Elder Dias, Euler de França Belém e Giovanna Campos

O ataque inédito, surpreendente e mortífero do Hamas deve atrasar os acordos de paz de Israel com países árabes, como a Arábia Saudita, e isso já torna o ato terrorista um sucesso para seus responsáveis. Essa é a visão do professor Danillo Alarcon, do curso de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), e que vai ao encontro do que pensam os estudiosos do conflito – aliás, ele é especialista em Oriente Médio e, portanto, um desses nomes, também.

Alguns pontos que Alarcon coloca e que são importantes de se observar: o Hamas não é apenas um fantoche do Irã; o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, vai precisar trazer o centro para seu governo se quiser sobreviver politicamente; e uma solução definitiva só vira quando a comunidade internacional, de fato, resolver atuar de forma concreta na questão.

Graduado em Relações Internacionais pela Unesp, Danillo Alarcon fez mestrado na mesma área na Universidade de Brasília (UnB) e depois se doutorou em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Nesta entrevista ao Jornal Opção, ele se aprofunda na dinâmica do conflito que envolve a criação dos Estados de Israel e da Palestina de acordo com a Resolução da ONU de 1947, mas cuja implantação como acertada nunca foi aceita por árabes nem por judeus.

Euler de França Belém – O ataque do Hamas pode ser visto realmente como uma tentativa de evitar a normalização das relações de Israel com os países árabes?

Esse, com certeza, é um dos motivos principais. Claro que outros fatores estão em conjunto nessa crise atual e na forma, inclusive, como o Hamas conseguiu atacar o Estado de Israel. Mas é um lembrete especialmente para os países árabes que têm normalizado as relações com Israel de que ainda existe uma resistência palestina e de que ainda há questões em aberto nessa pauta, que já foi tão cara para os países árabes e hoje, de alguma forma, ficou secundarizada por conta dessa abertura de Israel em relação a seus vizinhos. É uma forma também de contrapor essa criação de eixos de Israel com países árabes, especialmente esse acordo – que, de alguma forma vai sair, mas que certamente agora vai se retardar – com a Arábia Saudita. E é uma mensagem clara do Irã de que há forças ali que se opõem a esse tipo de acordo.

É importante ressaltar que o Hamas não é necessariamente um fantoche do Irã. O Hamas tem suas dinâmicas políticas próprias, que são advindas da dinâmica doméstica do movimento palestino, mas de fato existe um eixo que se opõe a essa normalização com Israel, composto por países e grupos distintos, com seus diversos interesses.

Jornalistas Euler de França Belém, Elder Dias e Giovanna Campos entrevistam professor Danillo Alarcon | Foto: Leoiran / Jornal Opção

Euler de França Belém – Uma operação dessa magnitude sofrida por Israel teria como acontecer ser o dedo do Irã? Parece que só o dinheiro do petróleo poderia bancar uma quantidade imensa de foguetes, milhares, que foram disparados e que são caríssimos. Como o sr. vê isso?

Quando aponto que o Hamas não é um fantoche do Irã, quero indicar que eles não estão comprando a ideologia iraniana. Eles têm uma pauta política e uma proposta de atuação em relação a Israel que é própria, moldada antes, por exemplo, do regime teocrático de Teerã. A revolução iraniana é de 1979 e, mesmo que o Hamas como o grupo tenha surgido em 1987, o substrato ideológico que o sustenta é de muito antes, vem da vertente da Irmandade Muçulmana do Egito dos anos 1920. Ou seja, essas ideias já circulavam na região.

Obviamente, para fazer uma ação nesse sentido, o Hamas precisa de fato de apoio, de comprar armamentos de alguma localidade, que pode ser do Irã. Só que há outras fontes de financiamento também. Na região do Golfo Pérsico, o Catar é um dos Estados que dialoga e trabalha diretamente com o Hamas. Precisamos colocar em perspectiva que chega dinheiro para a Palestina – tanto para a Cisjordânia quanto para a Faixa de Gaza – para a resolução dos problemas mais imediatos da população. Como é o Hamas que controla a região de Gaza, esse dinheiro passa pelas mãos deles, pelo controle deles. Isto é, o grupo têm uma fonte de financiamento que é muito mais ampla do que só o Irã. Seria até incongruente dizer que o Hamas atua só com o objetivo de responder aos interesses do Irã na região. Há uma multiplicidade de interesses ali, que é o que de fato complica o problema.

Algumas notícias do início deste ano diziam respeito ao descontentamento da população de Gaza com o aumento dos impostos. E quem coleta os impostos na Faixa de Gaza? O Hamas. Isso, inclusive, pode ser um dos indícios de que havia uma operação sendo orquestrada, porque, para executá-la como ocorreu agora precisariam de dinheiro.

Elder Dias – Então Israel não teria como diretamente dizer acusar o Irã de financiar o ato terrorista, porque o Hamas tem outras fontes para obtenção desses recursos?

Perfeitamente. Eu acrescentaria que, se Israel focar novamente nesse jogo de narrativas de culpar o Irã – o que, de fato, eles não fazem com tanta frequência, sendo mais um discurso da comunidade internacional que quer se opor ao Irã na região –, eles não resolverão o problema. Isso porque o que movimenta o Hamas e os partidos fundamentalistas islâmicos na região são problemas diretamente vinculados à Autoridade Palestina, como o governo palestino referendado no Acordos de Paz de Oslo, que fizeram recentemente 30 anos, que é deslegitimado e não tem mais apoio da população. Há também o problema da pressão cada vez maior sobre os palestinos da Cisjordânia – a gente precisa ressaltar que hoje o governo de Israel é de extrema direita e uma parcela significativa do gabinete é contra a negociação e a criação de dois Estados [Israel e Palestina], embora essa seja uma situação acordada internacionalmente desde a Resolução da ONU de 1947 [na 2ª Assembleia Geral da ONU, quando houve a aprovação da criação dos Estados na região, com derrota dos países árabes, que votaram contra]. Nesta nova crise [gerada pelo ataque terrorista do Hamas], muitos dos grandes países, como China e Rússia, que têm tido posições mais comedidas, é discutir esta situação: a comunidade internacional concordou com a criação de dois Estados.

Elder Dias – Há pesquisas entre os habitantes da Faixa de Gaza que apontam ser minoria, algo entre 15% e 20%, o número de palestinos que apoiam o Hamas…

Euler de França Belém – Mas é sempre importante dizer que o Hamas foi eleito.

Sim, o Hamas foi eleito em 2006 como uma resposta à incapacidade da Autoridade Palestina – na época e até hoje controlada pelo Fatah [partido político palestino, considerado moderado], por Mahmoud Abbas [presidente da Autoridade Palestina] – em prosseguir com o processo de criação do Estado da Palestina. A eleição do Hamas foi como um voto de protesto contra o grupo que está no poder e não conseguiu atingir o objetivo de criar um Estado economicamente viável para os palestinos – aliás, exatamente o que o Brasil repete em seus discursos nas Nações Unidas desde sempre, independentemente da ideologia de quem esteja no poder em nosso País.

A questão é que esse descontentamento levou um grupo fundamentalista ao poder. A gente nunca pode se esquecer de que o Hamas vem dessa linhagem de questionar, com base nessa perspectiva político-religiosa, a própria existência do Estado de Israel, algo com que a Autoridade Palestina, controlada pela Fatah, havia concordado quando assinou os Acordos de Oslo. Então, a partir de 2007, o Hamas passa a controlar de fato a Faixa de Gaza e, como grupo fundamentalista islâmico, não estão preocupados com democracia, com alternância de poder, com novas eleições. Assim como o Fatah, controlando a Cisjordânia, também não tem interesse em processo eleitoral.

Isto é um elemento que é interessante da gente notar: existe um discurso por parte dos israelenses de que não há uma contraparte democrática para negociar os acordos de paz, mas os governos democraticamente eleitos de Israel – e, de fato, Israel é uma democracia – têm passado cada vez mais a mensagem de que não querem encontrar um interlocutor. Na última década, quando houve tentativas de negociação e de reconciliação com o Fatah e o Hamas, para que houvesse uma frente palestina conjunta para negociação, Israel sabotou o processo. Portanto, de fato é um cenário muito complexo.

Euler de França Belém – Como base religiosa dentro do islamismo, o Hamas é sunita e o Irã é xiita. Entre si, pela lógica, seriam inimigos. Então, qual passa a ser a lógica dessa aliança? Apenas combater Israel?

Boa parte dos grupos islâmicos que usam a mensagem religiosa de forma política tende a não enfatizar essas diferenças entre sunitas e xiitas. O próprio Estado Islâmico, que se formou na última década e que vimos as atrocidades que cometeram, se afastaram da Al-Qaeda porque esta não fazia tanta questão dessa diferenciação. A religião xiita, para o Irã, funciona mais como um fator identitário, até porque a cultura iraniana é secular, é uma nação de tradição imperial muito longa. Quando o islamismo chega por lá, se mistura a esses elementos culturais e cria uma roupagem própria. Então, apesar das diferenças entre sunitas e xiitas serem importantes no contexto macropolítico dos países muçulmanos, isso não é o elemento principal.

O Hezbollah, que é um partido xiita no Líbano, tem os mesmos interesses e as mesmas agendas, por exemplo, que o Hamas. Eu, então, tendo a diminuir bastante o papel das diferenças religiosas e enfatizaria os interesses geopolíticos dentro de uma realpolitik. Costumamos entender que os países ocidentais em seu modelo tradicional de Estado calculam seus interesses em termos de poder. Esses grupos também calculam. O elemento religioso pode ser importante em alguns aspectos, mas nesse ponto passa por esse cálculo.

Euler de França Belém – De que consiste a economia da Palestina?

É preciso distinguir Cisjordânia e Faixa de Gaza, as duas regiões em que estão os palestinos. Gaza é cercada e sofre bloqueio por parte dos israelenses desde 2006. Israel ocupou a Faixa de Gaza na guerra de 1967 e essa ocupação perdurou até 2005, quando, unilateralmente, Israel decidiu sair como um sinal de boa vontade nos processos de negociação. Isso agora gerar provavelmente muito debate dentro do país em relação às opções a serem tomadas: se Israel invade Gaza e a ocupa para acabar com o Hamas – e tem capacidade militar para isso –, o que vão fazer depois? Vão continuar em Gaza, como era até 2005? Ou quem deixarão no poder, se saírem? São questões em aberto.

Agora, respondendo, Gaza sobrevive hoje de pesca, de uma forma bastante limitada, e também de ajuda Internacional. Já a economia da Cisjordânia é mais plural, funcionando muito imbricada com o Estado de Israel. É importante ressaltar que o mapa tradicional do que deveria cada Estado já não é uma realidade há muito tempo. Os árabes palestinos foram dominados pelo Egito e pela Jordânia até 1967. A Faixa de Gaza tinha ficado com o Egito no final da guerra de 1948 e a região da Cisjordânia, com os jordanianos até 1967. Depois, esses territórios foram ocupados por Israel. O processo que Israel fez de retirada de Gaza foi exceção, na verdade, porque também havia colonos lá, tal como ocorre na Cisjordânia. Tanto que a retirada desses assentamentos é tratada com muito pesar e trauma. Os analistas israelenses moderados, que fazem uma análise mais profunda do conflito têm esse pesar com a forma como a desocupação de Gaza aconteceu, porque foi uma retirada de cidadãos israelenses de suas comunidades inseridas ali, onde eles habitavam, em prol de mensagem política.

Na Cisjordânia, o que há são bolsões com cidades e aldeias palestinas cercadas de controle israelense por todos os lados. Os palestinos não têm direito a circular nas mesmas estradas que os israelenses no território que internacionalmente é reconhecido como parte do Estado da Palestina. É realmente uma situação muito esdrúxula. Estive na região duas vezes, a turismo, mas conheci uma boa parcela de Israel e nessas cidades da Palestina – Nablus, Jenin, Ramallah, Jericó, Belém e Hebron – se circula pelas estradas dos israelenses e, de longe, vê os muros [que cercam os palestinos]. Estamos falando de milhões de pessoas que vivem nessa situação. E essas pessoas precisam sobreviver, precisam de emprego. São sociedades que têm contato uma com a outra, ainda de uma forma limitada. Então, a mão de obra da Cisjordânia trabalha para israelenses. Israel vinha concedendo – porque agora isso provavelmente vai ser revertido – licenças de trabalho para palestinos de Gaza trabalharem em Israel. O último dado, bem recente, era de que Israel já tinha concedido quase 20 mil licenças para palestinos de Gaza trabalharem diariamente em Israel, fazendo essa transição de fronteiras. Para Israel, isso é um passo que eles consideram grande no sentido de apaziguar a situação, mas para os palestinos, evidentemente, isso não responde aos anseios deles.

As lideranças políticas de ambos os lados e de todos os vieses políticos foram incapazes de trazer respostas

Euler de França Belém – O sr. acha que há alguma saída para esse conflito, fora da efetivação do Estado da Palestina?

Essa é uma das perguntas mais difíceis. Um instituto palestino de opinião pública, em todos os seus levantamentos mais recentes, indica que que a crença na possibilidade de criação de dois Estados vem perdendo respaldo entre os próprios palestinos. Dados do semestre passado apontam que só cerca de 27% dos palestinos acreditam na possibilidade de dois Estados. Ou seja, a situação não condiz com o discurso teórico e de princípios que a comunidade internacional defende. A criação de dois Estados hoje dependeria de uma reviravolta na perspectiva do que os palestinos querem, do que a comunidade internacional quer e, principalmente, na perspectiva do que os israelenses querem. Há uma percepção mais ampla da realidade da ocupação, algo que nem era também tão amplo assim entre os israelenses. A gente tem de lembrar que os israelenses judeus e os israelenses árabes têm contato entre si e com os árabes palestinos na Cisjordânia e em Gaza, então entendem um pouco mais essa dinâmica.

Mas a sociedade israelense é voltada para a resolução de seus próprios problemas, como toda sociedade de alguma forma é. Há um certo apagamento das necessidades e das vontades do outro. É interessante pensar que o discurso que os palestinos têm pleiteado hoje é o mesmo que os judeus tinham antes da criação do Estado de Israel e dos israelenses como nacionalidade. Eles querem o que os judeus queriam antes: um território de um tamanho digno, no qual eles possam desenvolver suas atividades econômicas, políticas, culturais etc. Há essa similaridade, mas há uma construção de não ver o outro lado. Uma das grandes questões que acompanhamos ao longo deste ano foi a tentativa de Netanyahu subverter o Judiciário. Os israelenses foram em massa às ruas e assim estavam até o último fim de semana, protestando contra essas medidas, que de alguma forma querem controlar o Judiciário por parte de um governo que tem o Legislativo e o Executivo em uma única mão.

Uma das questões é como a realidade da ocupação sempre foi pouco vista nessas manifestações. Em uma posição pessoal, a criação dos Estados precisa ser repensada junto com os atores que estão no terreno. É preciso escutar, por exemplo, a voz dos palestinos que não acreditam mais nessa solução. É preciso escutar também a voz desses israelenses que também não acreditam nisso, que defendem a ocupação da Cisjordânia. Se defendem isso, para onde acham que essa população palestina da Cisjordânia iria? Estariam dispostos a construir um Estado plenamente democrático, com igualdade para palestinos e israelenses, o que seria a utopia da utopia? Se essa solução de criação dos dois Estados não tem mais respaldo na própria população é porque as lideranças políticas de ambos os lados e de todos os vieses políticos foram incapazes de trazer respostas. A direita e a esquerda de Israel já se revezaram no poder e nenhuma resolveu a situação. Entre os grupos nacionalistas laicos e os islâmicos que representam os palestinos, também nenhum conseguiu avançar com essa questão. Então, é uma situação que se tornou, até o momento, inviável. Sem a atuação concreta da comunidade internacional nada vai mudar.

Giovanna Campos – O sr. acredita que a atuação da ONU na mediação do conflito desde a criação de Israel nunca chegou a ser efetiva ou foi perdendo a força com o passar dos anos?

A ONU atua na situação de diversas maneiras. Ela tem seus seis órgãos tradicionais e os estabelecidos pela Carta e as agências especializadas que atuam em situações pontuais. Uma das coisas que todo mundo sempre questiona e critica a ONU – e também os Estados Unidos e Israel – é sobre a atuação do Conselho de Segurança. Pouquíssimas vezes o conselho conseguiu aprovar resoluções condenando Israel por atos no conflito. Há denúncias, relatórios, várias provas de que Israel – e o Hamas também, claro – comete crimes de guerra. Como os EUA têm poder de veto e para a dinâmica de sua política doméstica a defesa de Israel é muito importante tanto para democratas quanto para republicanos. Então, essas pausas costumam ser deixadas de lado.

Já o Secretariado-Geral da ONU no geral, um dos órgãos da ONU, mas independente, tem tido uma posição sempre muito crítica dessa desproporcionalidade da força que Israel usa especialmente contra Gaza e notadamente contra civis. Há uma agência específica da ONU que lida diretamente com os refugiados palestinos, um fenômeno trágico que aconteceu com o processo de criação de Israel e sua consolidação. Então, essa quantidade de refugiados tem uma agência específica que atua diretamente em Gaza, por conta de suas especificidades. Se hoje Gaza tem uma população de mais de 2 milhões de habitantes, parte é de refugiados de outros conflitos, não são originalmente de lá. Assim também, parte das comunidades que inflaram as cidades na Cisjordânia – Jenin, Nablus, Ramallah, entre outras – é de refugiados que vieram da região onde hoje é de fato o Estado de Israel. A atuação da ONU, nesse sentido, é múltipla e condizente com o que cada órgão ou agência especializada tem obrigação de fazer.

Vejamos a situação do Conselho de Segurança. É um órgão em que não há obrigação de se chegar em um consenso, tanto que sua estrutura é montada com o sistema de veto, para quando os interesses de algum Estado estão sendo ameaçados. Mas há esses outros espaços onde se pode falar pelos palestinos, como a Unesco, a participação como observador na Assembleia Geral da ONU, que é outro órgão fundamental da ONU.

Giovanna Campos – Mas há esse reconhecimento, por parte do Conselho de Segurança, de que Israel usa forças desproporcionais contra o povo palestino?

Sim, isso já conseguiram aprovar. São poucas resoluções sobre isso. Mas não há nenhuma medida prática, porque aí entra a situação da autodefesa. Ou seja, Israel, que também é atacado, então pode responder.

Euler de França Belém – E a posição brasileira sobre o caso, como o sr. avalia?

O Brasil sempre teve uma posição na maior parte das vezes ponderada sobre a situação de Israel e Palestina. Nossa diplomacia não toma como posição de princípio classificar grupos como terroristas, a não ser que haja um entendimento geral da ONU nesse sentido. Isso faz parte do universalismo, um dos princípios defendidos pelo Itamaraty como base para a nossa política externa. É isso, diga-se de passagem, não é uma posição convencional – ou seja, seguir o que foi votado na ONU porque é “mais fácil”. É que temos comunidades no Brasil que são descendentes de palestinos e temos uma comunidade judaica forte, que foi criando vínculos com o Estado de Israel. Temos ainda comunidades de libaneses que têm interesse e contato direto com o Líbano. Então, estamos falando de uma posição pragmática que, inclusive, protege cidadãos brasileiros.

Tal como o governo brasileiro foi capaz, em 2006, de fazer no primeiro mandato do presidente Lula uma operação de repatriação de cidadãos brasileiros que estavam no Líbano, estamos fazendo agora essa tarefa de retirar os brasileiros que estão na região, tanto em Gaza quanto em Israel, com uma maior facilidade. O Brasil aposta bastante – isso é algo marcado em nosso discurso diplomático – que aos palestinos também cabe um Estado economicamente viável, algo é reforçado justamente pela situação do terreno. A Faixa de Gaza é um enclave cercado, por isso é quase irônico Israel falar em cercar Gaza, algo que fazem há mais de dez anos.

Euler de França Belém – Israel controla basicamente todos os acessos e toda a estrutura de Gaza, tanto que cortou água, combustíveis e energia elétrica. Então, Israel é quem fornece tudo para os palestinos da região?

Sim, porque Israel toma conta de praticamente todos os acessos. Tem uma passagem de Gaza para o Egito, o restante é com Israel. São questões que, se fossem colocadas no centro da roda, fariam pensar a comunidade Internacional e os atores regionalmente envolvidos. Primeiro ponto: Israel tem esse controle das Fronteiras de Gaza e de tudo o que basicamente acontece ali para a vida da população. Se cortam a energia, a população de Gaza vai ficar sem energia. Não tem alternativa. Se eles cortam os combustíveis, os hospitais de Gaza vão ficar sem combustíveis para funcionar. Então, como a inteligência israelense não percebeu o que estava para acontecer? Essa é a grande pergunta.

Elder Dias – Existe uma expectativa sobre o que vai ser da popularidade de Netanyahu diante do que aconteceu, que é visto como o 11 de Setembro israelense. O que o sr. prevê?

Hoje não há alternativa para Netanyahu a não ser responder aos ataques terroristas. Não há outra carta na mesa. A questão para ele é que seu governo só conseguiu ser formado após uma aliança com a extrema direita. São pessoas que atacam princípios sobre os quais Israel construiu sua imagem de ser a única democracia liberal do Oriente Média. São pessoas misóginas, grupos que defendem orações em ambientes separados para homens e mulheres, como ocorre entre os radicais muçulmanos. Esse grupo de ultradireita que apoia Netanyahu e sustentando seu governo até agora é um óbice aos acordos geopolíticos que ele quer fazer em relação ao Oriente Médio. É um grupo que quer a anexação total da Palestina e que traz o maior impasse para um acordo de paz com a Arábia Saudita. Dentro da situação de crise, o primeiro-ministro está tentando trazer elementos do centro para sua base. A partir daí, ele poderia “chutar” essa franja minoritária da extrema direita para fazer um governo de coalizão nacional.

Isso, porém, não vai impedir que haja questionamentos sobre o ataque terrorista em si. O consenso político para a ação é algo diferente da investigação sobre o porquê o atentado terrorista aconteceu. Quando houve os atentados de 11 de Setembro, perceberam que havia “gaps” [falhas] profundos do sistema de inteligência dos EUA.

Cristãos radicais também visualizam, em suas perspectivas apocalípticas, que os judeus serão convertidos

Elder Dias – Uma aliança com o centro significaria uma guinada para a moderação do discurso de Netanyahu?

Haveria uma moderação política doméstica, para fazer um governo mais de centro-direita. Isso internamente, não necessariamente que evitariam medidas muito duras – como já estão fazendo, aliás – em relação aos palestinos, particularmente os que vivem em Gaza. Mas ele precisa de conciliação para se manter no poder e para tocar seu projeto de aproximação com a Arábia Saudita, e formatar um eixo como contraposição ao Irã na região. E ele precisa fazer isso de forma rápida porque é um grande conflito em curso. Em meio a isso, há um temor de que o Hezbollah entre no jogo. E esse grupo libanês tem uma capacidade de fogo infinitamente maior do que o Hamas. Em 2006, o Hezbollah já enfrentou Israel com certa força e desde então seu poderio só aumentou. Outro risco são levantes de grupos militantes palestinos da Cisjordânia, desgostosos da política do Fatah, a qual, de fato, já perdeu totalmente a credibilidade.

Por fim, há a preocupação com a violência dentro de Israel, de israelenses árabes contra israelenses judeus e vice-versa, o que é alimentado pelos extremistas judeus que compõem a franja radical de apoio ao governo. Eles têm tomado uma coragem cada vez maior. Dias antes do ataque terrorista, um grupo de cristãos sofreu cusparadas de judeus mais radicais em Jerusalém.

Israel tem um turismo cristão muito forte e vem fazendo um lobby, nos EUA e no Brasil, com os grupos pentecostais para receber apoio, vendendo uma imagem de uma nação imaginária. Hoje, Israel está no século 2021, formado por uma ideologia nacionalista muito contemporânea, não a de 2 mil atrás.

Euler de França Belém – Por que evangélicos brasileiros de várias denominações, como a Igreja Universal do Reino de Deus, são tão interessados em Israel?

Isso ocorre porque tentam emular símbolos do judaísmo. O evangelismo surge no século 19, nos EUA – ou seja, antes da criação de Israel –, tomando a perseguição aos judeus por adorarem ao Deus que é o Deus do povo escolhido. Mas o que esses cristãos radicais também visualizam em suas perspectivas apocalípticas é de que os judeus serão convertidos, ninguém está olhando para eles os aceitando como judeus até o fim da vida. Isso porque esses cristãos seriam, segundo eles, o segundo povo eleito por Deus e, no contexto, os Estados Unidos, a segunda terra eleita e abençoada por Deus. Esse movimento, obviamente, vai mudando ao longo do século 20, mas chega no século 21 muito vinculado a essas noções de que profecias bíblicas só se realizam com a vitória de Israel contra seus inimigos. É uma perspectiva apocalíptica que passa pela emulação de símbolos do judaísmo, da recuperação de uma retórica do Antigo Testamento e até de certa desconsideração de partes que são do Novo Testamento.

Euler de França Belém – Alguns veículos da imprensa internacional publicaram que o sistema de inteligência e o Exército israelense estão em crise com o primeiro-ministro [Netanyahu]. Não se fala que houve alguma negligência proposital, mas pode ter havido alguma “suavizada” na apuração?

Eu não apostaria tanto nisso, porque há coisas mais simples que explicam. Alguns falam que havia uma autoconfiança de Israel em relação a seu sistema de segurança. Eu diria que é uma arrogância.

Elder Dias – O fato de ter uma rave praticamente ao lado do muro da fronteira com Gaza é um sinal de confiança de que não haveria qualquer risco de ataque, não?

Sim, sim. Essa é uma questão importante, porque esse ataque [à rave] é uma das coisas que vêm sendo mais comentadas. Ao mesmo tempo em que se dá uma visibilidade grande para a ação terrorista do Hamas, também há uma reação negativa muito grande. É assim que o terrorismo funciona, precisa de publicidade.

Euler de França Belém – Como se explica a excelente relação da Rússia com Israel?

Israel e Rússia já tiveram, na época da União Soviética, seus percalços e sempre havia o pleito de que os judeus russos pudessem migrar em massa. Isso só foi possível com o fim do regime soviético, quando um grupo de judeus russos muito grande segue para Israel, no início dos anos 90. Hoje, há um conluio de interesses muito complexo. Vou trazer um exemplo, para depois voltar a Israel. A Turquia integra a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], aliança liderada pelos EUA, mas consegue dialogar muito bem com a Rússia em determinados conflitos diante de determinadas circunstâncias.

Trazendo essa situação para Israel, é justamente essa pluralidade de interesses que explica em partes uma conciliação, em partes também uma oposição, dependendo dos interesses. A Rússia, por exemplo, apoia Bashar al-Assad, presidente da Síria, que está em estado de guerra desde 1948. Outro espaço onde, por exemplo, Israel e a Rússia tem interesses que se transformaram nos últimos anos foi no conflito recente de Nagorno-Karabakh, entre Azerbaijão e Armênia. Israel é um dos maiores fornecedores de arma para o Azerbaijão e os russos têm forças de paz nesse país. Em relação aos armênios, os russos deixaram a situação desse conflito se desenrolar em favor do Azerbaijão.

Um dos grandes problemas do Oriente Médio é que os interesses são muito flutuantes. Até anos atrás, falar de uma conciliação entre Arábia Saudita e Israel era impensável e hoje o que estamos vendo é uma resposta do Hamas a este movimento. É a primeira vez que um grupo de palestinos consegue trazer tamanha destruição para Israel de uma forma concentrada. O que torna tudo mais complexo é que também há a tentativa de uma conciliação entre Arábia Saudita e Irã, intermediada pela China, e também a entrada desses dois países na agenda dos Brics [bloco econômico formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e que deve contar com mais seis países, entre eles Irã e Arábia Saudita]. São muitos interesses em jogo.

Euler de França Belém – Qual foi a posição dos sauditas sobre o ataque do Hamas?

Eles estão cautelosos e reforçam a necessidade de responder às reivindicações dos palestinos, que era algo que já estavam fazendo para levar o acordo com Israel adiante.

Euler de França Belém – Por que tantos grupos terroristas se iniciam na Arábia Saudita?

A Arábia Saudita é baseada numa ideologia fundamentalista, o wahhabismo. A construção do Estado saudita vem dessa perspectiva. Isso não quer dizer que o país não tenha tentado nos últimos anos fazer inúmeras reformas para atrair turistas. A atuação da Arábia Saudita no campo dos esportes, como o futebol, é uma das coisas que mais tem chamado atenção nos últimos tempos. A base desse pensamento fundamentalista islâmico vem da Arábia Saudita e tem um resquício da Guerra Fria, em cujos primeiros 20 anos havia uma divisão do mundo árabe entre nacionalistas árabes e regimes conservadores monarquistas. Os nacionalistas defendiam a independência da região, o afastamento dos interesses das grandes potências, o pragmatismo na escolha de políticas externas, as possibilidades de fazerem suas próprias conciliações políticas. No contexto da Guerra Fria, os EUA ficaram abertamente do lado das monarquias conservadoras. Se tomarmos Nasser [Gamal Abdel Nasser], a grande liderança nacionalista que governou o Egito por quase duas décadas, vemos alguém que era completamente oposto ao que a monarquia saudita postulava naquele momento. Os EUA e o Reino Unido, por seus interesses, optaram por manter naquele momento as monarquias iraniana, saudita, jordaniana etc. Então, eu resgataria essa raiz histórica para explicar o cenário de poder considerável hoje desses grupos fundamentalistas islâmicos.

A Jordânia é um parceiro fundamental para Israel e vice-versa

Euler de França Belém – E qual é o papel da Jordânia, no contexto do Oriente Médio?

A Jordânia normalizou relações com Israel já há décadas e sempre ocupou um papel importante no conflito. Ao fim de 1948, o país ocupou o que hoje é a Cisjordânia e ocupava a cidade velha de Jerusalém, onde já tinha, por mandato britânico, o controle. De 48 a 1967, com as fronteiras diluídas, existindo basicamente um só país de um lado e do outro do Rio Jordão, a migração em massa de palestinos para a Jordânia modifica a rede demográfica do país. Quando Israel toma a Cisjordânia e controla toda a região do Jordão até o Mediterrâneo, inclusive a cidade velha de Jerusalém, os grupos palestinos terroristas e de resistência – há as duas vertentes – passam a atacar a monarquia jordaniana, que se sustenta com o apoio estrangeiro, basicamente dos Estados Unidos e consegue dar uma resposta a esses grupos. No início dos anos 70, expulsam as lideranças da OLP [Organização para a Libertação da Palestina], que vão para o Líbano e lá vão causar problemas que depois geram a guerra civil libanesa e seus desdobramentos.

A Jordânia é um parceiro fundamental para Israel – e vice-versa – e tem essa atuação transnacional em relação à cidade velha de Jerusalém, especialmente à Esplanada das Mesquitas. É uma monarquia que se mantém relativamente estável com esses aportes financeiros internacionais.

Elder Dias – E a Síria, como está hoje?

Este ano houve muitos movimentos importantes na região e um deles foi a reabilitação de Bashar al-Assad junto a suas contrapartes do mundo árabe. A Síria foi readmitida na Liga Árabe e se aproximou da Arábia Saudita. Isso demonstra que o governo de Damasco se estabilizou, embora haja algumas insurgências, vinculadas principalmente aos curdos na fronteira com a Turquia.

Euler de França Belém – O controle do Iraque agora está com os xiitas?

Os xiitas são maioria no Iraque e há, por isso, uma aproximação com o Irã. O Iraque é um dos clássicos exemplos do que falamos sobre intervenções em que não se calcula a retirada. É algo que conduz ao caos. No Iraque ocorreu isso. Saddam Hussein sempre controlou a política iraquiana de maneira ferrenha e tinha plenas reservas contra grupos fundamentalistas islâmicos. Sua queda e a efervescência de rancores entre as comunidades, por conta da política de “dividir para governar”, trouxeram consequências quando se tentou emular um sistema democrático onde havia muito pouco diálogo. A democracia só funciona onde haja diálogo. Sem isso, não se constrói esse sistema. O Iraque foi um Estado que se esfacelou e com consequências muito profundas para toda a região como um todo, como a criação do Estado Islâmico, a guerra civil da Síria e até uma ansiedade existencial para Israel, com a guinada para a extrema direita, por conta desse caldo de efervescência, disputa e insegurança.

Euler de França Belém – E em que situação se encontram hoje o Estado Islâmico e a Al-Qaeda? Viraram bolsões. Ainda há atuação desses grupos e de grupos inspirados na ideologia do Estado Islâmico, especialmente em países do continente africano, como o Boko Haram, na Nigéria.