O secretário de Saúde de Goiânia é médico e ex-secretário de Saúde de São Paulo na gestão de João Dória. Um estudioso da gestão pública, escreveu um livro sobre como solucionar desafios crônicos da Saúde no Brasil, e afirma que Goiânia tem tudo para ser a cidade ideal. Nesta entrevista ao Jornal Opção, o chefe da pasta explica como. 

Italo Wolff — O senhor assume a saúde da cidade em um momento de paralisações na saúde. Quais dificuldades está herdando e qual o prognóstico para a área no município?

A saúde em Goiânia tem condições de ser um exemplo para o Brasil. Primeiro, porque tem uma população que vive em condições melhores do que a média do país. Mesmo nas periferias mais distantes, as pessoas vivem em áreas ordenadas; não é como São Paulo, onde as invasões vão se amontoando e as pessoas vivem em condições muito piores de saneamento, mais aglomeradas. A infraestrutura de Goiânia é boa.  

Em segundo lugar, o orçamento é bom. Temos 54 unidades de saúde da família. Isso é suficiente para a população de 1,5 milhão de pessoas. Temos um orçamento de R$ 1,8 bilhão para a saúde — o bastante para suprir as equipes com que contamos. 

Mas, se o orçamento é suficiente, por que estamos vendo as paralisações e problemas? Má distribuição do dinheiro — problema que estamos corrigindo agora. Durante a pandemia, todos os municípios investiram em tratamento para a alta complexidade, ou seja, leitos de UTI. 

No cenário ideal, o município tem a Secretaria de Saúde e o estado tem a “Secretaria da Doença”; ou seja, o município cuida de manter as pessoas bem ao prevenir o agravamento das condições, e o estado cuida dos casos complexos. Segundo a regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS), as prefeituras são responsáveis pela atenção primária, promovendo, protegendo e recuperando a saúde. Na área da Saúde, a cidade cuida de campanhas de conscientização do auto cuidado, de evitar doenças com ações preventivas, de identificar as doenças fase precoce. 

A esfera responsável por cuidar de casos complexos é a estadual. É assim porque os casos mais graves são mais raros. Anualmente, o Brasil realiza 350 cirurgias cardíacas a cada milhão de habitantes. Isso significa que uma única equipe de cirurgiões especializados nesta área basta para suprir uma cidade com um milhão de moradores, fazendo uma cirurgia por dia. Quantos municípios têm mais de um milhão de habitantes? Muito poucos — é necessário juntar a população dos estados para ter demanda o suficiente e recursos o bastante para atender a população, caso contrário, os municípios pequenos ficam sem este serviço. 

Mas o que acontece hoje é o inverso. Mensalmente, o município teria de gastar em atenção básica R$ 35 por pessoa. Estamos gastando R$ 8. O gasto em alta complexidade deveria ser de R$ 15 por pessoa ao mês, nós estamos gastando R$ 41. A pandemia inverteu a ordem, porque isso foi necessário em um momento. Agora, é hora de voltar a investir mais na atenção básica, o que já estamos fazendo. 

Estamos recuperando as unidades básicas de saúde (UBS), focamos em remunerar adequadamente os agentes comunitários e estamos criando programas de incentivo e de promoção de saúde. Tudo poderá ser feito se tivermos os recursos que hoje vão para a alta complexidade, que já não necessitamos mais.

” Vamos ficar com hospitais públicos remunerados pelo orçamento público, sem incentivo a aumento de gastos ou riscos de subfinanciamento”, diz Wilson Pollara | Foto: Leoiran / Jornal Opção

Italo Wolff — A cidade então tem recursos? Por que o prenúncio de paralisação dos agentes comunitários de saúde?

Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lcp101), os municípios só podem gastar 60% da arrecadação com pessoal. Em 2022, o Congresso aprovou o piso dos agentes de saúde, que corresponde a dois salários mínimos, e em abril deste ano o Supremo Tribunal Federal o validou. Somos obrigados a pagar R$ 2.600, mas ninguém aqui recebe apenas isso. Há quinquênios e adicionais por insalubridade, entre outros benefícios. A média salarial é de R$ 4 mil. 

Incidindo os esses benefícios e adicionais sobre aumento do salário base que foi determinado pelo Congresso, vamos ultrapassar os 60% do orçamento pessoal que a Lei de Responsabilidade Fiscal permite. Nossa argumentação é de que já pagamos muito mais do que o exigido por lei. Mas toda a paralisação é pela incidência dos adicionais, que, no final, vão resultar em um aumento de cerca de R$ 200 por mês por funcionário. 

A prefeitura e a secretaria têm recursos, não estamos quebrados, mas não podemos pagar o aumento nos benefícios porque isso quebraria a Lei de Responsabilidade Fiscal. Já pagamos mais do que a lei exige. Acredito que parte da paralisação se explica por interesse político. Em vésperas de eleições, alguns setores têm interesse de criar o caos. 

Edson Leite Junior — E nas maternidades? Por qual razão houve suspensão dos serviços?

Os serviços nunca chegaram a ser totalmente suspensos. O que acontece é que as maternidades foram contratadas, talvez, em um período de abundância de recursos da prefeitura. Se contratou serviços caros, de excelente qualidade, mas que são impossíveis de serem oferecidos a toda a população. Temos necessidades mais básicas para atender o público amplo. 

Por exemplo: há programas em que a parturiente fica internada 21 dias. É um programa excelente, mas é impossível oferecer isso a todas as parturientes, e um dos princípios do SUS é a universalidade. Isso significa oferecer a todos, sem distinção. Se você é obrigado a oferecer algo para todos e o recurso é finito, temos de ser racionais nos gastos. 

Outra parte do problema se explica, novamente, pelo gasto com alta complexidade. A UTI neonatal da maternidade Dona Iris tem atualmente dez crianças internadas. Apenas duas são de Goiânia. Por quê? Porque poucas cidades têm recursos para criar UTIs neonatais e, naturalmente, enviaram esses pacientes para cá. Mas isso deveria ser da alçada do Estado. 

Italo Wolff — Existe possibilidade de greve na saúde de Goiânia?

Não. Nenhuma. Zero.

Edson Leite — Qual avaliação o senhor faz das Organizações Sociais (OSs) na saúde pública?

Eu vivi quando as OSs foram criadas. Quando Mário Covas quando assumiu o governo de São Paulo, em 1995, ele tinha apenas 17 esqueletos de hospitais pelo estado. Covas tinha dinheiro para acabar de construir esses hospitais, mas não tinha condições de contratar pessoal para operar todos eles, justamente pelo limite da folha de pagamento imposto pela lei da responsabilidade fiscal. 

A solução pensada por Mário Covas foi a criação da figura intermediária. Em vez de contratar um médico, eu contrato sua consulta — assim, o gasto não é considerado como salário em uma folha de pagamentos. Nas OSs, um radiologista não é pago como assalariado, mas recebe pelos raios-x que produz.

O diretor regional de saúde estima os serviços necessários em uma região e faz um rol. Esse rol é uma espécie de licitação para serviços, uma listagem dos procedimentos em demanda que é jogada na praça. As OSs interessadas fazem os orçamentos e o governo contrata aquela que pratica o menor preço. 

Essa foi a solução encontrada naquela época. Mas é proibido obter lucro sobre o dinheiro público, portanto, determinaram que as OSs determinou só poderiam ser empresas filantrópicas. O que aconteceu? Grandes empresas privadas de saúde buscaram a filantropia de pequenas santas casas no interior como fachada e atuar normalmente. Muitas dessas manobras foram descobertas e o modelo OS perdeu credibilidade. 

Entretanto, o maior problema do modelo não tem a ver com a filantropia ou o lucro privado. Tem a ver com a remuneração por resultado. Por mais filantrópica que uma instituição seja, é impossível trabalhar com saúde sem algum lucro que te permita reinvestir em seus serviços, ou o negócio estará sempre precário. A nova lei das OS (nº 13.019) atualizou o modelo. 

Agora, as OS são contratadas via licitação. Se ela for eficiente e obtiver lucro, declara o lucro e paga os impostos como os demais serviços, e está tudo bem. A nova legislação modernizou o modelo e considero que resolveu grande parte dos problemas com as OS. Antes, as empresas disfarçaram o lucro, que saía da companhia de maneira espúria. Hoje, não vemos mais casos como esses. 

Temos 28 OSs querendo ser cadastradas. Não vamos cadastrar nenhuma. Não precisamos mais de OSs. Na Saúde, às vezes, é necessário ultrapassar o limite de gastos com pessoal porque dentro de um hospital 85% do custo é com Recursos Humanos (RH). Como se coloca 85% dos custos com folha dentro de uma estrutura que só aceita 60%? Não cabe. Médico, enfermeiro, limpeza, segurança, lavanderia, laboratório, é tudo gente. 

Italo Wolff — Ainda sobre a participação privada na saúde pública: frequentemente ouvimos que a tabela SUS está defasada. O senhor acredita que é necessária uma atualização?

Não. Por que existe a tabela SUS? Porque antes de o SUS ser implementado, já existia um substrato: havia uma coisa chamada Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). O Inamps não tinha estrutura, ele apenas comprava serviços privados. Pagava por consulta, pagava por cirurgia, e essa é a razão de terem criado uma tabela SUS. Hoje, não tem que ter tabela SUS.

O hospital e o médico têm de ganhar por existir. O poder público tem de pagar para o hospital funcionar, independentemente da contingência. Imagine se pagássemos os bombeiros pelo número de incêndios apagados. Se não tiver incêndio, o faturamento cai? Se for assim, toda semana vamos ver as latas de lixo da cidade pegando fogo. 

É a mesma coisa com o hospital: a estrutura não pode ganhar pelo que faz, porque é cara para se manter e, às vezes, a demanda estará baixa; mas quando precisarmos dela, é melhor que exista. A saúde tem de estar disponível, bem remunerada por existir em boas condições. 

O Inamps não tinha estrutura própria, mas hoje nós temos uma estrutura enorme. O que pretendo fazer em Goiânia é colocar essa estrutura para funcionar em boas condições. Temos uma Santa Casa que está sendo totalmente recuperada e poderá atender quatro vezes mais do que atende hoje. Sem contratar nova OSs. Aumentar o número de atendimentos é só questão de investir no que a prefeitura já possui.

Existiu uma forte tendência de diminuição do investimento nos leitos públicos em função da contratação dos leitos privados. A lista de hospitais privados conveniados à Prefeitura é enorme. Estamos revertendo isso. Vamos ficar com hospitais públicos remunerados pelo orçamento público, sem incentivo a aumento de gastos ou riscos de subfinanciamento. 

Wilson Pollara: “A estrutura não pode ganhar pelo que faz, porque é cara para se manter e, às vezes, a demanda estará baixa; mas quando precisarmos dela, é melhor que exista” | Foto: Leoiran / Jornal Opção

Edson Leite — O que levou o senhor a aceitar o desafio de assumir a saúde de Goiânia?

Goiânia para mim não foi um desafio, foi uma oportunidade. Eu tenho um livro sobre gestão em saúde pública chamado “A Saúde tem Cura”, em faço um histórico dos problemas da área no Brasil e uso dados para mostrar como solucionar essas questões. Quando aceitei o convite para me tornar secretário, tive a clareza de que podia apontar saídas para os problemas de Goiânia com as melhores práticas em gestão de saúde que reuni para escrever o livro. Pretendo aplicar tudo que estudei para mostrar como é possível fazer funcionar a saúde pública municipal. 

Acredito que Goiânia tem tudo para superar qualquer desafio: a equipe é espetacular, a estrutura é muito boa, o orçamento é bom. Daqui de minha sala, posso ver as câmeras das recepções das unidades de saúde; fico olhando para saber se estão lotadas. Qual outra cidade tem esse recurso? Recebo todos os dias um relatório com o número de paciente por condição, hospital em que estão internados, a complexidade. Sei exatamente onde investir. Sei se são de Goiânia ou de fora — tenho tudo de que preciso para fazer um bom trabalho.

Italo Wolff — Existe alguma mudança urgente que a Prefeitura tem dificuldade de implementar?

Sim. Gostaria muito que as pessoas soubessem usar o SUS. As pessoas não sabem a diferença entre UBS, uma Unidade de Pronto Atendimento (Upa), o que é um Centro de Atenção Integrada à Saúde (Cais), o que é um Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Tudo seria muito mais fácil se as pessoas soubessem quem é seu agente comunitário de saúde, quem é o médico da família, qual sua UBS, qual sua Upa. 

Se sua criança está com febre, não a leve na porta do Hospital de Urgências de Goiás (Hugo). Leve na UBS. Se está com o braço quebrado, vá à Upa. Se está em estado grave, chame o SAMU e ela será levada ao Hugo. Precisamos ensinar os cidadãos a usar esses serviços e estamos criando programas para divulgar essas informações, mas precisamos de uma mobilização social que a Prefeitura sozinha não é capaz de criar.