Aava Santiago: “O maior inimigo dos evangélicos é o bolsonarismo, não o PT”

01 janeiro 2023 às 00h00

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Aline Bouhid, Italo Wolff e Marcos Aurélio Silva
O ano que acabou pode ter sido uma virada de chave na trajetória política de Aava Santiago. A vereadora tucana – única representante do partido no Legislativo goianiense – não conseguiu ser eleita à Câmara dos Deputados, mas ganhou mídia nacional por, sendo evangélica praticante, fazer um contraponto ao bolsonarismo que tomou conta das igrejas cristãs durante as eleições e fazer campanha aberta para o petista Luiz Inácio Lula da Silva.
Nascida em uma família de pastores por parte de pai – já falecido – e de mãe, ela frequenta ainda hoje a Igreja Assembleia de Deus. Na política, porém, destoa da chamada “bancada da bíblia” por uma questão que considera simples: em sua prática religiosa, ela coloca à frente exatamente a Bíblia, com B maiúsculo. “O bolsonarismo criou uma disfunção ética e cognitiva de tal modo que trechos bíblicos se tornaram afrontosos. A Bíblia se tornou um problema”, diagnostica.
Nesta entrevista ao Jornal Opção ela fala de sua trajetória, desde a infância em uma comunidade carente do Rio até a atuação na Câmara de Goiânia, à qual chegou como uma surpresa em 2020, derrotando candidatos endinheirados e com mais estrutura no PSDB, do qual é presidente do diretório municipal. Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás (UFG) – “a primeira da família a fazer faculdade” –, Aava rechaça o rótulo de “crente progressista” por questionar pautas conservadoras como criminalização do aborto e ideologia de gênero. “Sou crente. É a Bíblia, o Evangelho, que me coloca permanentemente contra as injustiças sociais.”
Marcos Aurélio Silva – A sra. ganhou mídia nacional nos últimos meses. Acha que é uma política “pop”?
É um título instigante. O pop perpassa tudo o que temos de contemporâneo e com grande visibilidade. Acaba não sendo um juízo de valor, porque cabe muita coisa dentro do conceito. Eu me considero uma política que transita muito bem, pode servir para me chamar de “pop” ou apenas alguém com bons relacionamentos.

Tive coragem de enfrentar as fragilidades de meu partido
Marcos Aurélio Silva – O que a sra. considera que foi uma virada para a projeção de seu mandato e de sua figura política?
É impossível desassociar minha chegada à Câmara de Goiânia ao que está acontecendo agora. Estou vivendo uma experiência peculiar, principalmente em decorrência da eleição nacional. Mas quero lembrar que eu fui eleita vereadora como uma grande surpresa, porque não tinha estrutura partidária e fiz uma campanha barata, enfrentando as dificuldades de um partido que vinha de um processo de desgaste muito profundo em Goiás, o PSDB.
Minha agenda também era, como é, muito bem definida. O acirramento das pautas em nível nacional, que também veio para o debate local, não determinou minha vitória em 2020, porque eu já tinha um histórico consolidado em áreas de atuação e militância, especialmente em termos de educação pública, direito das mulheres e territórios e juventudes periféricas. Isso não foi aguçado pelo debate nacional, o que me deu muita segurança de chegar à Câmara com essa agenda, que não é facilmente inflável nem reduzível ao sabor da paixão momentânea. Isso pôde me dar muita consistência no Parlamento.
Hoje, na Câmara, temos dois perfis de vereador: um é o comezinho, que só pensa em seu bairro, em sua base eleitoral; o outro é o “vereador federal”, que não fala da cidade. Creio que eu consegui fazer o debate nacional sem perder a dimensão do local. Hoje, na Casa, tenho um relacionamento excelente com todos os 34 vereadores e mantendo a credibilidade dos mais antigos sendo de oposição, em primeiro mandato e a única do partido.
Aline Bouhid – Seu eleitorado tem uma tendência majoritária à esquerda. Como foi lidar com isso estando em um partido como o PSDB?
Sempre fiz uma reflexão um pouco mais profunda sobre isso, de o PSDB ser um “partido de direita” e esses eleitores serem mais de esquerda. É algo tão frágil que as mesmas pessoas que deixaram de votar em mim em 2020 votaram em [Geraldo] Alckmin [fundador do PSDB, mas que se filiou ao PSB e compôs a chapa de Lula à Presidência] para vice-presidente da República. Tive coragem de enfrentar as grande fragilidades de meu partido e fui a única eleita da chapa tendo uma das campanhas com menos gastos.
Italo Wolff – O PSDB continua em processo de fragmentação? O que está acontecendo com o partido, principalmente em Goiânia?
Sou filiada ao PSDB desde sempre, há muitos anos e sou a primeira mulher a presidir o partido em Goiânia. Eu acredito que o partido tem melhorado muito e vejo que, em Goiânia, meu mandato tem prestado a isso – é o que ouço de políticos e pessoas da sociedade civil. Tivemos um bom teste na urna, que nos mostrou que somos um partido da política tradicional hoje enfrentando os desgastes da antipolítica que se estabeleceu. Entretanto, em Goiás conseguimos virar a página de nossa pior crise, que foi em 2018. Prova disso é que nosso presidente estadual, Marconi Perillo, perdeu a eleição [o ex-governador foi candidato ao Senado], mas teve mais de 600 mil votos. Superamos nossa crise interna e agora precisamos nos repensar dentro dessa crise dos partidos tradicionais, como é o caso do PSDB.
Os voos solos na política podem até alcançar grande altura, mas costumam ser muito curtos
Aline Bouhid – A sra. costuma falar no partido usando o plural, mas a sra. pensa ou já pensou em mudar de partido?
Isso não está no meu horizonte. Obviamente, a política é tudo, menos previsível. Têm horizontes que não partem de minha vontade. Por exemplo, em uma fusão, quem seriam os articuladores desse processo? Quem teria predominância nesse cenário? Dentro de uma nova configuração, claro, eu teria uma nova leitura. Acho interessante você mencionar que eu falo no plural, pois sou uma política de grupo. Os voos solos na política podem até alcançar grande altura, mas costumam ser muito curtos. Não tenho padrinhos na política, fui criada por minha mãe – perdi meu pai muito cedo –, não tenho nenhum político na família, não tem ninguém com dinheiro. Sempre estudei em escola pública, passei por dificuldades muito profundas que, inclusive, me fizeram compreender a necessidade de jamais abandonar o campo dos direitos humanos. Entretanto, não foi minha fibra moral ou a história pessoal que me levaram até a Câmara: isso faz parte, claro, mas não se faz política de grupo pensando em lealdade, em tática, porque pode ter grandes sustos. Veja o que está acontecendo na Câmara, com tantos vereadores perdendo mandato. É algo assustador, sem precedentes, e muito disso se deve a voos solos. Por isso, sempre falo que faço parte de um partido e sempre critiquei quem se acha melhor do que seus partidos, bem como os movimentos de renovação política que se pressupõem acima dos partidos. Esses, com todas as críticas que merecem e com todas as mudanças que precisam enfrentar, ainda são as instituições mais importantes para salvaguardar a democracia brasileira. Não vamos conseguir a estabilidade democrática esvaziando o sentido e a potência dos partidos.
Marcos Aurélio Silva – Alckmin e o ex-governador José Eliton trocaram o PSDB pelo PSB, uma sigla mais à esquerda. Como a sra. analisa essa decisão deles? A mudança foi coisa do cenário político?
Não tenho grande proximidade com o vice-presidente, apesar de termos tido bons encontros presenciais algumas vezes. O dr. José Eliton é um dos quadros que eu mais admiro na política goiana, justamente por ser de grupo. Mesmo indo para o PSB, ele não fez nada sem diálogo com o governador Marconi. São pessoas que construíram um partido político. A política robusta é feita muito além do calendário eleitoral e é quando ela se fortalece, quando há a disputa interna pelas teses. Aqui, José Eliton conseguiu ampliar o campo de oposição em Goiás, tanto com o presidente Lula e seu vice, Alckmin, como com seu maior parceiro na política local, que é Marconi. Isso é fazer política de estatura digna e é um exemplo para mim.
Aline Bouhid – Como a sra. viu a formação do ministério de Lula? Alguns consideram que há pouca representatividade de gênero entre as escolhas.
Não esperava que depois de quatro anos – que, na verdade, correspondem a mais de duas décadas de retrocesso – a gente partiria de um campo ideal nessa questão. Se observarmos o que foi feito de desmanche do Estado brasileiro, o que está sendo reivindicado agora é o que havia em 2015, pré-golpe, quando tínhamos a primeira mulher presidindo o País. No GT [grupo de trabalho] da equipe de transição, fizemos a análise dos documentos da 3ª Conferência Nacional de Mulheres e observamos que ali se apontava a necessidade de paridade entre os gêneros. Era uma demanda depois de 12 anos de PT no poder. Imagine agora, com esse período de esvaziamento de tudo que foi construído.
Algo que vou contar pela primeira vez a vocês: a coordenadora do GT de Mulheres, a ex-ministra Eleonora [Menicucci, que ocupou a Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2012 e 2015]. Uma mulher brilhante, mas também dura. Na entrega de nosso relatório, estávamos as sete coordenadoras em um momento emotivo, ao analisar o tamanho do abismo que encontramos e, ao mesmo tempo, o privilégio de poder estar reconstruindo isso. É algo que me deixa arrepiada. Algo que me emocionou, em particular, foi o fato de que quase todas nós havíamos deixado filhos pequenos para essa missão de estar em Brasília, numa rotina absolutamente cruel, de muito trabalho, a ponto de meu filho de 3 anos fazer uma chamada de vídeo xingando o Lula, por não deixar a mãe dele voltar para casa (risos). Em meio a isso, a ministra Eleonora sem lacrimejar. Ela então disse “olha, não me achem insensível, mas é que quando eu tinha 22 anos, eu vi minha filha ser torturada”. Eleonora foi companheira de cela de Dilma durante a ditadura. Só de falar me sinto chocada. Então, ali eu entendi que, para aquela mulher, havia um processo de reviver a violência, que era pensar no que haviam feito para construir um modelo de país depois de enfrentar o cárcere, a tortura, a perseguição e o exílio para, então, vir essa gente e destruir tudo. Nas entrelinhas dela, o que percebemos e nos emocionou, estava essa dúvida sobre o que havia significado todo esse horror para depois virem esses caras e, em canetadas de um projeto de destruição, fazerem isso.
Claro que vamos cobrar de Lula a representatividade. No entanto, temos de observar os parâmetros de comparação e de urgência. O presidente, no momento, precisa se cercar de quadros nos quais ele confie muito, principalmente nos dois primeiros anos. Quanto menos melindre, melhor para o Brasil; quando menos tempo se perder azeitando relações, mais rapidamente conseguiremos restabelecer o mínimo na garantia de direitos e isso é que precisa ser a prioridade.
Falando somente dos escolhidos das pastas com que me dediquei na transição, entre as ministras escolhidas teremos Cida [Gonçalves, nomeada para o Ministério das Mulheres], uma pessoa doce e generosa, servidora efetiva do governo federal, que participou da administração de Dilma como secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Também Anielle [Franco], uma professora, doutoranda, mãe, irmã de Marielle [Franco, vereadora carioca assassinada em março de 2018]. Cito “irmã de Marielle” apenas em quarto lugar porque Anielle é maior do que apenas a memória de Marielle, embora isso seja algo gigante. Ela teria condições de ser ministra da Igualdade Racial ainda que não fosse por esse parentesco. Temos também Silvio Almeida [ministro dos Direitos Humanos], alguém que, em uma live com Mano Brown [compositor e cantor de rap do grupo Racionais MCs], a gente percebe que Lula precisa de alguém como ele dizendo o que fazer. É algo muito significativo de bons ventos – o que não significa “calmaria”, mas que antes estávamos brigando para sobreviver e agora vamos brigar pelos avanços.

Sugerimos como prioridade a recuperação do orçamento para manutenção do Disque 180 e das Casas da Mulher Brasileira
Italo Wolff – Qual balanço final a sra. faz desse trabalho em seu GT da transição?
O primeiro ponto foi nos debruçar nas normativas de nossa área, para evitar entraves no futuro e ver qual o impacto no orçamento da União. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos foi o último a encaminhar os dados que o Gabinete de Transição requereu. Com isso, tivemos de fazer uma varredura por nossa própria conta, no Diário Oficial e outras publicações. Quando terminamos isso, chegaram as informações. Aí veio a necessidade de um retrabalho. Para não atrasar, entregamos o que havíamos feito e produzimos outro, à parte só com base nas informações do ministério, ao qual pedimos uma audiência, a qual foi uma tragédia. Estive nessa reunião, com a ex-ministra Eleonora, a ministra Cida e mais Roseli e Ana [relatora do GT], também integrantes de nosso GT da transição. O que concluímos é que havia um cenário absurdo. Por exemplo, o governo havia criado um selo com o qual se davam prêmios para algumas iniciativas. Só que não foi publicado nada, em nenhum lugar – nem na imprensa nem no Diário Oficial –, sobre qualquer entidade que tenha recebido essa premiação ou esse selo. Também nada há sobre o orçamento destinado para isso. Pior: tudo o que desenvolveram foi reforçando estereótipos, colocando como parceiros nessas premiações salões de beleza, igrejas etc.
No campo da saúde reprodutiva, tiraram de quase todas as normativas a palavra “mulher” e se substituiu por “família”. Isso virou um baita problema, porque família não é sujeito de direitos, não pode ser alvo de política pública, está no campo moral, filosófico. Como estabelecer uma regra orçamentária para as famílias brasileiras? Essas regras podem ser para grupos de sujeitos – mulheres, crianças, idosos etc. Algum desavisado pode pensar que essa disputa linguística é secundária, mas isso determina a norma e a norma determina para onde vai o orçamento. Esse foi nosso principal trabalho, de modo a não optar pelo cenário de terra arrasada, revogando tudo, porque precisamos do mínimo de políticas para prosseguir. Sugerimos como principal prioridade a recuperação do orçamento mínimo para manutenção do Disque 180 e das Casas da Mulher Brasileira.
Para ter ideia, em 2015 o orçamento fechou, para essa agenda [das Casas da Mulher Brasileira] foram R$ 290 milhões e agora, para 2023, o que foi deixado para a mesma agenda foram R$ 23 milhões.
Marcos Aurélio Silva – E os sigilos de cem anos, como impactou no trabalho de seu GT?
Em nossa pauta não impactou tanto. O “sigilo” que realmente afetou foi o orçamento secreto. Descobrimos uma excrescência que era o seguinte: R$ 23 milhões no orçamento da União, mas uma dotação orçamentária de quase R$ 500 milhões para ser executada pelo ministério. Quando fomos investigar, vimos que eram emendas do orçamento secreto. Isso causou coisas como, por exemplo, o envio de R$ 10 milhões para construir uma Casa da Mulher Brasileira em um município de 10 mil habitantes, enquanto há uma sistematização para isso, para priorizar, no caso, municípios que estão no topo do índice de feminicídios, como Goiânia, e que precisariam receber um equipamento público desse antes. O que entendemos – e isso é muito sério e preciso dizer com muita cautela – foi que o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, no governo Bolsonaro, se tornou um dos mais estratégicos para a operacionalização dos recursos sem carimbo. Isso é um problema que vamos entender melhor daqui para frente, porque até o fim do trabalho não conseguimos descobrir para onde foi esse dinheiro nem saber se realmente foi executado.
Marcos Aurélio Silva – Parte dos mandatos que estão sendo perdidos na Câmara de Goiânia ocorre por conta da falta de respeito à cota de gênero na formação da chapa. Por que isso ainda é um problema?
Temos um problema estrutural, tanto por partidos como pela Justiça Eleitoral, que deixa essa questão apenas para a época de campanha o cumprimento dessa legislação. Costumo dizer que a candidatura de mulheres nunca é ponto de partida, mas resultado de série de esforços coletivos. Para eu me tornar parlamentar, dezenas de mulheres ficaram pelo caminho e abandonaram seus sonhos. Meu partido, por exemplo, foi multado por não usar o fundo partidário na formação de mulheres. A multa é maior do que a suposta economia que o partido teria feito por não usar o fundo. Entretanto, nós recebemos a sentença da multa só quatro anos depois do descumprimento. Se comparar isso com a celeridade com a perda de mandato, percebe-se a discrepância. A punição ao parlamentar vem muito rapidamente depois de ele estar eleito e empossado, mas muito lenta para obrigar os partidos a se adequar à legislação. Isso gera muita instabilidade no Parlamento. Eu presido duas comissões na Câmara, a de Educação e a de Direitos Humanos. Fiquei dois meses sem conseguir votar por conta de que eu precisei substituir o vereador Marlon [Teixeira (Cidadania), cassado em outubro] e o Márcio [Carvalho, do mesmo partido], que caiu logo em seguida. Então, essa instabilidade, para o andamento dos trabalhos, é um problema, o qual precisa ser compartilhado muito mais entre o Judiciário e os partidos do que com os parlamentares individualmente. A ordem de responsabilização está invertida e, com isso, perdem as mulheres sem que corrijamos sistemicamente nosso alvo, que é a negligência dos partidos com as candidaturas femininas.
Fui criada na Assembleia de Deus, cristã por parte de pai e mãe. Todos os meus tios, das duas famílias, são pastores
Aline Bouhid – Como a sra. percebe a aproximação dos evangélicos com o governo Lula e sua participação específica nesse processo?
Quem me conheceu agora, por conta da campanha para Lula, pode pensar que estou numa “onda” evangélica, que entrei nisso agora. Eu fui criada na Assembleia de Deus, cristã por parte de pai e mãe. Todos os meus tios, das duas famílias, são pastores. Meus pais se conheceram em um seminário de teologia. Esse é meu ponto de partida, que me estabeleceu enquanto gente, minha forma de perceber o mundo. A única coisa que não teve interferência direta foi nos votos para mim, porque a igreja que eu frequento, o Ministério Pedro Ludovico, tem sua matriz em Goiânia [Setor Pedro Ludovico], mas suas congregações são em Aparecida de Goiânia. Ou seja, a igreja não foi parte significativa, eleitoralmente falando. Mas foi a única coisa que a igreja não me deu. Toda minha envergadura moral, minhas prioridades etc.
Eu cresci na periferia do Rio de Janeiro vendo a mãe do bandido e a mãe do policial juntas no círculo de oração. A primeira pessoa que meus pais apoiaram na política, quando eu ainda era criança, foi Benedita da Silva [ex-governadora do Rio de Janeiro em 2002], uma mulher da favela, pentecostal da Assembleia de Deus e do Partido dos Trabalhadores. Experimentamos, nos anos 80 e 90, uma desmoralização da fé evangélica por parte do “stablishment” intelectual, em que se chamava pastor de “ladrão” e quem devolvia dízimo era considerado um alienado. Piadas, críticas rasas, tudo isso compartilhado pelo que nos últimos anos a gente chamou de “esquerda festiva”. Esse processo foi gerando um distanciamento entre o PT e a esquerda em geral em relação aos evangélicos brasileiros. Naquele tempo, já havia uma desconfiança dos crentes. Tanto que Lula disse, em um evento que fez com os evangélicos durante a campanha, que estava cansado de se justificar, que estava desde 1989 se justificando diante dos cristãos.
O neopentecostalismo chegou ao Brasil já falando mal de comunista, da esquerda. O PT tinha de acenar não só para o mercado, mas também para os evangélicos. Nesse evento, Benedita me disse “olha, Aava, eu enfrentei o que você está enfrentando hoje na primeira metade da década de 90: eu apanhava do PT por ser crente e dos crentes por ser PT”. É exatamente minha vida. (risos)
Paralelamente a isso, vem o aprofundamento da fome, na crise do liberalismo nos anos 90. Com isso, vem a vitória de Lula. E o que Lula faz? Coloca comida na mesa do brasileiro. E quem comeu? O crente. Porque nós, como eu disse para Lula, somos uma maioria de famílias monoparentais, sustentadas por mulheres. Quando meu pai assumiu a Assembleia de Deus de Santíssimo, na zona oeste do Rio – uma das áreas mais ocupadas por milícias na cidade –, a maioria esmagadora dos fiéis não era alfabetizada. A primeira coisa que meus pais fizeram foi criar um curso de português. Quem dava aula eram os seis irmãos que tinham ensino médio. Em dois anos, os crentes que pediam cestas básicas passaram a doá-las, porque aprenderam a ler e a escrever. Essas pessoas passaram a comer melhor com Lula e a pensar: “Ele (Lula) não é tão ruim assim, estamos comendo melhor, andando até de carro e não fecharam nossas igrejas”. Em 2005, fui aprovada no vestibular para Ciências Sociais na Universidade Federal de Goiás (UFG). Fui a primeira da família a fazer faculdade!
Só que o diálogo com o crente, por parte da esquerda estabelecida, não melhorou. É que a máquina de poder exerce fascínio, acomodação e arrogância. Gerou-se, a partir daí, um abismo cognitivo, porque o PT melhorou a vida do crente pobre, mas não se interessou pelo que o crente pobre tinha a dizer. Existia um conceito totalmente equivocado de laicidade. O Estado tem de garantir que toda fé seja professada e que nenhuma fé professada se imponha pela estrutura do Estado sobre a vivência individual e coletiva.
Foi então que as grandes lideranças evangélicas viram que era uma boa ficar com o PT. Falo tranquilamente, porque ninguém me contou, eu mesma vi – sou da Assembleia de Deus desde que nasci, do Ministério Madureira, o maior do Brasil, e posso dizer: nossos líderes são adesistas. As grandes lideranças evangélicas do País estiveram com a ditadura militar, com José Sarney e com todos os presidentes até hoje, com Bolsonaro. E, agora, vão voltar com o rabinho entre as pernas para Lula.
Italo Wolff – Isso realmente sempre foi assim. Mas por que essa disputa ficou tão acirrada no meio evangélico desta vez?
A Operação Lava Jato abriu o caminho do rompimento, porque, em 2014 não se falava em aborto, ideologia de gênero, essas coisas. A questão era a corrupção. Foi assim que as igrejas evangélicas enfrentaram essa ruptura com o PT. A pauta moral estava ali adormecida, na gaveta. Veio Bolsonaro e desengavetou. Isso deu origem ao atual lugar.
Tudo isso que eu disse foi para falar: nós, crentes, fomos as vítimas mais penalizadas por este governo que acabou agora, porque, se éramos pobres, ficamos mais pobres. A campanha antivacina devastou muitas de nossas igrejas. Meu pastor foi eleitor de Bolsonaro, mas não deixou a campanha antivacina triunfar entre nós. Ele hoje tem 73 anos, mas entrava em seu carro e pegava os mais velhos para levar para vacinar. Infelizmente, muita gente não fez o mesmo. Bolsonaro chegou e disse que essa “galera [a esquerda] nunca gostou de vocês” [evangélicos], que nunca quis vocês na mesa. E então disse “eu quero”. Ele mexeu com o sentido de pertencimento. O que eu disse de Benedita, e posso também dizer de Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente], é que o PT escondia o fato de ser crente, em vez de explorar isso.
Em 2018, veio o baque. No segundo turno, depois de chamar 50 milhões de brasileiros de “fascistas”, como virar voto? Não vira, não vira. O jargão da esquerda não serve para conversar com as pessoas que não querem esse jargão. Por quê? Porque esse jargão serve para idiotizar essas mesmas pessoas. Elas tem seu próprio modo de falar e precisam ser alcançadas dentro de suas próprias dimensões. Não sou uma crente progressista. Sou crente. É a Bíblia, o Evangelho, que me coloca permanentemente contra as injustiças sociais. Não é o manual da esquerda, é a Bíblia, quando diz “se teu inimigo te pede a túnica, larga também a capa”, “se teu inimigo te diz para andar uma milha, anda duas”. Não foi a esquerda quem me ensinou isso, mas a Bíblia.

O bolsonarismo criou uma disfunção ética de modo que trechos da Bíblia se tornaram afrontosos
Aline Bouhid – Como se aprofundou seu envolvimento com a campanha de Lula?
Creio que posso dizer que foi com a visita de Damares [Alves, ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos] com Michelle [Bolsonaro, ex-primeira-dama], no início da campanha do segundo turno. Aquilo mexeu comigo, porque ocorreu em minha igreja, meu pastor estava na segunda fila, as pessoas que eu amo e que me ensinaram o que está no Evangelho estavam ali. Minha mãe tem 63 anos, é missionária desde os 18. Foi professora de meu pai no seminário de teologia, é a pessoa que mais entende de Bíblia que eu conheço. Uma pessoa respeitadíssima. Ela estava ali sendo chamada de anticristo e de outras coisas horríveis. Disseram que ela tinha se desviado da fé. E não foi porque minha mãe tivesse feito um texto pedindo voto para Lula: foi porque ela havia feito um texto baseado no livro bíblico de Provérbios que falava sobre a verdade e orientando os irmãos a rejeitar as fake news. Não citou nenhum político.
O bolsonarismo criou uma disfunção ética e cognitiva de tal modo que trechos da Bíblia se tornaram afrontosos. A Bíblia se tornou um problema. Dizer que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino do céu passou a ser provocação; da mesma forma, dizer que não há nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, virou confronto a patriotas; se eu digo que não adianta pregar o Evangelho e despedir meu irmão com fome, só estou lendo a Bíblia, mas isso se tornou problema. Pois, então, no dia em que vi minha mãe sendo atacado por um texto em que não cita político nenhum, apenas pedindo para que os irmãos falem a verdade, com base no livro de Provérbios, percebi que o bolsonarismo sequestrou o sentido da fé evangélica. Deixou de ser um problema político e passou a ser um problema existencial, porque quem sou eu sem minha fé? Se não puder pregar o Evangelho… então, o bolsonarismo estava fazendo aquilo que acusavam o PT de pretender fazer. Quem estava fechando igrejas? Era Bolsonaro! Por quê? Porque igreja é comunhão, e meus irmãos, que me conhecem desde criança, estavam me chamando de inimiga do Evangelho e da família. Como, se eles coletavam marmita em minha casa para ajudar, quando meu pai morreu. Como podem dizer que sou inimiga da família, se eu, meu irmão e minha mãe ficávamos fazendo comida até 11 horas da noite? Ali eu entendi que hoje nosso maior inimigo é o bolsonarismo.
Italo Wolff – Como lidar com a história de que o PT vai fechar igrejas? Isso continua bem forte, principalmente entre os mais radicais, nas manifestações em porta de quartel…
Em um evento do PT, no segundo turno, fui confrontada por uma mulher me questionando sobre isso, dizendo que o “comunismo fecha igrejas”. Gente, o Silas Malafaia [liderança nacional dos evangélicos e apoiador de Bolsonaro] entrou para a lista da Forbes [revista estadunidense de negócios, que faz um ranking anual dos mais ricos do mundo] durante o governo Dilma! Ele tinha R$ 600 mil de patrimônio, passou isso para R$ 300 milhões. Os grandes líderes evangélicos enriqueceram, nenhuma igreja foi fechada, pelo contrário. (enfática)
É preciso dizer que, apesar do aceno aos evangélicos, não pode parar por aí. Aquilo que estava na gaveta, saiu e nos trouxe para este lugar não vai ser varrido por causa de resultado de eleição. Se os agentes políticos não entenderem que os evangélicos serão maioria da população brasileira em dez anos, vamos ficar sem recompor o País. Passada a eleição, eu vou voltar para “disputar” a igreja, porque, mais do que ganhar a eleição, é preciso reconverter a igreja ao Evangelho se não quisermos passar por isso a cada quatro anos.
Italo Wolff – Quais os reflexos que o bolsonarismo trouxe às pautas conservadoras?
O bolsonarismo é tão cretino e perigoso que esvaziou a bancada evangélica e a da segurança pública. A bancada evangélica virou bancada da pauta moral, não é preciso mais ser evangélico, não precisa ter lastro nenhum. Da mesma forma, na bancada da segurança, os CACs [caçadores, atiradores e colecionadores] engoliram os policiais. Essas pessoas ainda não entenderam que Bolsonaro destruiu suas duas principais bancadas de sustentação. O que tem lá hoje, na maioria, faz parte dessa neodireita, muito mais identificada com o bolsonarismo do que com o Evangelho e com a segurança pública. Esta será outra tarefa: mostrar a essas pessoas o prejuízo que Bolsonaro causou a elas. E não será difícil, já tem gente se dando conta disso, basta ver João Campos [deputado federal de Goiás pelos Republicanos, que é delegado e pastor da Assembleia de Deus, mas foi derrotado na disputa do Senado].