Hans Donner: “Mudaram a história da novela para Lula não ser eleito”
31 julho 2022 às 00h03
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Cilas Gontijo, Elder Dias e Euler de França Belém
É só um café para animar o bate-papo com tempo marcado – ele tem outros compromissos na cidade –, mas Hans Donner volta seus olhos atentos para contemplar o design no ajuste da xícara com o pires: “Olha, que legal isso, nunca tinha visto algo desse jeito, olha como essa esferinha se encaixa aqui!”, exclama, na sala de entrevistas da redação do Jornal Opção.
O mundo desse alemão de 73 anos que cresceu na Áustria e se tornou um mago da TV no Brasil literalmente gira. É o mundo das esferas, como ele faz ressaltar sempre, por onde quer que vá. Depois de mais de 45 anos na TV Globo, o designer gráfico com “o melhor emprego do mundo”, como ele gosta de falar até hoje, resolveu alçar novos voos, depois de ser colocado na geladeira da emissora, ganhando um alto salário, mas sem mais trabalhar – o que ele chamou de “jaula de ouro”.
E a nova paixão de Hans Donner é a arquitetura. Em junho, ele esteve em Goiânia para apresentar o projeto do Sagô Marista, um lançamento residencial com apartamentos de luxo desenvolvido pela Séren Incorporadora, em que está trabalhando ao lado das arquitetas goianas Ana Gabriela Lins e Iara Luiz Galvão.
Na oportunidade, concedeu esta entrevista em que abriu o jogo sobre a própria vida – como seu envolvimento com a modelo Valéria Valenssa, a eterna Globeleza, com quem foi casado por 17 anos, até 2019 – e também sobre algumas polêmicas da Globo, como a abertura de “O Salvador da Pátria”, de 1989. Nas imagens, Hans quis emular a figura do então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas a novela teve seu roteiro alterado para não o favorecer nas eleições presidenciais daquele ano.
Euler França de Belém – Quando o sr. ouviu falar pela primeira vez sobre o Brasil?
Foi na Copa do Mundo de 58. Minha paixão pelo Brasil começou ali. Começou pela bola, depois virei designer e fiz tudo virar bola. E Deus me traz para o Brasil para fazer o quê? Vir para a TV Globo, uma “bola”. E agora estou fazendo visual de futebol novamente, para outra televisão ligada à bola. Uma vez encontrei com Jairzinho [ex-jogador campeão do mundo pelo Brasil em 1970, artilheiro da seleção naquela Copa] na Suíça, na cidade onde mora meu irmão, e comecei a contar essa história de 58 e de como começou meu amor pelo Brasil. Disse a ele que meu nome, “Donner”, é “trovão”, em português. Ele me disse, então, que tinha mesmo de encontrar comigo, porque ele era o “Furacão” [da Copa, apelido que ele ganhou por seu desempenho na competição].
Elder Dias – A ideia das esferas sempre permeou seus trabalhos?
Quando estudei Design em Viena, eu já era muito questionador. Ninguém me entendia porque tudo em meu trabalho eu fazia virar volume. Hoje eu passei a estar muito envolvido com a arquitetura, que é o volume absoluto e máximo que o homem pode pensar em forma. Nada supera a arquitetura.
Elder Dias – E o sr. veio a Goiânia para tratar de arquitetura. Como se deu esse seu novo envolvimento? Virou um incorporador ou é um designer envolvido com o novo ofício?
Sou mais um sortudo desses que, desde que estudei Design em Viena, tive a vontade de não fazer nada em design bidimensional. Já em 1965, quando comecei a fazer design, fui chamado de louco, porque fazia tudo “saindo” do papel. Tudo saindo do plano. E, a partir disso, sendo chamado de louco, ninguém podia imaginar que um dia eu iria encontrar, do outro lado do Atlântico, uma empresa que se chama Globo, que tinha de representar volume já no próprio nome.
Quando estava indo estudar em Viena, eu vibrei desde o início em saber que teria uma vida legal pela frente. Ficava andando pelas ruas e sentia meu coração tão feliz que eu achava que iria pular por cima das árvores indo para a escola. Se tivesse ido para fazer arquitetura, que era meu sonho maior, eu iria de fato pular por cima das árvores (risos). Como fiquei cinco anos estudando design gráfico, a partir disso eu sonhava em encontrar uma oportunidade na arquitetura e materializar esse trabalho.
Na televisão, eu gradativamente entrei nesse universo. Quando o Boni [José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, ex-diretor-geral de TV da Rede Globo] me deu asas para voar, eu comecei a cuidar das linhas dos cenários. No “Jornal Nacional”, você se lembra da mesa que parecia uma nave espacial? Então, eu começava a migrar tudo como se fosse uma coisa palpável de dentro do estúdio, embora na tela da televisão fosse plano. Todo meu trabalho, aquela pirâmide no “Fantástico” [uma das várias aberturas do programa, nos anos 80], tudo era imitação do 3D. Quando passei a produzir móveis, luminárias e outras peças, todos os meus rabiscos que viraram 3D estão materializando. É uma coisa incrível.
Elder Dias – Como se dá essa história sua com a arquitetura?
Há alguns dias, eu estava em Curitiba, fiz uma palestra e, falando com a organizadora – que tinha visto minhas falas sobre arquitetura, móveis, tapetes e tudo –, ela me disse: “Hans, você tem de aceitar um convite: vou fazer uma homenagem e você será a figura para destacar a Casa Cor em Curitiba”. No dia seguinte, já entrei em um ginásio de esportes, uma academia que alguém não tocou mais para frente, que era uma loucura: as piscinas de natação viraram ambientes para arquitetos fazer seus espaços. Eram piscinas gigantes.
Elder Dias – E seu trabalho, como veio parar em Goiânia?
Aqui em Goiânia aconteceu algo parecido. O primeiro toque, partindo de uma palestra no Senai há uns quatro anos, com umas 1,5 mil pessoas. Apareceu o interesse do Fabinho [Fabiano Almeida, diretor da Séren Incorporadora], que estava envolvido no mundo da construção civil, mais focado em instalações mecânicas, mas que sempre teve vontade de incorporar. E nessa empresa há dois pilares: tecnologia e design. Ao receber o convite de trabalhar com esse projeto, tive a oportunidade de colocar em prática esse sonho que tenho desde a infância.
Cilas Gontijo – Voltando à Globo, como se deu aquela essa história de o sr. fazer a criação da marca da TV em um guardanapo?
Vou começar a história do início, então. Eu vim para o Brasil em 1975 com a missão de encontrar um emprego aqui. Não falava nada de português. Tinha marcado um voo com intervalo de 20 dias entre ida e volta para tentar minha sorte aqui, vindo da Suíça para cá. Quando cheguei, mostrei os trabalhos nas agências e, em todos os lugares onde fui, viram o que eu fazia e me chamavam de gênio. E achava estranho porque ninguém me dava emprego.
Elder Dias – É porque gênios são indomáveis…
É uma boa desculpa, melhor frase que eu escutei (risos). Mas é duro quando se quer um emprego, você é chamado de gênio, mas ninguém lhe dá o emprego. Ou seja, você é bom, mas ninguém o quer, provavelmente porque seria uma “ameaça” a quem já está na empresa. No último dia, eu já estava desistindo, encontro, no elevador da DPZ no Rio de Janeiro, um mulato da cor do Brasil, único que conheci em 20 dias que falava inglês.
Deram-me um contrato 5 vezes mais bem pago do que qualquer designer da minha categoria na Europa
E eu só falava inglês, não sabia dizer nem “obrigado”. E esse cara virou meu anjo da guarda, alguém que me colocou na cara do gol. E o gol se chamava Walter Clark [então diretor-geral da TV Globo]. Depois de ver meu trabalho, ele me questionou se eu poderia sugerir uma nova marca para Globo. Chamaram uma empresa terceirizada e me deram um contrato cinco vezes mais bem pago do que qualquer designer da minha categoria na Europa. Eu saí da sala dele, peguei um avião de volta e nada sabia sobre a Globo. Morando na Suíça, Áustria, Alemanha, lá a Globo não existia.
Elder Dias – É importante ressaltar que naquele momento a Rede Globo não era a potência que é hoje…
Era o terceiro canal do Rio e virou o terceiro do mundo, porque juntou design e tecnologia. E a TV Globo. Então o design, sim, marca a diferença. A Globo se tornou a TV mais sofisticada do mundo em razão do encontro, não só com o Walter, mas também especialmente com o Boni, que enxergava que, a partir desse diferencial, a emissora se tornaria a mais conhecida do mundo e a terceira maior.
Mas, saindo ali da sala do Walter, no avião voltando para a Europa, para contar para meus amigos que tinha conseguido um grande emprego e que o Rio de Janeiro era a cidade mais linda do mundo, eu pego o guardanapo e penso: a bola sempre foi minha, desde que conheci o futebol. Globo só pode ser uma bola. Tinha de ter a televisão, óbvio. O que a televisão faz? Mostra o mundo dentro dela. Então, a marca da Globo nasceu assim. Em um rabisco que hoje tem essa cara da Globo. Como o meu design do tempo. A Globo provavelmente vai parar, porque tudo para, só o tempo não para.
Elder Dias – O sr. considera que a Globo está parando no tempo?
Acho que a Globo precisa se esforçar muito para reinventar. Qualquer televisão aberta está parando.
Elder Dias – Então o sr. acha que não é um problema apenas da Globo?
É um problema de todas as TVs. Com Netflix, Amazon [gigantes operadoras de streaming] e essa turma toda, vai fazer o quê? Ficar em televisão aberta? Vai anunciar que às 8 da noite vai ter jornal e, depois, novela? Meus filhos com 18 anos não sabem onde está o canal Globo. Eles não têm noção, acham estranho isso de ter um horário marcado para assistir alguma coisa. Outro dia, estávamos no restaurante e um homem chegou até nossa mesa e disse para o meu filho: “Teu pai é um gênio. Ele fez a TV Globo.” Os meus filhos olharam para mim com a cara de “o que é isso?”. E perguntaram: “Por que está todo mundo babando por você assim?”. E isso é em qualquer lugar.
Elder Dias – A questão é que agora não é apenas televisão aberta. Até os canais por assinatura têm essa concorrência – é o caso do SporTV [canal por assinatura de esportes da Globo], por exemplo.
Então você pode imaginar: há esse canal de esportes e vêm os maiores times de futebol com programação própria, com suas TVs – inclusive com design melhor do que o da TV convencional. Isso está pintando.
Elder Dias – Em minha casa, a gente comprou uma televisão em cores pela primeira vez em 1981. Na década seguinte é que conseguimos ter um videocassete para gravar alguma coisa. Hoje, qualquer pessoa tem um celular, com uma boa internet, pode ver tudo por streaming, a qualquer hora. A tecnologia avança cada vez mais rápido. Como competir?
Impossível competir com o mundo. Antigamente os outros países não podiam mostrar coisas aqui. Era tudo bloqueado. Isso acabou. Quantos satélites tem hoje o Elon Musk [bilionário do ramo tecnológico]? Têm mais de 3 mil aqui em cima (aponta para o alto). A partir desse momento, não se tem mais fronteira. Antigamente não era assim.
Elder Dias – Qual foi o trabalho que o sr. mais gostou de ter feito?
É difícil dizer. São tantos “filhotes”. Sinto prazer em tudo que fiz e faço. Agora, quando vejo quanto ao trabalho com a Globo, sem dúvida, são as aberturas do “Fantástico”. Isso me projetou. Isso me fez estar no palco em Dallas, no Texas (EUA), em 1985, tendo 3 mil designers da televisão americana em pé aplaudindo, vendo uma pirâmide que eles jamais sonharam em fazer – não tinha computação gráfica na mão deles, só estavam na nossa mão. Percebi, naquele momento, que o mundo iria olhar para o Brasil no universo televisivo. A Globo se destacou a partir dali. Quando vejo as reações até hoje de quando falo da mulher saindo da banana [cena da abertura do programa de humor “Planeta dos Homens”] e escuto o nome dela… é sensacional. Aquilo era trabalhar com o máximo de tecnologia daquele momento. Pensar em tempo real dentro do estúdio, fazer tudo aquilo, foi maravilhoso.
Eu fui convidado a viver em uma jaula de ouro. Não precisava mais trabalhar
Elder Dias – A história da composição e do cenário do “Jornal Nacional” é um capítulo à parte em sua história. Hoje em dia, cada vez mais, se passa a sensação de estar dentro daquele ambiente. Foi um modelo da Globo para entrar na casa das pessoas, mas também levá-las para dentro dela também. Era essa a ideia?
A vontade mesmo era sempre fazer com que a pessoa se sentisse sentada ao lado dos atores e apresentadores. Óbvio que, quando se pensava em telejornalismo, antigamente colocavam um ambiente em que havia uma parede e uma mesa. A tendência, cada vez mais, foi de “prender” a pessoa que está em casa àquela programação. Isso ocorre ainda, de forma gradativa.
Cilas Gontijo – Sabemos a importância da Globo em sua vida. Recentemente, ao deixar a emissora depois de tanto tempo, o sr. deu uma entrevista e disse que estava em uma “jaula de ouro”. O que significa isso?
As coisas mudam na vida. E tudo que a Globo virou por meio do meu design, quando o Boni saiu, quando se reestruturou tudo, chegaram outros profissionais. E eles queriam virar a página. Isso é normal, o ser humano quer esses ciclos. Quem chega diz “eu quero ser o Hans Donner agora”. As coisas na vida acabam não sendo assim. Foi uma ocasião, então, que mudou toda a estrutura da Globo e chegaram visionários, pensando que tinham de fazer diferente. Eu fui convidado a viver em uma jaula de ouro. Não precisava mais trabalhar.
Elder Dias – Como ocorreu com outros profissionais da Globo, também.
Muitos outros. Eu fiquei encostado e chamei essa geladeira de “jaula de ouro” (risos). Eu tinha liberdade para fazer o que quisesse, desde que não trabalhasse para concorrente, senão a “minha cara” iria migrar para concorrência.
Elder Dias – Mas o sr. acha que daria certo sair da Rede Globo e trabalhar em outra emissora – por exemplo, a Record?
Para mim, com certeza, não. Eu tenho de estar bem. Eu dei minha vida, meu design e meu estilo para transformar a TV Globo na TV mais sofisticada do mundo.
Elder Dias – Pode-se dizer que é uma relação de amor?
É total. É uma troca tão maravilhosa… Imagina ser um designer que tem ideias legais, encontra um mecenas que lhe diz “pinte a Capela Sistina para mim”. Quem fez isso? Michelangelo, a pedido do papa. Eu encontrei meu “papa”, que se chamava Boni. Eu encontrei um mecenas que falou: “Faz, gasta o quanto quiser, não quero saber quanto custa, só quero uma coisa: que seja o melhor do mundo”. E se precisasse ir para Tóquio para conhecer um cara da Sony que tinha uma máquina maluca que fazia o efeito de puxar o nariz do Chico Anysio, eu estava lá. Eu corria o mundo atrás disso. Se pipocava um gênio matemático no NYIT [New York Institute of Technology, instituto de pesquisa privado localizado em Nova York], onde nascia a computação gráfica, eu estava lá. No Vale do Silício, dois anos depois, quando apareceram a Pixar e a DreamWorks, eu estava lá.
Elder Dias – Dentro do ambiente de televisão há uma concorrência acirrada, um querendo tomar os melhores profissionais do outro. O sr. já chegou a conversar com o Sílvio Santos?
Só o encontrei uma vez em um camarote, e ele disse ser meu fã. Já encontrei com o (João) Saad, da Bandeirantes. Eu cruzo com as pessoas por aí.
Elder Dias – Mas nenhum deles chegou a falar “vamos trabalhar comigo!”?
Ninguém tinha coragem. Eu só escutava gente dizendo que eu poderia ir para Record, boatos assim. Amigos diziam que havia um caminhão de dinheiro esperando por mim. Mas eu sou um cara que não vou inventar um outro estilo. Este é meu estilo e quem olha diz “tem cara de Globo”. Mas não é mais da Globo, agora é do Hans.
Eu consegui ter um arsenal de coisas incríveis, que tocavam as pessoas e hoje fazem as pessoas se emocionarem, no sentido de estar em um ambiente que remete a um determinado tempo. Então, eu não iria me sentir bem em ir para uma Record por dinheiro, eu não precisava me vender. Agora, por acaso, pintou um convite de uma televisão de futebol, que eu estou pensando em ir, é o terceiro maior canal de esporte do mundo.
Cilas Gontijo – O sr. fez todas as aberturas de novelas da Globo a partir de 1975. Qual foi a primeira?
A primeira novela foi “Bravo”, da qual eu fiz a logo e a abertura, que Boni jogou no lixo. Depois, veio “Anjo Mau” e todas na sequência. Aí comecei a aprender como se faz televisão, porque eu não era da televisão, era designer gráfico.
A abertura de ‘Deus Nos Acuda’ fez a pontinha do ‘i’ do impeachment para Collor ser retirado
Elder Dias – E qual foi a mais marcante?
Tem uma, em 1992, que foi a que mais mexeu no sentimento dos brasileiros. Ela se chamava “Deus Nos Acuda”. Fez a pontinha do “i” do impeachment para Collor [Fernando Collor, presidente da República de 1990 a 1992] ser retirado. E, quando ela entrou no ar, a CNN mundial voou para minha sala na Globo, para contar para o mundo que um designer fez um visual que ia ao ar todo dia às 19 horas e que fazia os meninos pintarem as caras com a bandeira do Brasil para pedir o impeachment do presidente.
Elder Dias – Mas teve também a novela que “ajudou” Collor, “Que Rei Sou Eu?”, de 1989…
Sim. Mas a mais “pancada política” foi “Deus nos Acuda”. Quando fiz a abertura de “O Salvador da Pátria”, em 1989, era uma história de alguém do norte do Brasil, da terra seca, que veio crescendo na vida. Eu pintava todos os ambientes da pobreza, ele ficando cada vez mais próspero, até chegar ao palácio em Brasília. E as imagens se encaixaram. Ali, quem estava vindo era o Lula [presidente do Brasil de 2003 a 2010]. E mudaram a história da novela para ele não ser eleito.
Elder Dias – A história da novela foi alterada?
Sim, mudou. Eu coloquei, a mesa do presidente na última cena da abertura da novela. A novela ficou “errada”, porque a vida real não permitiu isso acontecer.
Elder Dias – Mas, e o enredo? Como ficava o “briefing” [roteiro] disso? Ou existia um editorial maior, que pedia para mudar alguma ideia?
Ideias, eu as tinha, mas os “briefings” eram por conta da direção.
Elder Dias – Eram “briefings” do Boni com Roberto Marinho?
(risos) Estamos falando de prédios aqui? (mais risos)
Elder Dias – Tivemos alguns “mea culpa” da Globo, inclusive acerca da edição do debate final da eleição de 1989. Como o sr. viveu essa história? Porque a ideia era arte, mas a arte não foge da vida do povo.
Sabe o que mais me cobravam, quando o trabalho virou atração do mundo? Eu fazia palestras e consultorias na Europa. Na França, a maior cobrança que tinha – lembrando que eu era invejado por ter esse trabalho livre nas mãos – era eu fazer esse trabalho em um país onde as pessoas passavam fome. Puxavam para o lado de uma responsabilidade além do design. Eu estava em uma máquina muito poderosa, sem dúvida, mas se alguém conhece a minha história, o quanto eu lutei e até passei fome na frente da TV Globo, mesmo ganhando uma fortuna que não chegava na minha mão…
Elder Dias – Por quê?
Essa história não cabe aqui. Mas ninguém imagina o quanto eu lutei para ter o melhor emprego do mundo. Quando eu descobri que a porta se abriu para o paraíso, eu não iria contra os interesses. Isso existe e sempre vai existir. Qualquer canal de comunicação tem seus interesses. E eu, como designer, sabia que tinha entrado em uma função em que poucos conseguiram entrar: usar uma linguagem que pode ajudar certas ideias. Mas alguém, depois de fazer uma caminhada como a minha – chegar ao Brasil e tudo mais que ninguém nem sabe – ter coragem de dizer: “é verdade, esse francês tem razão, vou voltar para minha terrinha e fazer logotipos para pequenas empresas”. Era impossível. Minha ideia era vir para o Brasil e aqui ficar só cinco anos. Queria ficar um pouco de tempo em cada continente. Queria ficar aqui e depois ir para a Ásia. A Globo me deixou, depois, ir para todos os lugares fazer exposição e palestras e tudo o mais. Mas eu sonhei em conhecer o mundo. Eu não sou cozinheiro, que de navio vai se mudando, viaja o mundo inteiro. Designer, não. Quando percebi que, após anos lutando, encontrei a realização absoluta de um designer, eu não poderia dizer “Boni, tchau, eu vou embora”.
Elder Dias – Por uma questão de gratidão?
Por tudo. Era gratidão e mais do que isso. Era desfrutar daquilo por que eu tinha lutado. Imagine para mim hoje como é tomar parte de um sonho maior de fazer o palpável. É indescritível.
Elder Dias – A personagem Globeleza envolve sua história pessoal e profissional. Mas aqui nos interessa principalmente a profissional. Como foi a ideia de fazer aquele projeto, num país em que o carnaval é uma paixão nacional? E lembrando que o sr. morava no Rio de Janeiro, que é uma cidade tridimensional, o melhor “design” de cidade do Brasil…
Do mundo (risos). Resumindo, eu sempre fazia as vinhetas com desenhos animados. E o carnaval sempre foi anunciado assim, com figuras gráficas. Um dia, pensei: um país com muitas mulheres tão maravilhosas, por que não usar, no lugar de desenhos, o que Deus fez de melhor, que é a mulher brasileira? Fui convidado a ser júri do concurso Garota de Ipanema, juntamente com o Boni, eu ainda casado com Isadora Ribeiro [modelo e atriz, que fez uma memorável abertura do “Fantástico” e também da novela “Tieta” (1988)]. Estávamos sentados vendo 48 candidatas loiras, sambando, querendo ser a Garota de Ipanema. Daí começou a música de Tom Jobim e elas entram de biquíni, dançando. Imagine, as loiras, era melhor não terem entrado, porque a Valéria Valenssa entrou voando. Ela tinha uma maneira de voar. Era a única mulata, a única da cor do Brasil. O Boni olhou para mim e eu olhei para ela. A Isadora, então, falou “é essa mulher que você está procurando!”.
Elder Dias – E acabou sendo assim em todos os sentidos…
(risos) Eu era muito discreto, não iria lá atrás das mulheres para falar “vem fazer um teste”, deixei passar.
Elder Dias – E a Valéria ganhou o concurso?
Ela ficou em terceiro lugar, ganhou outra. Mas Valéria ganhou o papel da vida – por um tempo, porque depois ela foi dispensada violentamente da Globo, de uma forma cruel que não cabe detalhar aqui. Uma situação ruim. São os erros que acontecem, mas é uma história aberta, ela escreveu um livro.
Mas enfim, naquele momento, pedi a produção para ir falar com ela. Ela apareceu. Tinha 18 anos, apenas. Eu vi que ela era um design de Deus. Nada igual até tal data que tenha visto no Brasil. Fizemos uma vinheta para o carnaval de 1990, já pintando o corpo. E nos dois anos seguintes, eu tentei achar mulheres tão bonitas quanto, e não apareceram. E ela viu minha maneira de ser, de tratá-la no estúdio e sonhava alguma coisa além. E me procurava de vez em quando, mas eu estava com a Isadora, não estava solteiro. Então, não fazia sentido para mim. Então, ela foi embora, não se manifestou mais e depois de dois anos, eu falei: cadê aquela menina? Ela de 18 foi pra 21, virou vendedora de C&A [loja de departamentos], no setor infantil. Tinha desistido da carreira.
O Boni, há três anos, almoçando comigo, se emocionou em lágrimas. Ele disse: ‘Hans, se você não tivesse chegado, a obra não teria acontecido’
Elder Dias – Então, no começo, ela não havia ficado definitivamente como Globeleza, por anos seguidos?
Não. Isso foi apenas no carnaval de 1990. Mas, então Boni inventou Carnaval Globeleza, eu me lembrei daquela garota que me mandava as fotos. Mas ela tinha desistido de ser modelo, tinha virado vendedora. Eu falei para a produção a encontrar. E foram atrás, até que ela apareceu. Quando ela entrou na minha sala, era outra história. Ela tinha encorpado, tinha virado um mulheraço. E aí começou nossa história.
Cilas Gontijo – Como seria a Globo sem Hans e como seria Hans sem a Globo?
O Boni, que fez a Globo, há três anos, almoçando comigo, se emocionou em lágrimas. Ele disse: “Hans, se você não tivesse chegado, a obra não teria acontecido.” Falei então: “Boni, deixa eu te mostrar o que está acontecendo na minha vida”. E mostrei meu projeto para ele. Ele disse para eu esquecer tudo, que minha obra-prima é essa que estou fazendo agora. A Globo vai embora e isso vai ficar.