Adriano Correia: “Hannah Arendt não tinha esperança na redenção moral da política”

14 maio 2023 às 00h00

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Aline Bouhid, Elder Dias, Euler de França Belém e Valério Luiz Filho
O professor Adriano Correia, dos quadros da Universidade Federal de Goiás (UFG), é certamente uma das referências nacionais em Hannah Arendt, a filósofa alemã que mudou a visão sobre os protagonistas do nazismo ao relatar o julgamento, em 1961, de Otto Adolf Eichmann, um oficial da SS de Hitler que foi um dos protagonistas da execução de milhões de judeus nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.
Eichmann havia sido capturado na Argentina pelo Mossad, o serviço secreto de Israel, e seu processo de condenação se tornou emblemático, em grande parte pelo esforço de reportagem de Arendt, que relatou o julgamento em cinco reportagens para a revista americana “The New Yorker”. Foi o embrião de “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal” (publicado no Brasil pela Editora Companhia das Letras), que se tornou um clássico nos estudos do Holocausto.
O livro completa 60 anos em 2023, o que foi mais um mote para Adriano Correia lançar “O Caso Eichmann – Hannah Arendt e as Controvérsias Jurídicas Sobre o Julgamento” (Edições 70), em que trata de controvérsias inéditas sobre o julgamento com questões levantadas pela filósofa. Uma delas é sobre o próprio tribunal. “Arendt dizia que o ideal era um tribunal internacional, mas se sabia que não haveria um julgamento dessa forma”, conta o professor, nesta entrevista ao Jornal Opção, que contou também com a participação do advogado Valério Luiz Filho, orientando de Adriano Correia no Mestrado em Filosofia da UFG.
Professor da Faculdade de Filosofia (Fafil) da UFG, da cadeira de Ética e Filosofia Política, Adriano escreveu é autor ainda de Hannah Arendt (Zahar, 2007) e Hannah Arendt e a Modernidade: Política, Economia e a Disputa por uma Fronteira (Forense Universitária, 2014), além de ser coorganizador do Dicionário Hannah Arendt (Edições 70, 2022).
O nazismo utilizou a ignorância de maneira deliberada em sua propaganda
Aline Bouhid – Hannah Arendt discute a ignorância como algo que pode dar origem ao totalitarismo. Vindo para o tempo atual, nós vivemos anos de ignorância, como ela disse?
Essa é uma questão central que acompanha Arendt em seus últimos 25 anos, a partir de “A Origem do Totalitarismo”, onde ela chama a atenção para alguns fenômenos que poderíamos conectar com essa ideia de ignorância. Ignorância não vista como ausência de conhecimento dos fatos, mas no sentido de uma incapacidade de compreensão. O fenômeno do isolamento das pessoas, para ela, é uma questão central, em uma sociedade onde há aglomeração, onde se vê gente o tempo inteiro, mas onde há pouco espaço de interlocução para outras perspectivas, onde se aprofunde pontos de vista, que tenha contato com o contraditório, com os espaços públicos. Arendt questionava “quem aqui é que se entusiasmou com o nazismo?”. Era quem nunca sequer tinha participado de reunião de condomínio. A ignorância, então, tem uma dimensão muito mais profunda, que tem a ver com a experiência de ter um mundo apequenado pela ausência de possibilidade de interlocução. É um fenômeno que não foi criado pelo nazismo, nem ninguém propriamente o inventou, mas que o nazismo o utilizou de maneira deliberada quando concebeu sua propaganda.
Arendt se preocupou muito com o tema da mentira na política. Desde “Eichmann em Jerusalém”, ela ficou espantada com o quanto o livro foi difamado por coisas hiperbolizadas, que ela não havia dito. Mas então ela percebeu que não a estavam ofendendo pelo que tinha escrito, mas, sim, que começaram a defende-la pelo que não tinha escrito (risos). Então, ela entendeu que tinha de entrar no jogo. Ela criou um conceito em um texto, creio que em 1971 ou 1972, que tem a ver muito com o ambiente do jornalismo e da imprensa em geral, sobre a mentira na política. Ela fala em “mentira organizada”, para entender o que ela chamava de “resolvedores de problemas”, os relações-públicas, os indivíduos que tinham por tarefa criar uma narrativa que se encaixasse em qualquer contexto. Eu acho que isso tem conexão direta com fenômenos muito contemporâneos.

Nazistas sabiam que pessoas isoladas são suscetíveis a teorias conspiratórias
Euler de França Belém – Hannah Arendt chega a dizer que o problema não era só Eichmann, mas grande parte dos alemães. Ela disse que parecia que a consciência havia sido suspensa entre 1933 e 1945. Sem querer comparar Hitler a Bolsonaro – apesar da extrema direita, vivemos numa democracia –, não lhe parece que no Brasil também houve o mesmo fenômeno de suspensão da consciência entre 2018 e 2022?
Arendt fala, se referindo a Eichmann, sobre o fato de que as pessoas tendem a subestimar o fenômeno, acreditando que há uma espécie de voz da consciência, uma “luz da razão”, e então o ambiente não seja relevante – assim como há hipóteses exacerbadas que vão no sentido oposto, em que o ambiente seria sobredeterminante e que seríamos todos inteiramente frutos do meio ambiente. Creio que ela tende a pensar em um contexto de teoria da conspiração, ao falar da propaganda nazista. Os nazistas sabiam que pessoas isoladas são mais suscetíveis a acreditar em teorias conspiratórias. Se não há nenhum espaço para o contraditório, se não há nem mesmo interlocução dentro da família, há uma dificuldade para entender o sistema político, primeiramente, e também há uma tendência a achar que tem sempre alguém tramando algo – não que não haja algumas salas onde as pessoas tramam muita coisa (risos). Essas pessoas pensam que há a possibilidade de haver essa manipulação nos mínimos detalhes do sistema político por alguns agentes, reiteradamente. Essa ingenuidade política, essa hipersimplificação, tudo isso tem a ver com a dificuldade de compreensão. Quando está havendo uma diluição do tecido da realidade factual sem que haja uma capacidade para fazer o manejo complexo desses dados e o distanciamento dos fatos manipulados, como compreender o fenômeno da mentira?
Enfim, como compreender que as pessoas sistematicamente promovam a mentira? É difícil imaginar que uma pessoa que passe para a frente certas informações tão bizarras realmente acredite naquilo. Como também é difícil acreditar no discurso nazista de que a Alemanha havia perdido a 1ª Guerra Mundial por culpa dos judeus. Não fazia o menor sentido falar aquilo no início dos anos 20, pouquíssimos anos depois de os eventos terem acontecido. Essa manipulação não funciona se não a pessoa for um agente engajado do processo de autoengano e de engano generalizado. Isso é um pouco assustador.
É muito difícil sair da bolha quando se é retroalimentado
Elder Dias – Isso tem a ver com a estratégia de isolamento da informação atual, que a extrema direita, principalmente, tenta impor a sua bolha, em que a “verdade” existe apenas no grupo de WhatsApp ou no Telegram?
Confesso que, embora eu leia muito sobre o tema, eu ainda considero algo bastante difícil de entender. Existe uma dimensão muito assustadora, que é a aposta na dilaceração da confiança nas instituições. E a imprensa, ao menos as grandes corporações, não está inocente desse processo. Em certo sentido, muitos veículos foram agentes da desqualificação das instituições, houve certa cooperação deles para atingir o sistema político e as instituições correlatas.
É muito difícil sair da bolha quando se é retroalimentado. Em Eichmann em Jerusalém, Arendt diz que, se um dia ele [Adolf Eichmann] acordasse com crise de consciência no meio de tudo aquilo, poderia olhar em volta e se tranquilizar, porque veria que tudo estava naquele mesmo rumo. Então, mesmo que não se admita a imagem de Eichmann como alguém que não tinha consciência – no sentido de que não se fazia questionamentos –, não é de relevância menor o fato de que, se ele se fizesse esses questionamentos, não teria exemplos em volta de uma conduta distinta, ainda mais com a legitimação política do crime e do extermínio pelo regime nazista.
Havia um exagero da acusação [sobre Eichmann ser um monstro] e, da parte de Arendt, uma mitigação estratégica
Euler de França Belém – O sr. não considera que Hannah Arendt, em 1961, talvez não tenha tratado Eichmann como um personagem menor do que ele realmente era? Afinal, ele não só participou da conferência de 1942 [Conferência de Wannsee, que reuniu os membros superiores do governo da Alemanha nazista e líderes das SS], como foi o redator da ata que decidiu sobre o Holocausto. Também tomou decisões sobre o destino dos judeus na Hungria por conta própria. Ela não traçou um personagem “menor” por ainda, naquele momento, não ter ainda mais informações sobre Eichmann, já que depois seriam descobertos mais dados, como a partir da famosa entrevista [concedida por Eichmann ao oficial SS holandês Willem Sassen, na Argentina], além de documentos e livros sobre ele, como o de Bettina [Stangneth, filósofa e historiadora alemã que escreveu “Eichmann Antes de Jerusalém”, publicado em 2011]?
Eu gosto muito do livro de Bettina, Eichmann Antes de Jerusalém. Como quase todo mundo, ela chega a Eichmann por meio de Hannah Arendt – a própria Bettina diz isso no prefácio. Eu faço um relato – não no livro que acabo de publicar, mas em outro, que estou escrevendo, sobre o conceito de banalidade do mal – sobre como os jornalistas reagiram [ao livro “Eichmann em Jerusalém”] no primeiro dia, como foram as primeiras reportagens. É interessante observar como esses artigos mostram espanto ao confrontar o livro com aquele indivíduo que estava dentro da gaiola de vidro [durante o julgamento]. O promotor Hausner [Gideon Hausner, promotor e procurador-geral, nomeado principal acusador no julgamento de Eichmann] relatou no livro que escreveu em 1966, chamado “Justiça em Jerusalém”, sobre um jornalista espanhol que teria escrito que aquele que estava sendo julgado fora inventado, que teria havido um suposto sequestro de Eichmann na Argentina e que havia sido contratado um palhaço para atuar na cena do julgamento. A estratégia da acusação era de tornar Eichmann um monstro, algo como o grande mentor. Ou seja, havia um exagero da acusação. Da parte de Arendt, principalmente no texto escrito, acho que havia uma mitigação estratégica para a composição do tipo que ela acabou construindo.
Euler de França Belém – Arendt diz que ele [Eichmann] era “normal”.
Sim, e nisso acho que ela tinha bastante razão. O que ela mitiga é o papel dele na Hungria. No caso das entrevistas a Sassen na Argentina, ela chegou a ter contato com a edição que saiu na Life [revista estadunidense, editada de 1936 a 2000], que é bem compacta, que foi como ele [Sassen] acabou negociando – ele também venderia também para a Stern [revista alemã]. Eu tive acesso, achei o material na forma digitalizada. O principal que há nela é a hipótese de que ele [Eichmann] seria um antissemita convicto.
Euler de França Belém – Arendt chega a falar que o antissemitismo e o racismo não eram o “principal” para Eichmann.
Não, e essa é a questão. Lendo essas entrevistas, o livro de Bettina e também o de David Cesarani [1956-2015, historiador britânico, autor de Eichmann: His Life and Crimes], que tem a biografia mais completa sobre Eichmann, eu discordaria um pouco de Bettina em procurar nele um monstro ou, pelo menos, um antissemita convicto. A imagem que ele procurou produzir, nas entrevistas a Sassen, era a de não querer ser um burocrata. Eichmann dizia querer ser conhecido como um soldado que lutou contra um inimigo do povo alemão. É possível imaginar que ele tenha interpretado um papel, mas antes ele parecia não se sentir à vontade com a figura do mero burocrata, apesar de exercer a função. Ele recorria à imagem do soldado que cumpria ordens com dignidade e responsabilidade, com senso de dever, do que à do mero tarefeiro. Ou seja, ele dizia que não decidia nada, mas que não era um mero cumpridor de tarefas.
Euler de França Belém – Com a morte de Heydrich [Reinhard Heydrich, oficial alemão considerado um dos principais arquitetos do Holocausto, morto em um atentado em Praga em maio de 1942], Eichmann ficou mais forte?
Curiosamente, ele pareceu ter enfraquecido. Em lugar de Heydrich, entrou Kaltenbrunner [Ernst Kaltenbrunner, oficial alemão da alta cúpula nazista, que foi considerado culpado de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, e condenado à morte na forca, executado em 1946], que havia sido quem o chamara para a SS, pois eram amigos de infância. Eichmann, de fato, participou da Conferência de Wannsee [localidade no subúrbio de Berlim], em 1942, na qual havia pouco mais de 20 pessoas. Lá, ele não parecia decidir nada, mas só em ser o secretário da reunião já mostrava que ele não estava fora do espaço de tomada de decisão – embora ali as ações já estivessem sido definidas, pois Heydrich já tinha levado as diretrizes.
Wannsee é uma questão importante na trajetória de Eichmann. A outra principal é a Hungria, onde o argumento de Arendt fica na berlinda, porque mostra que ela teria de construir um personagem com um senso de dever completamente descolado do carreirismo que ela atribuiu a ele. É bom lembra que, em meados de 1944, Eichmann leva mais de 450 mil judeus húngaros para Auschwitz [mais célebre campo de concentração nazista, na Polônia], em um momento da guerra em que a Alemanha já tinha perdido a batalha de Stalingrado e já estava perdendo territórios em várias partes.
Euler de França Belém – E ele estava sendo avisado de que não tinha mais vagas em Auschwitz para aquela quantidade, certo?
Na verdade, ainda havia vagas, o que não tinha era transporte naquele contexto. No segundo semestre de 1943, houve toda a preparação para receber os judeus húngaros. Mas em janeiro de 1944, dois cidadãos, judeus checos, conseguiram fugir de Auschwitz, foram os únicos a sobreviver. Após várias semanas, chegaram a Praga e alertaram para que o campo de concentração estava sendo preparado para os húngaros. Mesmo com os reveses da guerra para os alemães, morreram cerca de 400 mil judeus húngaros em Auschwitz.
Então, Eichmann começa a tomar decisões assustadoras. Por exemplo, “se não tem trem, vão a pé” [sobre o traslado dos húngaros], e isso ainda no inverno rigoroso da região. Muita gente morreu de hipotermia nessas caminhadas. Com a pressão internacional, em agosto de 1944 o governo colaborador da Hungria, começa a não mais dar suporte, a boicotar. E Eichmann começa a contrariar seus superiores, o que passa a não fazer mais sentido para uma ideia de fazer carreira. Então, não dá para explicar o Eichmann que Arendt constrói somente pela imagem de uma devoção à ideia de cidadão respeitador das leis.
Euler de França Belém – A revista New Yorker, caracterizada por seu jornalismo literário de grandes nomes – Truman Capote, Gay Talese, Janet Malcolm, entre outros –, convidou Hannah Arendt para escrever uma reportagem sobre o caso Eichmann. Ela, então, escreve cinco textos. Foram textos tão surpreendentes que os editores publicaram não só de imediato, mas na íntegra, por conta da alta qualidade. Arendt não tinha experiência de repórter, mas fez, portanto, um trabalho de alto nível, que acrescentou à especulação filosófica, o que é um dos fatores que tornam essa reportagem duradoura. Ou seja, podemos dizer que, ainda como reportagem, foi uma grande reportagem?
Com certeza. Arendt, aliás, defendia, na primeira edição – que não tinha o “post-scriptum” e outras anotações –, que era basicamente uma reportagem. No entanto, por vezes, o que ela apresenta como reportagem levanta questões como a noção da banalidade do mal, que não é de modo algum desenvolvida ali. Por outro lado, o capítulo primeiro [de Eichmann em Jerusalém] é dedicado à descrição do espaço do tribunal, extraordinário também do ponto de vista literário. O segundo capítulo, sobre Eichmann, é um pouco mais azedo, em que ela se mostra sem a imparcialidade que se esperar de uma jornalista ao falar de Hausner – de quem ela tem uma péssima imagem, também por conta de ver nele um representante de Ben-Gurion [David Ben-Gurion, então primeiro-ministro de Israel], que simboliza o nacionalismo de Israel naquele contexto.
Arendt traduz de uma forma única o julgamento como um espetáculo – lembrando de que ele foi realizado em um teatro que estava sendo construído e que foi adaptado para um tribunal que receberia 750 pessoas –, bem como o uso até abusivo das testemunhas, como muita gente no Direito concorda, o efeito anestesiado que causa 104 testemunhos em sequência. Ela continuou a escrever para a New Yorker, eles [os editores] a defenderam até o fim, fizeram um editorial bastante duro em junho de 1963, um pouco depois das publicações. Ela tinha um prestígio que não vinha só por ser filósofa, mas que se consolidou naquela função, tanto que depois começou a escrever certos textos de ocasião – como Sobre a Violência, que salvo engano ela publica na mesma revista – e que também tomaram repercussão. Hannah Arendt escreveu As Origens do Totalitarismo com cerca de 45 anos, em 1951.

Na Hungria, Eichmann se mostrou particularmente cruel
Euler de França Belém – Hannah Arendt trouxe o debate sobre o julgamento de Eichmann para uma questão ética e histórica. A gente poderia dizer que o evento penal em Jerusalém seria bem diferente sem o relato dela?
É o que diz Cesarani em sua biografia de Eichmann, que mudou minha perspectiva sobre o caso. Ele pergunta, no prefácio, “Quem é Eichmann?”. E responde: “É quem Hannah Arendt diz que ele é”. Isso está no prefácio, em um livro de 600 páginas. No último capítulo, quando ele encerra a biografia, ele fala do “pós-Eichmann”. E finaliza, de novo: “Eichmann é hoje o que Hannah Arendt diz que ele é”.
E o que Cesarani diz, basicamente? Que Arendt subestima algumas passagens dele, como os eventos na Hungria, em que ele contraria possibilidades de sucesso em sua carreira e se mostra particularmente cruel. Mas o autor concorda com ela ao dizer que não precisa ser um monstro para ser um perpetrador de genocídio, de crimes contra a humanidade. É também a hipótese dela que mais tem vitalidade para reflexões de longuíssimo prazo.
Arendt considera que se os conselhos judaicos não tivessem cooperado, não teria morrido tanta gente
Euler de França Belém – Estudiosos falam que faltou compaixão, por parte de Arendt, em seu julgamento sobre os conselho judaicos [também chamados de “judenrat”]. Dizem que ela chegou a ser um pouco sádica em suas observações. O que o sr. pensa sobre isso?
Gershom Scholem [filósofo e historiador judeu-alemão], que era amigo comum entre Arendt e Walter Benjamin [escritor, filósofo e sociólogo judeu-alemão], nas cartas que trocou com ela, criticou o estilo dela – o que procede, principalmente do ponto de vista jornalístico –, que considerou ácido e irônico. Arendt também criticava a ponto segundo o qual se não se estava em uma determinada situação, não se poderia criticá-la ou julgá-la. Para ela, isso não tinha cabimento, porque teriam de fechar todas as faculdades de história e todos os tribunais, segundo ela. Para ela, quem tinha condições de julgar, era exatamente quem tinha acesso aos documentos e relatos, não necessariamente passando pela experiência em si.
A ideia sobre quem pode julgar algo ou alguém é interessante. Arendt achava que podia julgar. Ela separava o fato de ter compaixão, compreensão, de considerar atenuantes de uma pessoa considerar que não tinha opção. Para corroborar seu ponto, ela cita Leo Baeck, que era o rabino de Berlim e que foi detido em Theresienstadt [gueto estabelecido pelas SS na cidade-fortaleza de Terezín, no Protetorado da Boêmia e Morávia, hoje República Checa], o campo que os nazistas apresentavam à Cruz Vermelha, uma aldeia que eles esvaziaram para torná-lo um campo de extermínio, aliás, o único que eu conheci pessoalmente.
Sobre os conselhos judaicos, a grande questão que ela propõe está na frase dela: se os conselhos não tivessem cooperado, não teria morrido tanta gente.
Euler de França Belém – Arendt diz que os conselhos foram muito organizados e que, se deixassem o caos, teria morrido milhões a menos.
Ela não chega a se deter tanto em quantos morreriam a menos, mas a questão é que ficou parecendo que os conselhos judaicos teriam tido participação central no número gigantesco de mortos. Em seu livro, Jacob Robinson [1889-1977, jurista, diplomata, historiador e respeitado pesquisador do Holocausto] tenta fazer um cálculo – que eu acho terrível, na verdade, e não muda o estatuto moral do problema – segundo o qual em Auschwitz morreram 2 milhões; nos outros campos de concentração, 3 milhões ou mais; o restante morreu no Leste, em fuzilamentos sumários, com vala comum em seguida. Ou seja, morreu metade dos judeus dessa forma, no avanço para o Leste, quando eles tomaram o lado da Rússia. De qualquer maneira, boa parte dos judeus que morreram foi vítima dos nazistas fora dos campos. Hilberg [Raul Hilberg (1926-2007), escritor e historiador respeitado sobre o Holocausto] contabiliza cerca de 5,2 milhões nessa situação.
Euler de França Belém – Raul Hilberg também condena os conselhos judaicos.
E de forma mais dura ainda do que Arendt. Hilberg faz uma condenação geral da passividade judaica. Em seu livro monumental, A Destruição dos Judeus Europeus, ele dedica um capítulo inteiro – capítulo gigante, até porque o livro é gigante – para falar sobre essa estratégia de resignação e negociação. Robinson acaba por concordar com isso. Os judeus passaram quase dois milênios sobrevivendo à base de barganha para não ser agredidos ou espoliados, utilizavam os meios que tinham.
Valério Luiz Filho – Concordo que a principal contribuição da obra de Arendt é não colocar Eichmann na ordem do que é monstruoso, já que a monstruosidade está além do humano e isso impossibilitaria uma reflexão muito importante, que seria sobre as condições dadas as quais uma pessoa normal poderia cometer esse tipo de ato. O que o sr. poderia falar sobre isso?
Eu gosto muito de uma sentença de Arendt sobre Kant – confesso que nunca achei no próprio Kant, mas que ela citou no curso Algumas Questões de Filosofia Moral, entre 1965 e 1966, que é o mais completo que ela levanta sobre o problema. Ela diz uma coisa muito curiosa que tem a ver com o estudo da consciência: mesmo Kant – que ignora completamente não só as consequências, mas até o ambiente e o contexto – dizia que quem passa a vida inteira entre patifes vai ter dificuldade de agir moralmente. Porque, para isso, é preciso ter imaginação. Imaginação para quê? Não é preciso imaginação para o imperativo categórico [conceito kantiano], mas é preciso tê-la para encontrar regras a ser testadas no imperativo.
Arendt não defende a ideia de que somos completamente assimilados ao meio – se fosse assim, não acreditaria na pluralidade. Trata-se apenas de dizer que há ambientes que fomentam e outros que inibem certas ações. Em um ambiente político, por exemplo, no qual não haja fórum de debates de nenhum tipo, nem mesmo uma reunião de bairro, onde vai haver a experiência como grupo? No desespero, pode-se até pensar na família – em um exemplo extremo, uma criança advertindo o pai sobre alguma crença que ele tenha e que ela percebe como bizarra, sem noção. O tecido da realidade carece dessa checagem mínima.
Arendt pergunta, no final de A Vida do Espírito: o pensamento pode evitar o mal? Há dois problemas aí. O primeiro é que o pensamento só pode evitar o mal de quem não quer ser mau; o segundo é o que eu chamo um “problema de Sócrates” [pensador grego do século 5º a.C., considerado por muitos o “pai da Filosofia” e que foi condenado à morte acusado de corromper a juventude de Atenas e introduzir falsos deuses]: como fazer pensar quem não pensa – o que, como a gente sabe, já não deu muito certo para ele (risos). Então, Hannah Arendt não tinha muita esperança numa redenção moral da política.
Há um terceiro problema na frase de Arendt na dúvida sobre o pensamento poder evitar o mal. Platão diz explicitamente, em “A República”, que havia algo que o separava radicalmente de Sócrates: ao contrário de seu mestre, ele não acreditava que as pessoas pudessem ser melhoradas pela reflexão; mais do que isso, tem gente que poderia ficar pior.

Sócrates, acreditava que sim, que quem reflete não se permite ser mau
Euler de França Belém – Então, Platão foi o primeiro liberal…
(risos) Platão dá o exemplo de Alcibíades [político ateniense do século 5º a.C.] como alguém a quem a filosofia piorou. Há elementos, inclusive religiosos, em Platão segundo os quais era preciso ter uma alma suscetível, propícia. Para ele, o conhecimento no sentido estritamente da dialética, que a filosofia de Sócrates proporcionava, não salvaria ninguém do mal. Sócrates, ao contrário, acreditava que sim, que quem reflete não se permite ser mau.
Valério Luiz Filho – Mas essa reflexão socrática não seria uma reflexão específica, a capacidade de entrar em contato com a perspectiva do outro? Porque realmente é mais difícil agredir uma pessoa cuja perspectiva se acessa.
Aqui há vários pontos cegos. O primeiro é como fazer alguém pensar, nesse sentido específico. Para Arendt, a única forma era como Sócrates fazia, “perturbando” os outros. Eu estava na casa de um orientando e a mãe dele contou que havia perdido metade dos amigos por causa das eleições porque ela não era bolsonarista. Então, veio a pergunta: como convencer aquelas pessoas em tal “estado de imersão”, para usar uma expressão neutra? Justamente quem mais precisa é quem está bloqueado a essa provocação para a reflexão. E a coisa toda fica aporética, do ponto de vista prático.
Sócrates acreditava que a reflexão poderia melhorar muito mais do que ele próprio ou seus interlocutores; ele acreditava que poderia melhorar a política da cidade, porque as opiniões seriam mais sofisticadas, plurais, diversas, abrangentes, considerariam várias perspectivas. Ocorre que há níveis de dogmático, de pessoas “cabeças duras”, que não têm muita saída.
Arendt contava que havia uma piada – que eu contei só uma vez numa palestra, porque deu errado (risos) – comum no período econômico mais drástico entreguerras, em meados dos anos 20. Era a conversa entre dois alemães, um antissemita e o outro, não. O primeiro dizia: “A culpa disso tudo estar acontecendo é dos judeus!”. O outro olhou, desconfiado. Então, depois de um tempo, devolveu: “É verdade. Dos judeus e dos ciclistas.” O antissemita questionou: “Por que os ciclistas?”. E o segundo: “E por que os judeus?”.
Ora, a questão é simples: se o sujeito acha que toda aquela questão complexa que se vivia no mundo e na Alemanha se resumia à “culpa dos judeus”, como enfrentar esse tipo de argumentação? Esse é um paradoxo complicado da relação entre ética e política. Claro que Arendt tinha expectativas socráticas de que estimular divergências e acordos se refletiria na formação, na vida política e na vida social. É de se imaginar que, em um ambiente desses, as pessoas tenham posições mais complexas.
Valério Luiz Filho – Eichmann disse algo que chama muito a atenção: “Ninguém nunca objetou meus deveres enquanto tais”. Ou seja, mesmo que não se consiga convencer a pessoa a acessar imediatamente a perspectiva do outro, externar algo a ela funcionaria como uma certa imposição de limites?
Pode ser. Eu, como Hannah Arendt, não deposito muita esperança nisso. Tendo a confiar muito mais não na política institucional, mas nas experiências de debate que ultrapassem a dialética estrita. Isso é fundamental num âmbito muito estrito, que é nosso, pessoal, humano, que é o da vida moral. Existe uma moralidade pública? Claro, mas em outra dimensão que não é necessariamente a da reflexão nem do não querer ser mau. A rigor, pode-se ser uma péssima pessoa e um excelente cidadão.
Euler de França Belém – Em seu novo livro, sobre as controvérsias jurídicas do caso Eichmann, o sr. pontua que em certo momento Hannah Arendt pergunta: existe o crime contra a comunidade? Ela ressalta que o genocídio contra os judeus deve ser visto como um crime contra a humanidade quando diz: “Foi quando o regime nazista declarou que o povo alemão não só não estava disposto a ter judeus na Alemanha, mas desejava fazer todo o povo judeu desaparecer da face da Terra que passou a existir o novo crime, o crime contra a humanidade — no sentido de ‘crime contra o status humano’, ou contra a própria natureza da humanidade”. Portanto, segundo a visão dela, como ocorreu um crime contra os judeus, era adequado que Eichmann fosse julgado por uma corte judaica. Porém, se era um crime contra a humanidade, deveria ter sido convocado um tribunal internacional. O filósofo alemão Karl Jaspers dizia que o nazista deveria ser julgado por um tribunal que representasse a humanidade. Como o sr. avalia essa questão?
É uma questão central e, mais uma vez, envolve paradoxos. O que é propriamente um crime contra a humanidade? Ou, para dizer algo que falamos com mais frequência, o que é um crime contra os direitos humanos? De onde vêm esses direitos? Então, na conversa, aparece toda aquele conceito em torno de Kant, da dignidade própria da pessoa. Isso porque Kant vem em um “kit”, em que tem uma ideia de razão, uma ideia de progresso, uma ideia de uma humanidade com uma espécie de destino, uma autorrealização permanente como humanidade e não nos indivíduos. É um “kit” com um preço alto. Digo isso porque, quando Arendt fala em “crime contra o status humano”, é algo que está na Carta de Londres, que foi o documento a fundamentar o Tribunal de Nuremberg [corte internacional criada em 1945, para julgar, na cidade alemã, os crimes cometidos pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial].
Arendt criticou muito o fato de Eichmann ser julgado em Jerusalém, mas defendeu que ele deveria ser julgado. Sobre esse tema em particular, nos textos dela não tem nada parecido com as cartas que trocou com Karl Jaspers. Eles travaram esse bom debate, mas sabiam que na ONU [Organização das Nações Unidas] não aconteceria um tribunal, nem mesmo “ad hoc”. Isso porque havia uma oposição sistemática a que se mexesse nisso. Os Estados Unidos não queriam nem passar perto dessa questão de crimes contra a humanidade, porque temiam por Hiroshima e Nagasaki [as duas cidades japonesas em que os EUA lançaram bombas atômicas para forçar a rendição do país, em agosto de 1945, matando centenas de milhares de pessoas]. Havia atuação contrária [ao julgamento pela ONU], deliberada, nisso os judeus têm razão. Uma curiosidade é que o próprio Jacob Robinson, que atuou em Nuremberg, foi um dos três auxiliares de Hausner em Jerusalém, descobri isso recentemente lendo documentos. Contra Jaspers, no jogo da discussão, Arendt dizia que o ideal era um tribunal internacional; mas, eles sabiam que não haveria um julgamento dessa forma. E, então, fazer o quê?
Elder Dias – Se não fosse em Jerusalém, então, falando em uma linguagem bem popular, o caso Eichmann poderia “terminar em pizza”?
É isso, ou algo ainda mais complicado. Se enviassem uma carta…
Euler de França Belém – Se fosse na Alemanha, Eichmann pegaria prisão perpétua, provavelmente?
Não necessariamente, porque os crimes, na Alemanha, já estavam prescritos, quase todos. Só assassinato não estava em prescrição – mas sobre assassinato, mesmo com a documentação absurda que eles mobilizaram em Jerusalém, não tinha comprovação para Eichmann. Não para assassinato direto.
Euler de França Belém – Tanto que Fritz Bauer [procurador-geral do Estado de Hesse, na então Alemanha Ocidental, que recebeu a denúncia do paradeiro de Eichmann na Argentina] alertou o Mossad [serviço secreta de Israel], em vez dos alemães.
Tudo se deu porque Fritz Bauer, em dezembro de 1959, lançou uma espécie de ultimato a Isser Harel [chefe do Mossad] para ir atrás de Eichmann. No lançamento de meu livro na [livraria] Palavrear, tive de responder a uma questão semelhante sobre isso. Na lei de 1950, do Estado de Israel, tudo já estava vinculado à Convenção sobre Genocídio, de 1948 [realizada em Nova York, na sede da ONU]. Há aí já toda uma ideia de genocídio como a destruição de uma cultura, não somente de um povo no sentido racial nem histórico. Os judeus, em sua lei, disseram que o crime contra a humanidade era um crime contra o “status humano”; que a forma máxima do crime contra a humanidade era o genocídio; e que o crime cometido contra o “corpo do povo judeu” – para usar uma expressão que a própria Arendt usa – é um tipo de genocídio. É uma vinculação muito legítima, no contexto jurídico, à convenção sobre genocídio de 1948.

Bolsonaro é um grande “clown” que acabou encalhando
Elder Dias – Trazendo para nosso contexto atual esse conceito, até que ponto é correta – ou não – a expressão “Bolsonaro genocida”?
Interessante a pergunta, falar sobre isso é um abacaxi (risos). Não dá para saber quais eram as reais intenções dele, o que dá para dizer é que Bolsonaro é um grande “clown” [“palhaço”, em inglês, no sentido mais aproximado de “bufão”], que acabou “encalhando”.
Elder Dias – Nesse sentido, “Bozo” é um apelido muito apropriado, não é à toa.
Euler de França Belém – Mas ele é menos “Bozo” do que se pensa. A impressão que passa é que Bolsonaro tem uma grande vocação para ditador, mas lhe falta coragem. Ele não é líder, “esteve” líder por ocupar a Presidência, prova disso é que fugiu ao fim do mandato.
Faltou coragem e articulação, também.
Valério Luiz Filho – O sr. não considera que, no Brasil, não tenha havido um caráter eugenista no tratamento do governo sobre a pandemia, ao se minimizar o risco para doentes, idosos e pessoas suscetíveis?
O governo, ao menos, não chegou a declarar como um senador dos EUA, segundo o qual os velhos deveriam fazer um “benefício” à comunidade, “desaparecendo” para não prejudicar a economia.