A história do mestre que dizia “paciente não rima com número, rima com gente”

10 abril 2014 às 17h12

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Jornal Opção republica entrevista histórica concedida pelo médico goiano pioneiro, fundador da Faculdade de Medicina e do Hospital Santa Genoveva, que morreu na semana passada
Não é possível escrever a história da medicina em Goiás sem citar o médico e professor Francisco Ludovico de Almeida Neto, que morreu na segunda-feira, 31, aos 86 anos. Fundador do Hospital Santa Genoveva, ele ficou marcado na história goiana por encampar a ideia de o Estado ter seu primeiro curso de medicina. Com seu esforço, em abril de 1960 surgia a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. Chico Ludovico, como era conhecido, tornou-se seu primeiro diretor. Em 1988 foi homenageado como professor emérito da instituição.
O médico era filho do ex-governador de Goiás, Juca Ludovico, e se graduou em Medicina no Rio. Ao contrário do pai, nunca quis ser político. “A medicina sempre foi meu campo de atuação”. Após se aposentar, na década de 90 escreveu o livro “A Faculdade de Medicina de Goiás”, um resgate da epopeia que protagonizou e também um registro da própria vida. Ludovico não via a tradição pelo prisma do apego, mas como motivo de alerta. “Paciente não rima com número, rima com gente”, costumava dizer, ao perceber algum sinal de mercantilização da medicina ou um jovem médico deslumbrado com as técnicas.
Ludovico lutava contra um câncer de próstata. Sofria também do mal de Alzheimer. Em sua memória, o Jornal Opção republica os trechos mais emblemáticos de uma longa entrevista concedida por ele em julho de 1996. Um arquivo que merece ser relido para entender os pormenores dos primeiros passos da UFG, o crescimento de Goiânia e o próprio avanço da medicina ao longo das décadas. Interessante é reler o trecho em que o médico fala sobre o respeito aos idosos em estágio terminal: “Como médico, jamais faria uma ação direta para interromper a vida, mas também não tenho direito de prolongá-la inutilmente. Muitas vezes esses pacientes muito idosos só estão pedindo para morrer em casa, junto aos parentes.” Francisco Ludovico morreu assim, em casa, depois de complicações de um câncer que já havia tratado há 20 anos e do qual sofreu recidiva.
José Maria e Silva — Onde o sr. cursou medicina?
Na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, na Praia Vermelha, do Rio de Janeiro. Morava na UNE e comia em pensão. Meu pai, que era secretário da Fazenda do Estado e ganhava um conto e quinhentos réis, me mandava 500 mil réis de mesada. Era um peso no orçamento da família. Já no primeiro ano de faculdade, prestei concurso para interno efetivo de anatomia e fui aproveitado, entre doze candidatos. Passei a ganhar 750 mil réis e até passei a andar de ônibus. No quinto ano de faculdade, prestei concurso auxiliar acadêmico da Prefeitura, fui aprovado, e minha renda subiu para 1 conto e 700 réis. Juntando tudo, passei a ter um salário de quase quatro contos de réis, o que significava uns 4 mil reais, hoje. Fui morar em apartamento e ganhei status.
José Maria e Silva — Onde o sr. cursou a escola básica e o secundário?
Fiz o primário no Grupo Escolar Rocha Lima, de Itaberaí. Antes, fui alfabetizado por uma senhora chamada Ludestina. Em 37, prestei exame de admissão em Bonfim, hoje, Silvânia. Em 41, me transferi para o Lyceu, já em Goiânia, e fiz até a quinta série. Depois, fui para o rio e estudei num colégio francês, o instituto Lafayete. Dentro desse instituto, só se falava francês. Era a língua oficial do colégio. Foi ótimo, porque peguei uma boa base na língua francesa. Terminei o científico em 1944 e fui direto para a faculdade. Naquela época não havia preparatórios. Era preciso estudar muito sozinho.
Herbert de Moraes — Em que hospital o sr. fez residência médica?
Eu me formei em 1950, aos 23 anos. Naquele tempo não havia residência. Mas fui interno do professor Alfredo Monteiro, diretamente ligado ao professor Josias de Freitas, no Hospital Moncorvo Filho, no Rio. Eram grandes professores. Meu objetivo era fazer neurocirurgia. Cheguei a me qualificar par uma bolsa de estudos na Suécia, viajei para Estocolmo, fiquei uns 40 dias lá, mas o rigor do inverno e a barreira da língua me fizeram desistir. O frio era 37 graus abaixo de zero, e o sueco me parecia uma língua tão enrolada que calculei um tempo de no mínimo um ano para aprendê-la. Então, na volta da Suécia, fiz um curso rápido em Paris, de um mês, e, depois, fui para os Estados Unidos. Lá, fiquei nove meses em Nova York, mais um mês em Cleveland e em Houston. Na volta, fui aprovado pela Universidade do Brasil para o cargo de auxiliar de ensino de técnica operatória, com direito a fazer residência nos Estados Unidos e continuar como professor da faculdade.
José Maria e Silva — Nesses cursos que fez, o sr. se especializou em que área?
Em cirurgia geral. Operava tudo, da cabeça aos pés: tireoide, tórax, abdome. Já coloquei até prótese de fêmur. Era medicina difícil de ser executada, mas não tinha outro jeito.
José Maria e Silva — O que o fez deixar toda essa perspectiva de uma carreira bem-sucedida no Rio e voltar para Goiás?
Quando estava me preparando para essa residência médica nos Estados Unidos, vim a Goiânia me despedir de meus pais e contar a eles minhas expectativas. Aí ocorreu um fato marcante. Minha mãe, que sempre foi uma mulher ponderada, de muita sabedoria, me disse: “Filho, você é um privilegiado. Seu pai pode manter seus estudos. Não me parece justo que você fique no Rio. Se você quer mesmo ser professor, por que não fica em Goiânia e não luta por uma faculdade de medicina? A população daqui precisa de assistência médica. Depois, tem tantos jovens como você que querem ser médicos, mas não têm condições de estudar fora”. Aquilo me tocou muito. Voltei ao Rio, desisti do internato no exterior e da indicação par auxiliar de ensino da Faculdade de Medicina da Praia Vermelha e retornei a Goiás. Montei consultório na Rua 7, esquina com a 2, e fui trabalhar na Santa Casa.
José Maria e Silva — Nessa época, a ideia de criar uma faculdade de medicina já tinha virado uma determinação?
Já. E não só minha, mas de outras pessoas. Meu trabalho na Santa Casa me permitiu manter contato com grandes médicos goianos, como Simão, Domingos Viggiano, José Fleury e Eduardo Jacobson. Minha grande preocupação, na época, era com a anestesia geral. Usávamos máscara de Obredane e anestésicos como o flasofórmio e, depois, o éter. Até hoje não sei explicar como os doentes sobreviviam. As anestesistas eram alunas do primeiro ano da escola de auxiliar de enfermagem, porque as mais adiantadas não gostavam dessa função. Como a máscara de Obredane era aberta, todos na sala de cirurgia ficavam meio anestesiados. Na época não havia curare, uma substância usada na anestesia e que inibe a contração dos músculos. Com isso, era preciso muita perícia do médico para poder operar. Foram essas dificuldades que nos levaram a trazer, de fora, um médico especialista em anestesia. Nessa época, Goiânia já contava com a Santa Casa e o Hospital São Lucas. O Hospital Santa Luzia estava sendo construído. Com isso, foi possível trazer três anestesistas para Goiás. O primeiro deles foi Bruno de Oliveira Torres. Depois, vieram Ilídio e José Urbano. Tudo isso, ainda em 1952. No início de 1953, a Associação Médica de Goiás passou a patrocinar a ideia de criação da Faculdade de Medicina. Formou-se uma comissão, e eu tive o privilégio de ser designado seu presidente. A partir daí a criação da faculdade se tornou uma ideia fixa.
José Maria e Silva — Que conceito o professor Francisco Ludovico de hoje daria para o aluno que ele foi no passado?
Na escola básica, fui um aluno médio. No curso de medicina, fui um aluno ultrapreocupado. No Lyceu, minha professora de francês não reprovava aluno. Então, eu e meus colegas assistíamos as aulas dela pensando em jogar sinuca, no Araújo, na Rua 20 com a Anhanguera. Mas quando prestei o exame vestibular, achei fácil. Havia estudado muito. E, no curso, me dediquei muito ao estudo da anatomia.
Herbert de Moraes — O sr. foi um dos fundadores da Faculdade de Medicina. Como foi esse processo de fundação?
Sou o fundador da Faculdade de Medicina, mas costumo dizer que não foi por grande mérito, mas pela oportunidade. Meu pai era o governador do Estado, e o presidente da República era o Juscelino Kubitschek, que também me deu total apoio. Nunca ocupei um cargo público. E se há mérito meu na fundação da faculdade foi esse — o de não ter usado o governo do meu pai ou a convivência com o presidente da República para fazer política em meu próprio interesse ou ocupar cargo em meu benefício. A única missão que tive no governo dele foi essa — a de fundar a Faculdade de Medicina.
Euler Belém — Qual a imagem que o sr. tinha de Juscelino Kubitschek?
Juscelino era a pessoa mais importante da vida brasileira. Até hoje, nenhum presidente conseguiu superá-lo. Era um homem de ideais. Ele foi determinante na criação da Faculdade de Medicina. Foi muito difícil conseguir a aprovação da faculdade no Conselho Superior de Educação, que se reunia apenas uma vez por mês. Na última semana de fevereiro de 1960, procurei, no Rio de Janeiro, o Jurandir Lodi, que era o diretor do ensino superior. Ele foi taxativo: “Já passou a época do vestibular. Esse ano, essa faculdade não funciona”. Ainda argumentei com ele: “Professor, estou com tudo pronto. Mandei vir um professor de anatomia da Itália, com salário e viagens pagos, para valorizar a faculdade. Contratei todos os demais professores. Eles não podem esperar para o ano que vem”. Mesmo assim, não teve jeito. Ele foi irredutível. Então, resolvi procurar o presidente. Viajei para Brasília e, à noite, me encontrei com Juscelino Kubitschek, no Catetinho. Contei a ele a conversa que tive com o Jurandir Lodi, e ele comentou: “Esse casca-de-ferida eu já conheço de Minas”. Então, chamou o secretário e mandou que fizesse um decreto me nomeando assessor da Presidência da República para Assuntos de Ensino Superior. Assinou na hora e me disse: “Leve este decreto para o Jurandir e me ligue de lá, às quatro da tarde. Vou estar no Catetinho”. No outro dia, voltei no gabinete do Jurandir. Antes, ficava quatro, cinco horas esperando. Dessa vez, mostrei o decreto para os assessores e fui levado imediatamente ao gabinete dele. Quando fui entrando, ele falou: “O senhor de novo!” Já eram três horas. Ele estava resolvendo um problema do reitor da Paraíba ao telefone e pediu para que eu esperasse um pouco. Quando acabou o telefonema, nem me deixou falar. Foi logo dizendo que não tinha jeito, que a faculdade não poderia funcionar naquele ano. Então, pedi a ele para usar o telefone. Liguei para o Juscelino: “Presidente, aqui é o Ludovico, de Goiás. Estou aqui com o Jurandir e ele disse que não tem jeito”. Juscelino falou: “Coloque esse chato na linha”. Chamei o Jurandir e falei: “Professor, o presidente quer falar com o senhor”. E ele: “Que presidente?” Quando respondi que era o da República, levou um susto danado. Pegou o telefone e eu só o ouvi falando: “Sim, sr. presidente… Sim, sr. presidente”. Saí de lá com a autorização de funcionamento da faculdade, autorização para tomar todas as providências necessárias antes da publicação da medida do Diário Oficial da União, e mais a aprovação do vestibular, da banca examinadora e do calendário especial. A mando do Juscelino, o Jurandir aprovou tudo. Fui até o gabinete do Clóvis Salgado, que era ministro da Educação, e ele me mandou um carro me levar até o Catetinho. A ordem era de Juscelino. Lá, por volta das sete e meia da noite, fui recebido pelo presidente. Juscelino perguntou se estava tudo pronto, eu disse que sim. Ele perguntou quando a faculdade iria funcionar. Respondi que faria força para que viesse a funcionar junto com Brasília. De fato, acabou sendo inaugurada no dia 21 de abril de 1960. Demos aula de manhã e à tarde fomos à inauguração de Brasília.
Euler Belém — Dizem que Juscelino Kubitschek era muito brincalhão ao telefone. Com o sr. era brincalhão?
Por telefone só falei com ele nesse caso da faculdade. Das outras vezes, conversava pessoalmente. Foi ele, por exemplo, quem escolheu o lugar da Faculdade de Medicina, quando ainda era candidato a presidente. Veio a Goiânia e quis conhecer a cidade, discretamente. Fomos no meu carro, com o Américo Napoleão dirigindo. Mostrei a ele a Praça Universitária, onde queríamos instalar a Faculdade de Medicina. Ele concordou: “É um lugar ótimo para a faculdade”. Então pedi a ele que conversasse com meu pai, que estava meio indeciso. À noite, na hora do jantar, Juscelino falou para o meu pai: “Andei com seu filho e gostei da área que ele quer ver transformada na Faculdade de Medicina. Mande fazer um prédio para a Faculdade de Engenharia e doe aquilo para a Faculdade de Medicina. Garanto a você que, quando for presidente, vou dar todo apoio ao seu filho”. Na semana seguinte, meu pai pôs em prática a sugestão de Juscelino e mandou mensagem para a Assembleia, que foi aprovada. Esse passo foi decisivo para a criação da Faculdade de Medicina.
Herbert de Moraes — O sr. deu aulas na faculdade até quando?
Fui professor até 1968, quando fui afastado sob alegação de que era comunista. Mas nunca fui comunista. Uma das causações que usaram contra mim foi a de que nomeei comunista para ser professor na faculdade. De fato, o Jonas, que era do Partidão, prestou concurso para professor de pediatria, tinha título, capacidade, e foi aprovado. Todos os professores passaram por mim, mas nunca perguntei se eram deste ou daquele partido. O que me interessava é se estavam preparados para dar aula. Um ano depois, o Jonas me apresentou a Eleuza, que hoje é diretora da faculdade. Achei aquela menina muito estudiosa, capacitada, e aprovei o nome dela para trabalhar na faculdade. Foram esses os argumentos que usaram para dizer que eu era comunista, mas a verdadeira causa do meu afastamento foi outra. Fui afastado por causa de um ilustre desembargador de Goiânia, que era um dedo-duro da ditadura, de quem prefiro omitir o nome. Ele era meu colega na Faculdade de Direito. Eu também lecionava matéria de medicina legal para os alunos de direito. Então, certo dia, ele chegou no meu consultório e disse: “Doutor Francisco, meu filho vai prestar vestibular na Faculdade de Medicina”. Eu disse: “Espero que seja aprovado. Será um prazer tê-lo conosco”. Aí o desembargador foi mais claro: “O senhor não está entendendo. Ele vai fazer vestibular e tem que ser aprovado”. Na hora cortei conversa: “O senhor conhece meu pai e me conhece. Nunca fiz uma coisa dessas na minha vida e não será agora que vou fazer. Se seu filho for aprovado no vestibular será muito bem tratado, como todos os outros alunos, caso contrário não entra na faculdade. E tem mais: vivo muito bem sem o cargo de diretor da faculdade”. Ele saiu pisando nos calcanhares e fez a denúncia contra mim. Mas ele me deu o maior título honorífico que recebi na minha vida: ele me denunciou dizendo que eu era o único homem em Goiás capaz de levantar a juventude. Se o Jaime Portela não fosse o chefe da Casa Civil, eu teria sido cassado e até preso. Quando viu o processo contra mim, me levou ao Médici, que era chefe do SNI, e disse a ele: “O Chico nunca foi comunista. Eu o conheço desde menino, estudamos juntos”. Então, o Médici bateu um carimbo no processo e o arquivou. Mas fui impedido de exercer cargo público e afastado da universidade, mas já estava me dedicando ao Santa Genoveva e não tinha mais motivação. Preferi me aposentar.
“Vendi a TV Anhanguera para Jaime Câmara”
Herbert de Moraes — A Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás está em que nível, em relação às demais faculdades de medicina brasileiras?
Em 1970 entre 73 faculdades, chegamos a ser a 11ª em qualidade de ensino. Em 68, quando saí da Faculdade de Medicina, ela já estava entre as melhores graças à qualidade do corpo docente e do currículo. A faculdade pode se orgulhar de grandes médicos, como o Jofre Marcondes Rezende, que tem um livro adotado em todo país. Sou o responsável pela vinda dele para Goiás. Podemos citar, também, o Heitor Rosa, um dos maiores hepatologistas brasileiros. Se eu fosse citar nomes, poderia listar pelo menos 30 grandes médicos que se projetaram na Faculdade de Medicina.
Herbert de Moraes — O que mudou na Faculdade de Medicina? Ela não tem, hoje, a qualidade do passado?
As faculdades de medicina brasileiras começaram — não só a nossa — a ser destruídas no governo do presidente Costa e Silva. A mulher dele, dona Yolanda, querendo se promover, resolveu ser a madrinha dos excedentes, daqueles que não haviam passado no vestibular eliminatório de então. Dona Yolanda patrocinou um movimento dentro do Ministério da Educação exigindo a absorção de mais alunos. A Revolução precisava se promover no meio da classe estudantil. Ela reuniu em Brasília todos os diretores de faculdade de medicina do país para comunicar que as vagas seriam dobradas. A nossa faculdade, que recebia 60 alunos, passaria a receber 120. Fui contra. A faculdade não tinha condições de dobrar o número de alunos. Levei essa posição ao conselho universitário, que estava de acordo e me designou como porta-voz desse pensamento em Brasília. O Tarso de Morais Dutra, ministro da Educação na época, era amigo do meu pai. Eu o procurei e apresentei a ele nossa posição. Ele falou: “Se você ficar contra, tenho autorização para demiti-lo em 72 horas”. Mas não fiquei calado. Na reunião, expliquei que a nossa faculdade não tinha condições de dobrar o número de vagas, ela só havia formado duas turmas, e propus o ano seguinte. Nesse intervalo, o Ministério da Educação ficaria incumbido de dar as condições de funcionamento para a universidade. Disse também que gostaria de ouvir a opinião de outros diretores. Mas nenhum disse nada, com medo de perder o emprego. Esse foi mais um motivo para minha demissão. O Luiz Rassi assumiu em meu lugar. Na solenidade de posse, fiz um discurso na presença do reitor, disse o que queria, mas não me aconteceu nada.
Herbert de Moraes — Como surgiu a ideia de criar o Hospital Santa Genoveva?
A ideia nasceu em 1964, pouco depois da Revolução. Procurei o então secretário do Planejamento, Reis Veloso, e apresentei a ele o projeto de construção de um hospital de clínicas em Goiás. O projeto estava pronto. O reitor da Federal, na época, era Colemar Natal e Silva. A ideia era fazer desse hospital um lugar de multiatendimento, para pobres e ricos. Os professores trabalhariam em tempo integral, atendendo, inclusive, seus clientes particulares nesse hospital. O pagamento efetuado por esses clientes serviria de sustentação para o funcionamento do hospital, que não seria público, mas uma fundação de direito público. Com isso, seria possível investir em equipamentos e em pesquisas. Faríamos um grande hospital. Expus tudo a Reis Veloso. Ele me deixou falando por quatro horas. Depois disse: “Deixei você falando porque queria aprender. Mas tenho uma má notícia: não há nenhuma intenção do governo de valorizar as universidades brasileiras. Não temos condições de construir esse hospital.” Havia duas empresas dos Estados Unidos interessadas em construir o hospital em dois anos para ser pago em dez. A única exigência era a de que os 10 milhões que seriam gastos na obra constassem do orçamento da União. Contei isso a Reis Veloso, mas ele foi taxativo: “Tire isso da cabeça. Não adianta.” Insisti: “Mas o projeto está pronto.” Ele não titubeou: “Jogue fora ou arquive.”
José Maria e Silva — O sr. não mais tentou apoio do governo?
Saí de lá certo de que não poderia contar com o apoio do governo para construir o hospital. Então pensei em fazer um hospital de comunidade, que tivesse um núcleo central e pudesse se expandir depois. Foi então que surgiu a ideia de criar a Clínica Santa Genoveva. Clínica, porque se tratava de um conjunto de clínicas. Santa Genoveva, porque seria instalada no bairro que tinha esse nome. Eu havia comprado de Altamiro de Moura Pacheco uma área de 123 mil metros quadrados, lá no Setor Santa Genoveva. E já havia percebido, em minhas viagens, que os grandes hospitais nunca estavam localizados no centro das grandes metrópoles do mundo. Estavam sempre na periferia. Pensei em fazer o mesmo. Procurei um arquiteto, e ele fez o projeto de um hospital modular, passível de crescer de acordo com a demanda.
Herbert de Moraes — Por que, no exterior, os grandes hospitais estão na periferia? Além dos aspectos urbanísticos, há fatores sanitários nessa opção pela periferia?
Em primeiro lugar, um hospital é o reflexo da sociedade em que se insere. Logo, deve crescer segundo o crescimento da estrutura social de que participa. Se o Santa Genoveva ficasse no centro da cidade, até por uma questão física, ele teria muita dificuldade em crescer como cresceu. E eu, naquela época, já queria um hospital que fosse moderno nos próximos 50 anos. Por outro lado, um hospital localizado fora do centro da cidade naturalmente oferece mais conforto para seus clientes. Mais silêncio, ar puro, estacionamento amplo. Facilidade de acesso para as ambulâncias, que, nas proximidades do hospital, não têm que enfrentar engarrafamento. Hoje, tenho uma área disponível de 56 mil metros quadrados.
Herbert de Moraes — Depois que a ideia inicial de um hospital das clínicas não deu certo, o sr. resolveu tocar o Santa Genoveva sozinho?
Eu me separei dos antigos sócios e comecei o novo projeto sozinho. Mas, como a ideia era fazer um hospital comunitário, 720 pessoas me auxiliaram e compraram participação nesse hospital, cada uma no valor de 400 dólares, divido em 30 meses. Eu não imaginava que a inflação, já naquela época, fosse crescer tanto. Depois de um ano, aquele dinheiro não valia quase nada. Então, vi que esse modelo seria inviável e que eu mesmo tinha que arcar sozinho com o hospital. Mas, para isso, precisava de dinheiro, e a solução foi vender a Televisão Anhanguera e a Rádio Anhanguera, que eram minhas, para “O Popular”. Foi como o dinheiro dessa venda, 8 milhões de cruzeiros, que comecei a construção.
Euler França de Belém — Como o sr. adquiriu essa televisão?
Adquiri a rádio em 58. Depois, adquiri a televisão para a campanha de 60. Mão não peguei os documentos de transferência, então o pessoal que ainda mantinha o controle dos veículos utilizou a Rádio Anhanguera na campanha de Mauro Borges contra meu pai. Naquele tempo, quem fornecia concessão de emissoras de rádio e TV era o ministro da Viação e Obras Públicas, senador e presidente do PSD, Olavo Peixoto. Ele era genro de Getúlio Vargas. Quando fui falar com ele sobre a transferência, ele disse: “Menino, você não entende dessas coisas. Eu gosto de você, mas Pedro Ludovico é que é o chefe. Pra que seu pai foi brigar com o Pedro?” Eu disse a ele: “Meu pai não brigou com o Pedro. O Pedro é que brigou com meu pai.” Fui jantar com ele em Niterói, e ele me falou: “Só vou dar para você a posse da Rádio Anhanguera depois que passar a eleição.” Depois disso, perdi o encanto com esse negócio de rádio e televisão. Depois, não era minha atividade. Nunca tive pretensão política, queria me dedicar à medicina, então não fazia sentido ficar nesse ramo de telecomunicações. Então, procurei Jaime Câmara e propus a ele a compra da rádio e da televisão. Ele era o único que, na época, tinha estrutura para efetivar uma transação dessas. “O Popular” já era uma estrutura consolidada. Propus a venda depois das eleições, em 62, mas ela só foi concretizada depois de 64.
Herbert de Moraes — Só o dinheiro dessa venda foi o suficiente para tocar o hospital?
Não. O acaso me colocou um outro capital nas mãos. Aquele armazém onde hoje está a fábrica da Brahma era de um cliente meu. Ele precisava de 3 milhões e 400 mil cruzeiros. Eu tinha esse dinheiro. Ele me deu em garantia todas as ações do armazém. Acabei ficando com o armazém, sem saber o que fazer com ele. Aluguei para o IPC, mas o IPC nunca pagava o aluguel. Deu uma ventania e destelhou o armazém, tive que gastar dinheiro com ele. Então, um amigo de Araguari propôs comprá-lo. Pedi 30 milhões. Ele conseguiu 27. Entreguei na hora. Seis meses depois, ele vendeu o armazém por 100 milhões, para o Hugo montar a Brahma.
Herbert de Moraes — Seu pai, Juca Ludovico, entrou com algum dinheiro na construção do hospital?
Ele vendeu duas fazendas para me ajudar, depois que o hospital estava pronto. Eu precisava de dinheiro para montar o hospital, mas tinha uma dívida de 4 milhões em bancos. Ubirajara Caiado era muito meu amigo. Quando Leonino Caiado assumiu o governo, ele propôs que o BEG me emprestasse o dinheiro, a juros normais, apenas para que minha dívida ficasse centralizada num banco só e fosse mais fácil administrá-la. Ubirajara, que nunca avalizava ninguém, iria me avalizar junto com meu pai. No segundo mês de governo de Leonino, fui ao BEG. Conversei como gerente. Ele disse: “O senhor é amigo do governador?” Respondi que o conhecia desde menino, que nossas famílias também se conheciam. Então o gerente foi franco: “O governador me disse que eu tivesse cuidado com o senhor, porque o senhor está falindo.” Contei o teor da conversa para meu pai. Ele telefonou para o presidente do Banco do Estado de São Paulo, que tinha dado grande apoio a seu governo. Imediatamente o Banco do Estado de São Paulo mandou um telegrama para o gerente do BEG, solicitando a ele que fizesse o empréstimo do que eu precisasse, tendo como avalista apenas meu pai. Fiz um balanço das dívidas, que estavam em cerca de 4 milhões de cruzeiros, e achei que demoraria uns três anos para quitar o empréstimo. Mas, um ano e cinco meses depois não devia mais nenhum tostão. Quando faltava pouco mais de 1 milhão para pagar a dívida, meu pai vendeu uma fazenda em Nova Veneza por 1 milhão e 200 mil, quitei com 700 mil o que devia no banco e com outros 300 mil equipei o hospital. No início, mantinha o hospital com a minha clínica. Às vezes tinha só um paciente internado. Eu não tinha outros médicos comigo, porque nenhum deles acreditava que o hospital fosse para frente.
Herbert de Moraes — Havia asfalto no bairro quando o sr. instalou o hospital?
Só até o Adauto Botelho. Depois, o asfalto chegou até o aeroporto. Acho que foi um ato de futurismo de minha parte construir um hospital ali. Na época, eu já antevia o que Goiânia é hoje. Depois da construção de Brasília, nunca imaginei Goiânia parada. Eu sabia que ela iria crescer de uma forma assustadora. Só errei o rumo do crescimento — ela cresceu para o sul e não para o norte. Hoje sei que uma estrada de ferro, em qualquer cidade, é uma barreira para o crescimento. Mas na época eu não tinha essa malícia. Poderia ter escolhido uma área no Setor Sul para construir o hospital, mas não escolhi.
Herbert de Moraes — Qual era a taxa de ocupação do hospital na época em que foi criado?
Eu só tinha 20 apartamentos. Tinha clínica e cirurgia geral, cardiologia, ginecologia e obstetrícia. A princípio, foram cinco médicos para lá. Esse número foi aumentando aos poucos, quando os médicos perceberam que seus clientes gostavam da ideia de um hospital de referência, com amplo espaço e estacionamento. Antes, os médicos tinham consultório no centro, mas quando precisavam internar o paciente tinham que encaminhá-lo para o hospital. Hoje, tenho 120 médicos trabalhando no Santa Genoveva.
Euler de França Belém — O sr. afirma que a qualidade da cardiologia de Goiás é muito boa. Então, por que os goianos continuam procurando São Paulo para fazer cirurgia cardíaca?
São resquícios de uma cultura feudal, de uma síndrome do colonizado. Assim como o paulista vai se operar nos Estados Unidos, quando poderia se operar em seu próprio Estado, também os goianos preferir ir para São Paulo. Muitas vezes é até uma questão de status. Os ricos de Goiânia acham que São Paulo tem uma estrutura fantástica no setor de cardiologia, muito melhor que a nossa, mas não é verdade. O primeiro equipamento moderno de cineangiocoronariografia da América Latina não foi instalado em São Paulo, mas aqui em Goiânia, no Hospital Santa Genoveva. Só agora é que São Paulo começa a pôr em funcionamento esses aparelhos.
José Maria e Silva — Como o sr. conseguiu esse equipamento antes dos paulistas?
Tenho um amigo que é executivo da Philips. Então, ele disse que a empresa estava interessada em abrir um mercado na América Latina, nesse setor, e perguntou se eu não queria ficar com o aparelho. Aceitei de imediato. Ele me deu um grande desconto no preço. Mas só com essa venda para o Santa Genoveva ele conseguiu vender mais 14 equipamentos na América Latina.
Herbert de Moraes — Do ponto de vista técnico, a medicina praticada em Goiás se equipara à que é praticada em São Paulo?
Temos uma das melhores medicinas do Brasil, tanto em recursos humanos quanto em recursos técnicos. Hoje, tudo o que o Incor possui eu possuo, no Santa Genoveva. Inclusive nos setores de medicina nuclear e de hemodinâmica, que são dois dos mais avançados. O problema nosso é que não perdemos a fama de tupiniquim.
José Maria e Silva — A diferença entre dois pilotos de avião bem preparados costuma ser computada em horas-voo. Aquele que tem mais experiência já passou por maus bocados e tem mais sangue frio para enfrentar os imprevistos. Com o cirurgião não acontece o mesmo? A diferença entre os cirurgiões de Goiás e os de São Paulo não está no tempo de bisturi? Um Jatene, por exemplo, já deve ter operado centenas de vezes mais que qualquer cirurgião goiano.
A diferença de um Jatene para um médico nosso é a credibilidade que ele conquistou merecidamente com sua competência. Mas todo bom médico que tenha feito uma boa residência de cirurgia cardíaca e tenha cinco anos de experiência já está completamente maduro como qualquer outro que tenha 30 anos de atividade. Ele faz qualquer cirurgia com a mesma segurança que Jatene ou Zerbini fariam. Sem contar que esses médicos muito famosos nem sempre fazem eles mesmos toda a operação. Já vi Zerbini operando cinco pacientes num dia. Mas sabe o que ele fazia? A anastomose, que é a ligação dos vasos sanguíneos. A equipe é que cuidava do resto.
José Maria e Silva — O médico precisa da residência porque a faculdade é deficiente?
As faculdades de medicina não oferecem condições para a formação de um bom médico. O avanço tecnológico que ocorreu fora dela é vertiginoso. No meu tempo, tínhamos uma meia dúzia de antibióticos, e o diagnóstico contava com pouquíssimos instrumentos, era baseado muito mais na experiência e na intuição do médico. Hoje, os meios diagnósticos e terapêuticos incorporam cada vez mais a tecnologia, e exige uma especialização constante.
José Maria e Silva — Como filho único, o sr. era muito manhoso?
Meu pai não deixava ninguém ficar manhoso. Era muito severo. Nunca me bateu, mas impunha um respeito intenso. Eu me lembro que, quando tinha seis anos, ele quis me obrigar a tomar um lombrigueiro. O remédio era amargo, não descia, mas ele me pôs sentado na mesa da cozinha, com um chicote na mão. Eu chorava. Minha mãe me deu copo com água, aí o remédio arrebentou em minha boca e comecei a vomitar. Acabei não tomando o lombrigueiro, nem ele me bateu, mas fiquei com aquilo no subconsciente. Até hoje, tenho dificuldade para engolir comprimido. Com água não desce. Tenho que colocar dentro de um pedaço de banana para descer. Minha mãe era muito preocupada comigo, por ser filho único. Sempre fui mais ligado a ela que a meu pai. Ela nunca me deixava nadar no rio. Eu morria de vontade. Só fui ter um pouco mais de liberdade quando me mudei para Bonfim, sozinho para estudar.
Herbert de Moraes — O Rio despertou algum lado boêmio no sr.?
Nunca fui boêmio, mas gostava de ir para Dance Brasil, toda sexta-feira, ver a Ângela Maria cantar. Também costumava ir à Glória, ver o pessoal do teatro tomar chope, depois dos espetáculos.
José Maria e Silva — Como o sr. avalia, hoje, o papel de um clínico geral?
O clínico geral esteve ofuscado pelo especialista, que mandou na medicina durante um bom tempo. Houve um período recente em que o médico tinha de ser especialista e até hiperespecialista. A medicina se desenvolveu demais e era praticamente impossível para um indivíduo sozinho entender de tudo. Só mesmo médicos clínicos com muito estudo e larga experiência conseguiam sobressair. Em Goiânia, por exemplo, tínhamos o Simão, o José Fleury e o Domingos Viggiano, que, ainda hoje, aos 86 anos, continua clinicando. Essa experiência acumulada de muitos anos faz com que o médico possa resolver praticamente todos os casos que lhe aparece, e com rapidez, porque nada é novidade para ele, cada caso ele já viu antes. Com a informação, a figura do clínico geral deve ressurgir com força. Ele pode trazer para perto de si, por intermédio do computador, todas as especialidades da medicina. Com a vantagem de que esse intercâmbio pode se processar com o mundo inteiro, instantaneamente. Isso vai fazer com que o hiperespecialista atue apenas em determinados atos, muito limitados. A grande maioria dos médicos deve voltar a exercer a clínica geral. Esse novo clínico pode perfeitamente ser preparado com a ajuda da informática.
Herbert de Moraes — Há exemplo de experiências do gênero?
Na Universidade de São Paulo já foram feitas experiências com programação de ensino que demonstraram a eficácia do computador no aprendizado. Uma turma de 120 alunos do 5° ano de medicina da USP se dividiu em três grupos de 40 alunos: um deles aprendendo só com professores; outro com professores e computadores; e o terceiro apenas com computadores. A experiência mostrou que os alunos que ficaram só com os professores, tiveram média 5; aqueles que contaram com professores e computadores, obtiveram 7; os que usaram apenas o computador tiveram nota 9. O computador estabelece uma interatividade maior com o aluno. O uso da informática pode ser muito eficaz para o ensino da parte teórica dos currículos de medicina. A parte do relacionamento entre o médico e o paciente, essa sim, precisa do professor, que vai mostrar que nenhum doente é número. Porque não é o fato de ser treinado no computador que fará o médico, mas a prática efetiva da medicina. O computador jamais substituirá o médico. O médico que teme o computador é porque merece mesmo ser substituído por ele.
“Fiquei frustrado por não salvar meu filho”
Herbert de Moraes — A medicina é um sacerdócio ou uma profissão?
Como qualquer outra atividade profissional, a medicina também é um conjunto de técnicas passíveis de serem aprendidas por qualquer pessoa normal. Mas, também como em qualquer outra atividade, a excelência em medicina exige vocação. São os cinco ou dez por centro de intuição, vocação ou inspiração — qualquer que seja o nome que se queira dar a isso — que fazem os grandes médicos. O resto, os outro 90 por cento, é apenas trabalho, dedicação.
José Maria e Silva — Como o sr. avalia a eutanásia? O sr. não acha que a medicina tende a prolongar em excesso a vida, com recursos artificiais?
Sou favorável a que se prolongue vidas artificialmente apenas quando há chances reais de sobrevivência do paciente. No meu hospital, ninguém vai para a UTI para morrer, mas para se recuperar, para viver. É errado mandar um indivíduo para a UTI sabendo que ele vai morrer de qualquer jeito depois de meses em coma. Acho que isso é mercantilização da medicina.
Herbert de Moraes — Essa decisão não é muito arriscada? Já houve casos de pessoas desenganadas que sobreviveram.
Se o desenganado é uma pessoa jovem, não custa tentar. Mas uma pessoa muito idosa, um octogenário, por exemplo, ainda que ele tenha chances de voltar do coma, não se pode dizer que ele irá viver realmente. Seu organismo já está muito debilitado. Ele não terá mais nenhuma qualidade de vida. Muitas vezes esses pacientes muito idosos só estão pedindo para morrer em casa, junto aos parentes, e não querem ficar meses isolados em UTI. Como médico, jamais faria uma ação direta para interromper a vida, mas também não tenho direito de prolongá-la inutilmente. Em casos assim, sempre aconselho a família a não ficar prolongando a vida da pessoa.
Herbert de Moraes — O sr. é a favor do aborto?
Nos casos de estupro ou em que a mulher corra risco de vida, como também em casos de anomalias muito graves, como um feto descerebrado, por exemplo. Nesse caso, ele irá morrer e é inútil deixá-lo gerando no ventre da mãe.
Euler de França Belém — A medicina continua errando muito ou o porcentual de erros caiu?
Caiu muito. Hoje, a medicina acerta mias de 90% dos diagnósticos com segurança absoluta.
Euler de França Belém — A camisinha é um protetor eficaz contra o vírus da aids?
Não existe proteção absoluta em nada. Mas o uso da camisinha já é uma demonstração de que o indivíduo está consciente dos riscos que corre numa relação sexual inconsequente. Não é porque os animais também fazem sexo que sexo é coisa de bicho. É preciso ter precauções. No meu tempo, como não se usava camisinha, éramos orientados para usar água e sabão depois de uma relação sexual. Álcool não podia usar, porque ele fixa a bactéria.
Herbert de Moraes — O sexo deve ser apenas para a reprodução da espécie?
Muito pelo contrário. O sexo é um componente essencial da vida humana. Mas deve ser praticado como consequência de uma relação mais profunda entre um homem e uma mulher. Nunca tive relação sexual com quem não tenho confiança. Nunca admiti, em minha vida, o sexo pelo sexo, nem mesmo quando era jovem. Aliás, isso só aconteceu na primeira vez. Tinha 14 anos quando fui convidado por um amigo para ir a uma casa de prostituição. Eram umas casas de tábua, logo depois do Cine Santa Maria [Centro de Goiânia]. Da primeira vez, peguei gonorreia. Sete dias depois estava no dr. Altamiro [Altamiro de Moura Pacheco]. Depois disso, nunca mais saí com qualquer mulher.
Euler de França Belém — Quando jovem o sr. era muito namorador?
Fui bom de mulher (risos). Era um boa pinta. Houve uma época em que tive três noivas no Rio. O plantão era a desculpa para conciliar os encontros com todas elas. Tudo acabou na formatura. Eu era membro da comissão organizadora da festa, que aconteceu em três salões. Convidei as três e coloquei uma em cada salão. Na hora da valsa, tive que dançar com minha mãe, para que elas não descobrissem. Mesmo assim, descobriram e tive que terminar com as três.
Euler de França Belém — E a sexualidade naquele tempo, como era?
Dessas três noivas, uma era meio aparentada comigo, era de Itaberaí. Essa era absolutamente respeitosa. Mas com as outras duas eu tive uma vida sexualmente normal. Na época, não havia motel no Rio, mas havia lugares no Mangue, na Lapa e na Rua Alice, onde, pagando de 5 mil a 50 mil réis, era possível ficar com a namorada e fazer sexo.
José Maria e Silva — Como o sr. conheceu sua mulher, Adelina?
Nós começamos a namorar em Goiânia. Casamos em 1953. Ela teve uma série de abortos naturais e quatro filhos. Depois que acabou de criá-los, prestou vestibular, entrou na faculdade e se formou em arquitetura. É arquiteta há 15 anos.
Herbert de Moraes – O sr. teve uma formação científica. Nela há espaço para o misticismo?
Nunca fui místico, mas respeito aquilo que desconheço. Místico é aquele que aceita o desconhecido sem nenhuma contestação. Por exemplo, acho que não existe vida após a morte. Penso que existe uma energia vital, que não morre, transforma-se. A vida é energia. Nosso corpo emite radiação, somos uma bomba atômica. Em 1951, eu estava nos Estados Unidos e li nos jornais que ia ser feita, pela primeira vez, uma transmissão de televisão. Fui ver. Era uma coisa espetacular. Hoje, as transmissões via satélite colocam o mundo ao vivo na casa de todo mundo, o computador faz coisas que há pouco tempo era impossível imaginar, mesmo assim ninguém se admira. O mundo é surpreendente. Pode ser que, daqui a algum tempo, se invente um aparelho para captar energias passadas. Com isso traríamos as imagens do passado até nós. Seria uma espécie de túnel do tempo.

Herbert de Moraes — O universo surgiu por acaso ou existe uma energia vital?
O universo é tão perfeito, racional, que não pode ter surgido por acaso. Penso que a energia é a base de tudo. Mas, por trás dela, há uma figura central, que coordena tudo — é Deus. Mas o meu Deus não é o das religiões, que julga e condena ou absolve. O meu é um Deus que não interfere em nossa vida. Ele é a estrutura que deu origem a tudo. E uma forma de se aproximar dele é por intermédio do conhecimento. Mas respeito as religiões. Elas compõem o superego da humanidade. É um mecanismo de engessamento dos instintos, que garante a sobrevivência da humanidade. Sem a religião, seriamos muito mais violentos e muito mais animais.
Euler de França Belém — O conhecimento aproximou ou afastou o sr. de Deus?
O conhecimento, ao contrário do que se possa imaginar, me aproximou muito mais de Deus. Quanto mais é possível conhecer, mais é fácil ficar encabulado com a perfeição de Deus. Só não aceito dogmas religiosos. Eu não posso admitir, por exemplo, que Maria concebeu Jesus sendo virgem. Para mim, tanto faz um homem ser católico, protestante ou muçulmano. As religiões existem para dominar os homens e fazer com que eles se enquadrem dentro da obra divina, tornando-os capazes de viver bem em sociedade.
Herbert de Moraes – O sr. acha que Moisés foi uma figura necessária?
Moisés foi um grande sanitarista. Ele sequer sonhava que existiam bactérias; mesmo assim, adotou medidas higiênicas, como cortas as unhas todos os sábados. Proibiu a carne de porco, que nas precárias condições do deserto devia ser muito nociva à saúde, e instituiu a circuncisão, cirurgia que evita muitas infecções.
Herbert de Moraes – Qual o médico que o sr. mais admira?
No mundo, tenho uma grande admiração por Pasteur, que, apesar de não ser médico, mas biólogo, mudou a história da medicina, que deve ser dividida em antes e depois de Pasteur. Em Goiás, admiro muito o Joffre Marcondes. No Brasil, tive uma grande admiração por Euryclides Zerbini. Além dele, também por Deolino Couto, no Rio.
Herbert de Moraes – O sr. foi fichado como comunista durante a ditadura, mas chama o regime de 64 de “Revolução”. Foi revolução ou golpe?
Revolução não existe sem golpe. Mas aquilo foi um golpe. Não houve luta, transformações, nada. Revolução foi apenas o nome de batismo que o regime militar deu a si mesmo. E aquilo foi um golpe caracterizado pela incapacidade da estrutura política do País, que, infelizmente, continua a mesma. Não mudamos nada em nossa estrutura política.
Herbert de Moraes – Com a morte de seu filho Juca Ludovico houve algum momento em que o sr. pensou em desistir de tudo?
A morte dele me abalou demais. É muito duro para um pai ver um filho morrer. No dia em que o Juca faleceu, 13 de dezembro de 1993, ele esteve comigo até as 6 da tarde, no meu consultório. Conversamos e eu disse que ele precisava perder peso, ter mais responsabilidade com o diabetes. Ele me disse: “Vou começar um regime hoje.” Mais tarde, por volta das 10 da noite, fui à casa dele e o peguei com um prato de chuchu e quase 1 quilo de carne picada. Eu disse: “Juca, o que é isso, meu filho? E o regime?” Ele falou: “O senhor disse que carne e chuchu eu posso comer.” Eu disse a ele que podia comer, mas não daquele tanto. Ele riu, brincou e me prometeu: “Amanhã nós começamos o regime.” Fui embora por volta das 10 e meia. Às 5 e meia da manhã fui acordado às pressas. A mulher dele me ligou e disse que ele estava com um ronco esquisito. Corri, mas quando cheguei ele estava acabando de morrer. Fiz de tudo para reanimá-lo, mas não era mais possível. Ele teve trombose no tronco da coronária, mas não sentiu dor, porque era diabético. Se tivesse sentido dor, teria acordado e seria possível, com cateterismo, solucionar o problema.
Herbert de Moraes — Com 50 anos de medicina, o sr. se sentiu frustrado por não poder salvar o próprio filho?
Eu me senti frustrado. Com toda a estrutura que montei, não pude salvar meu próprio filho. Mas não esmoreci. O Juca deixou dois filhos pequenos e eu sou o responsável por eles. Felizmente, eles têm uma mãe fabulosa, a Marta, que é uma filha para mim.
Herbert de Moraes — Falando de coisas alegres, sei que o sr. gosta do Araguaia. O sr. é um grande pescador?
Adoro o Araguaia. Mas nunca joguei um anzol na água. Quem gostava de pescar era meu filho Juca. Fizemos até um pesqueiro no Rio das Mortes. Ele continua armado, mesmo depois que meu filho morreu. Mas nunca mais tive coragem de voltar lá.