, porque até agora só dois países se manifestaram nesse sentido, os Estados Unidos e a Guatemala. É um tema que o presidente eleito deveria submeter ao Congresso se estamos em um país democrático. Se compra um desastre com os países árabes que são realmente amigos do Brasil, que contribuíram e que contribuem com a construção do Brasil.

A tal ponto que temos um presidente árabe, prefeitos árabes, deputados federais árabes, juízes árabes, desembargadores. O povo árabe não se considerou estrangeiro no Brasil, se integrou e aporta aqui. É muito injusto com o árabe. Compra-se um desaste desnecessário que ninguém exige. Bolsonaro tem de se dedicar na política internacional fundamentalmente aos mais próximos, que seria o Mercosul, fortalecer os vínculos com os países do Mercosul, Unasul, que precisam ser fortalecidas. E não comprar desgaste com algo que trará coisas positivas e negativas quando não há sentido.

Os árabes fizeram muito pelo Brasil e mereciam respeito. Aqui temos palestinos. E vemos que eles se integraram. Um tema tão delicado como esse, não só pela parte política e emocional, deveria passar ao menos pelo Congresso. Os árabes são muito importantes para o Brasil e somos gratos. Não sei que compromisso Bolsonaro tem com Israel e o que Israel irá aportar economicamente.

Na balança comercial brasileira, os países árabes são importantes compradores de carne, especialmente para a Região Centro-Oeste, o que é fundamental para o crescimento agropecuário do Brasil. Depois do anúncio, os países árabes estão analisando se continuarão a comprar carne brasileira. Tomar decisões que vão contra os interesses do próprio País é algo absurdo. Se vamos falar de política internacional, o Mercosul está aqui.

Fora de Israel, Argentina e Estados Unidos são os países com mais judeus. E na Argentina é onde a comunidade judaica mais pressiona. Por que a Argentina não tomou a mesma decisão? É preciso acompanhar o entendimento do Mercosul sobre o assunto.

Augusto Diniz – Até o momento, as declarações da equipe do futuro governo, inclusive do presidente eleito, são de enfraquecimento do Mercosul.
Marcelo Mariano – Como a Argentina tem visto o Bolsonaro?
É uma incógnita. Ninguém sabe. É como na Argentina, onde havia muita esperança no presidente Macri. O argentino hoje está esperando, porque Macri decepcionou toda a esperança que se colocou no presidente. É preciso aproveitar o momento de Bolsonaro de credibilidade, porque o Brasil precisa e quer mudança. Bolsonaro tem de aproveitar esse momento para criar bases e se consolidar para mudar a situação. Este é o momento de mudar.

O voto de confiança dado a Bolsonaro, que me desculpe, foi dado por muitos sem nem saber o que o presidente eleito pensa ou não. Durante a campanha ele não falou. O povo acreditou nos princípios básicos que o eleito lançou e na mudança. Não queriam mais o anterior, queriam algo novo. Bolsonaro tem de mostrar que é coerente com o que pregou, de que seria o novo. Que o execute com decisões coerentes.

“Árabe é uma pessoa grata ao Brasil, sente a necessidade de colaborar com o desenvolvimento do País”

Acompanhado do filho, o advogado e presidente do PSD Jovem, Michel Magul (direita), o padre Rafael Magul, da Igreja Ortodoxa, concede entrevista aos jornalistas Augusto Diniz e Marcelo Mariano | Foto: Fábio Costa/Jornal Opção

Marcelo Mariano – Os árabes na política brasileira estão nos diferentes espectros ideológicos. De Fernando Haddad a Michel Temer e Jandira Feghali, são inúmeros os árabes na política. Como o sr. analisa a presença árabe na política, não só no Brasil? Seu filho, Michel Magul, será o próximo árabe na política?
Não é o próximo, Michel já é. Tem uma atuação desde jovem no Diretório Central dos Estudantes (DCE), tratado por alguns da oposição como estrangeiro. Michel mostrou que é um deles e foi presidente do DCE por três anos, ocupa a presidência do PSD Jovem e é vice-presidente da Comissão Especial de Direito Internacional da OAB Goiás. Assim como Michel foram todos os outros políticos. Uma virtude do árabe é que árabe se integra. E se integra tanto que se desintegra.

O árabe não tem um partido árabe que apóia seus políticos com uma bancada de tantos deputados. Nós aceitamos justamente uma das maiores virtudes das pessoas que é a liberdade. Temos em distintos partidos políticos a presença de árabes. O árabe é uma pessoa grata ao Brasil, sente a necessidade de querer colaborar com o desenvolvimento do País. E se integrou ao ponto de termos um presidente de origem libanesa.

Marcelo Mariano – Enquanto o Líbano nem tinha presidente.
Exato. Durante três anos. Tivemos prefeitos de São Paulo: Haddad, Paulo Maluf, Gilberto Kassab. Em Goiás temos deputados federais, Marcos Abrão, Zacharias Calil, deputados estaduais. O árabe não é pertencente a uma – vamos chamar assim – tribo: se unem, fecham suas portas e são só eles. Pelo contrário. Se integram. Essa é a maior demonstração de integração e de identidade. Uma das crises que temos no Brasil é de identidade. Uma das identidades do árabe é ser grato, que nos ensinaram desde criança, amar o lugar onde nos dão oportunidade de crescer.

Michel nasceu na Argentina, hoje está no Brasil. Ele ama o Brasil porque o País lhe deu a oportunidade se desenvolver e crescer. Não significa que esqueceu suas raízes, mas aprendeu a valorar e amar o lugar onde está. Senão não seríamos coerentes. Em árabe há um provérbio que diz para amar o seu país e cada um com sua religião. Todos devemos amar o País, mas cada um com sua religião. No Líbano, por exemplo, temos um fato concreto. São 18 religiões oficiais e todas têm participação no governo. O que está sobre todas as coisas é o interesse da nação. A nação sobre todas as coisas.

É o que tem se falado hoje: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos. Mas não adianta só dizer, é preciso demonstrar. Se pensarmos que o Brasil está acima de todas as coisas, não faríamos hoje um acordo com Israel para trocar a embaixada.

Augusto Diniz – Gostaria que o sr. explicasse melhor o significado da frase “se integram tanto que se desintegram” ao falar sobre os árabes no Brasil.
Quando eu me integro à sociedade, eu me desintegro como tribo. Vou dar um caso concreto. Na Argentina, os armênios têm o clube, a igreja e a escola na mesma quadra. As pessoas não se integram, estão entre eles. Os judeus se casam entre eles. Em Buenos Aires, há um bairro que se chama Once, praticamente só de judeus. O judeu que se casa com uma mulher que não é judia passa a ser uma pessoa impura. Entre os árabes não existe isso. Você encontra facilmente um árabe e uma brasileira ou uma árabe e um brasileiro casados. O árabe se integra.

Aqui em Goiânia temos árabes em diferentes grandes clubes de futebol. Sérgio Rassi presidente do Goiás, outros no Vila Nova e no Atlético. Não fizeram um clube árabe e se fecharam entre eles. Pelo contrário, se abriram para todos. Ao se integrarem, se desintegraram como tribo.

Marcelo Mariano – O sr. já se encontrou com o governador eleito?
Estamos esperando que Ronaldo Caiado assuma a partir de janeiro, quando devemos tentar fazer uma visita e desejamos sucesso ao governador eleito. Assim como com os governadores Marconi e José Eliton, sempre tentamos ser coerentes e dissemos que o sucesso dos governantes é o sucesso de Goiás. O sucesso de Goiás é o sucesso do povo. Desejamos para Caiado o melhor, porque o melhor para ele será o melhor para nosso povo. E o povo são nossos filhos. E quando falo filhos não biológicos, mas os filhos que Deus nos encomendou.

Desejo a Caiado sucesso, que Deus o abençoe, que Deus sempre o ilumine e que sempre, igual a Bolsonaro, quando tomar decisões que sempre prevaleçam os interesses comunitários, não os interesses pessoais. Caiado é um grande profissional, já foi parlamentar, tem experiência e é um nome que tem boas intenções. Rezamos para que essas boas intenções sejam realidade. É essa realidade que vai mudar a realidade na qual vivemos dia a dia e que é melhor para o povo.

Marcelo Mariano – E um dos principais articuladores de Caiado é o prefeito Adib Elias, de Catalão.
Temos um vínculo muito forte pelo fato de eu ser o responsável pastoral por toda a comunidade árabe ortodoxa de Catalão até Brasília e toda a estrada de ferro, em cidades como Ipameri. O bom vínculo vem justamente porque tivemos a bênção de ganhar um terreno onde funcionará o Centro Pastoral São Elias. Somos muito gratos ao Adib. Como o prefeito mesmo disse no dia em que nos entregou o terreno, “o sangue não vira água, e o que nega suas raízes não tem raízes”.

E acreditamos que Adib é um homem de raízes. Em árabe dizemos “iben assel”, que significa filho com raízes. “Iben” significa filho e “assel” raízes. Quando queremos dizer que uma pessoa é gente boa, falamos “iben assel”, gente de raízes. Adib será um ponto de referência muito importante entre nós e o governo eleito.

Marcelo Mariano – Presumo que o sr. tenha parentes na Síria, país que ainda vive uma guerra. Com a guerra e o Estado Islâmico enfraquecido, como a Síria e seus parentes comemorarão o Natal? O conflito de fato caminha para o fim?
Em algumas cidades da Síria serão naturais as celebrações do Natal. Em outras haverá dificuldade. Não é fácil, mas hoje quase 80% do território está tomado pelo governo. Isso dá certa tranquilidade. Desejamos que chegue a 100%. Síria foi, é e será para nós uma das civilizações. O patriarcado da nossa igreja fica em Damasco, em um bairro tradicional que se chama Bab Tuma, que significa Porta de Tuma. A cidade antiga era cercada por portas, como vemos na profecia.

Está justamente no caminho que fez São Paulo. Está a 700 metros da casa de Ananias, onde foi batizado São Paulo. É um bairro muito caro para nós cristãos. Rezamos para que a paz volte à Síria como a Síria merece, a tinha antes e como sempre foi, um lugar de encontro das religiões e das civilizações. Na Síria sempre viveram muçulmanos, cristãos e judeus e nunca houve problema. Quando houve problema não foi por questões religiosas, mas por decisão de uma pessoa. Os judeus que moram em Damasco e Alepo nunca tiveram problema de perseguição nem nada.

Uma vez mais mostra o que disse no começo desta conversa, que quando a religião desune não é religião, é um poder a mais. A religião existe para unir as pessoas. Quando alguém tem Deus no seu coração, esse Deus o leva a fazer obras do bem. Quando tem em seu coração o poder, o poder faz com que queira vencer o outro, como dizia Platão: a verdade está com o mais forte, não com o que a tem.

Nós não acreditamos no sincretismo, que todos somos o mesmo, mas o verdadeiro amor é quando um aprende a aceitar o outro como ele é e crescemos com as diferenças. Dizemos sempre: unidade não significa uniformidade, unidade na diversidade. Essa é a nossa meta.

Marcelo Mariano – São quantos árabes em Goiás hoje?
De acordo com o Itamaraty, são 300 mil de origem árabe. A maioria é de sírios-libaneses e alguns palestinos.

Augusto Diniz – Quantos fiéis tem a Igreja Ortodoxa no Estado?
A maioria dos 300 mil é composta por ortodoxos, depois seguem maronitas, muçulmanos e drusos. Os ortodoxos têm igrejas em Ipameri, Goiânia e Anápolis. Mesquita muçulmana só em Anápolis, uma pequena na Praça da Bíblia e o Centro Muçulmano em Trindade. Em comparação à estrutura da igreja, a Ortodoxa é a maioria dos árabes em Goiás. Os maronitas não têm igreja no Estado.