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Com quase 90 anos de idade, Joveny Sebastião Cândido de Oliveira acumula feitos e formações que o tornam um exemplo de “vida bem vivida”. Fazendeiro, tabelião, aviador, jurista e, principalmente, como gosta de destacar, professor.

Natural de Goiandira, Joveny Cândido é graduado em Ciência Política e Direito, mestre em Direito Agrário e doutor em Direito do Estado, tendo dedicado 51 anos de sua vida ao ensino. Ele estudou inclusive nos Estados Unidos. Seu nome está intrinsecamente ligado à UniAnhanguera — hoje UniGoiás —, onde foi professor e reitor, e também à Universidade Federal de Goiás, onde lecionou por 37 anos.

Permanece como referência de intelectual altamente preparado. Nesta entrevista, Joveny Cândido relembra detalhes de momentos históricos do Brasil que não encontrou em livros, apesar de ser leitor assíduo, mas que vivenciou em tempo real e, em alguns casos, participou. O professor também analisa os rumos da política, que acredita ser volúvel como um pêndulo, sempre pendendo entre esquerda e direita, e comenta sobre a sociedade de modo geral, afirmando: “Ainda não conseguimos entender as novas gerações”.

Hoje, aos 89 anos e em tratamento contra um câncer, ele diz não querer muito da vida, pois já recebeu muito dela. Sua biografia, escrita pelo jornalista e escritor Marcio Fernandes, acabou de ser publicada.

Herbert Moraes – Após tantos feitos em sua trajetória, o que, na visão do senhor, falta em sua biografia?

Creio que não me falta mais nada. Aos 89 anos, após percorrer tantos caminhos na minha vida, sinto que resta apenas acompanhar e ver frutificar tudo aquilo que plantei em diferentes áreas. Durante toda a minha trajetória, fui sobretudo um educador. Entre todas as profissões e atividades que exerci, a educação foi sempre aquela à qual mais me dediquei, a que considerei minha verdadeira vocação e profissão principal. Desde cedo descobri que queria ser professor por toda a minha vida. Transformei o magistério em um sacerdócio, e desse sacerdócio fiz uma missão. Desde então, venho exercendo e vencendo essas funções.

Foram 51 anos de docência na Universidade Anhanguera e 37 anos na Universidade Federal de Goiás, atuando de forma concomitante. Passei ainda seis anos lecionando no campus avançado da UFG, na cidade de Goiás. Preciso destacar que iniciei minha carreira em Anápolis, na antiga Faculdade de Ciências Econômicas de Anápolis. Posteriormente, essa instituição tornou-se a Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas de Anápolis, que mais tarde deu origem à Universidade de Anápolis (Uniana) e, atualmente, é a Universidade Estadual de Goiás (UEG). Costumo brincar dizendo que iniciei minha carreira naquela que seria a “bisavó” da atual UEG.

Herbert Moraes – Sei que o senhor estudou também na Universidade de São Francisco, onde ficou conhecido por tirar notas máximas em seus trabalhos. Essa dedicação e determinação aos estudos, que depois o levaram à docência, estão ligadas a quê?

Sou um pouco como Dom Quixote. Desde muito jovem percebi que queria deixar uma marca, colocar um tijolo na construção do mundo em que vivia. Logo compreendi que, pela educação, eu poderia erguer edifícios simbólicos e acrescentar muitos tijolos. Para isso, busquei me preparar. Quando comecei a lecionar, percebi as grandes falhas dos governos em oferecer condições adequadas de educação à população.

Lembro-me, por exemplo, de quando presidi uma banca de vestibular na UFG em que havia 24 candidatos para cada vaga. Ou seja, para cada jovem que ingressava, 23 ficavam de fora. Isso me entristecia profundamente, pois representava um enorme desperdício de talentos. Essa situação me fazia recordar um episódio histórico: quando a capital foi transferida de Goiás para Goiânia, o Dr. Pedro Ludovico trouxe para cá todas as instituições de ensino, como o Lyceu, a Faculdade de Direito, a Faculdade de Farmácia e Odontologia, além da Escola de Artes e Ofícios, que depois se tornou a Escola Técnica de Goiás. Com isso, os jovens de Vila Boa ficaram sem acesso a instituições de ensino.

O mesmo ocorria em Catalão, região de origem da minha família. Lá só havia o colégio das freiras, o Colégio Nossa Senhora Mãe de Deus, onde minha mãe estudou e se formou como normalista — equivalente hoje à pedagoga. Esse colégio, que ainda hoje presta excelentes serviços, era praticamente a única opção. A educação em Goiás era muito precária; o estado vivia em condições de miséria.

Compreendi, então, que seria apenas por meio da educação que poderíamos dar alguns passos à frente — e de fato avançamos. Foi por isso que decidi estudar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Lá concluí minha formação, obtive o doutorado e realizei meus dois bacharelados: um em Direito, na PUC do Rio de Janeiro, e outro em Ciências Econômicas, em Anápolis. Posteriormente, fiz cinco cursos de especialização e pós-graduação.

Durante toda a minha trajetória, fui sobretudo um educador. Entre todas as profissões e atividades que exerci, a educação foi sempre aquela à qual mais me dediquei

Quando foi criado o mestrado em Direito Agrário em Goiás, fui um dos primeiros alunos a me matricular. Já era professor, tornei-me mestre. Mas compreendi que apenas quem possui o título de doutor pode formar novos doutores e também mestres, que serão pesquisadores e professores. O doutor destina-se à pesquisa; o mestre, ao magistério. Assim, busquei constantemente aprimorar minha formação para poder formar outras pessoas.

E alcancei meu objetivo? Creio que sim. Afinal, lecionei por 51 anos na graduação.

Herbert Moraes – Como o senhor explica o despreparo de estudantes, não só do curso de Direito, mas também de outros cursos atualmente? Por que as mentes saem tão vazias das universidades?

Olha, essa questão é muito problemática. Por volta dos anos 1990, percebi uma diferença enorme entre os alunos de antigamente e os que chegavam às salas de aula. Coincidência ou não, eram alunos cada vez mais jovens. Sempre lecionei no primeiro ano, em disciplinas como Direito Constitucional, Teoria Geral do Estado e Ciência Política. Então, o estudante saía direto do colégio e já se encontrava comigo na faculdade de Direito.

Notei claramente a diferença entre esses jovens vindos do ginásio e do ensino médio, década após década. Como viajei muito, tive contatos nos Estados Unidos e na Europa, e também fui professor na Coreia, percebi que essa mudança estava acontecendo lá fora também.

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Para Joveny Cândido, a política é volúvel e dinâmica como um pêndulo | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Perguntei a colegas professores, psicólogos e pedagogos, mas ninguém tinha uma explicação convincente. Foi então que meu filho, João Cândido de Oliveira Neto — médico, muito estudioso, falava várias línguas e assinava revistas científicas de ponta — trouxe uma resposta que me marcou. Infelizmente, ele faleceu cedo, aos 49 anos, vítima de infecção hospitalar, uma grande perda. Mas, em um dos artigos que lia, havia uma afirmação decisiva: a cabeça do ser humano mudou profundamente nas últimas décadas.

Segundo esse estudo, os neurônios aumentaram e as sinapses se diversificaram. Ou seja, as crianças e jovens de hoje têm um funcionamento mental diferente, novos parâmetros de compreensão e interpretação do mundo.

Herbert Moraes – O senhor acredita que, com a inteligência artificial, essa superficialidade do pensamento possa se agravar ainda mais?

Vai agravar, sim. Eu acredito que não estamos apenas numa época de mudanças, mas numa verdadeira mudança de época. É um novo período histórico que está começando, com repercussões profundas no mundo cultural, político e também nas regras éticas e morais de convivência.

Houve uma modificação muito grande. Alguns dizem que houve uma piora; talvez não. O fato é que ainda não conseguimos entender totalmente essas novas gerações.

Herbert Moraes – O senhor disse que nasceu na “Mesopotâmia goiana”, em Goiandira. O que quis dizer com isso?

É uma referência geográfica. A leste, temos o rio São Marcos, que desce de norte a sul. Ao sul, corre o Paranaíba, de leste a oeste. E o rio Corumbá, também de norte a sul. Esses três rios cercam a região, formando uma espécie de “Mesopotâmia”.

Naquela época, a distância entre Catalão e Goiás era enorme. Não havia estradas, caminhões, nada. A comunicação era muito mais com Minas Gerais e São Paulo. As tropas de burros, que traziam principalmente sal — essencial para tudo naquela época —, vinham de São Paulo e paravam em Catalão.

Meu pai nasceu na Fazenda Bocaina, hoje município de Corumbaíba, e minha mãe em Catalão. Eu, porém, cheguei ainda bebê a Goiânia.

Na infância, tive muitas diversões ligadas à natureza, porque Goiânia era muito diferente de hoje. O Bosque do Araguaia, por exemplo, era mata virgem. Não havia Avenida Independência nem a linha da Estrada de Ferro, que só veio depois cortar a região. Era tudo mata fechada.

Herbert Moraes – Atílio Correia e Armando Godói falavam sobre a questão da pobreza do estado naquela época. Pedro Ludovico também cita nas memórias dele que não tinha dinheiro para nada, e havia até um boato de que o estado iria à bancarrota com a construção de Goiânia. O senhor considera uma saga hercúlea a construção de Goiânia?

Com toda certeza, porque nem o governo federal acreditava em Goiânia. Nós éramos tocadores de tropa, éramos os últimos da Federação Brasileira, e o primeiro salto para sair dessa posição incômoda no ranking do desenvolvimento econômico do estado se deu com a vinda da capital para cá. Eu acho que aí nós deixamos para trás o período aurífero, que já tinha acabado há mais de 100 anos, e passamos para um período mais agropecuário, de acordo com as vocações econômicas do estado.

Nós éramos tocadores de tropa, éramos os últimos da Federação Brasileira, e o primeiro salto para sair dessa posição incômoda no ranking do desenvolvimento econômico do estado se deu com a vinda da capital para cá

Praticamente nesse momento, a estrada de ferro já estava chegando. Entrou em Goiás em 1905, depois parou em 1912 em Pires do Rio por uma questão política — o povo de Santa Cruz não deixou a estrada passar. Então a ferrovia teve que seguir para o norte, em direção a Anápolis, que não era nada naquela época. Originalmente, a estrada de ferro tinha que sair de Pires do Rio, passar por Santa Cruz de Goiás, Goiás Velho e chegar a Cuiabá. Para isso, houve financiamento de bancos franceses para a construção da ferrovia em Goiás.

Mas isso não deu certo, acabou virando outra coisa. Mas o primeiro salto veio com a mudança da capital para cá. Nós nos desligamos do período minerário e passamos para o período agropecuário, já agora com uma ferrovia para carregar mercadorias — arroz, feijão ou gado, que era a única coisa que ia para São Paulo, porque o gado era praticamente a única mercadoria que caminhava em direção ao mercado.

O resto foi o próprio progresso tocando, e o salto final foi Brasília. Mas Goiânia colocou o estado no cenário nacional e abriu a economia.

Professor Joveny Cândido, em entrevista ao jornalista Herbert Moraes do Jornal Opção | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Herbert Moraes – O senhor, aos 89 anos, vê essa cidade agora próspera, mas cheia de problemas como toda metrópole: tráfego pesado, prédios, explosão demográfica. Como o senhor vê essa Goiânia do século XX?

Eu aplaudo. Foi o fruto exclusivo da luta de uma geração — aliás, de duas gerações: a dos meus pais e a do seu pai, junto com a do meu. Nós construímos tudo que está aí. Goiás nunca será o primeiro em nada, na minha concepção, mas também nunca será o último. Estamos sempre em posições intermediárias: sétimo, oitavo, nono lugar em economia, em gado, em soja, em educação.

Estamos sempre aí, nos 27 estados da União, deve haver pelo menos uns 20 atrás da gente. Já ultrapassamos todos os outros estados e hoje competimos de igual para igual com Santa Catarina e Paraná.

E outra coisa: estamos nos desenvolvendo cada vez mais. As gerações novas, descendentes de paulistas, mineiros, nordestinos, se misturando com a goianada de raiz profunda — como eu, você e outras famílias tradicionais do Centro-Oeste —, estão construindo efetivamente uma pátria nova, um terreno novo. Quando Deus me chamar, eu ficarei satisfeito e feliz, por uma razão simples: coloquei alguns tijolos na construção desse edifício chamado Estado de Goiás.

Herbert Moraes – O senhor é tabelião, fazendeiro e foi consagrado Cavaleiro da Ordem de Cristo. O que significa para o senhor essa consagração?

Tal como na maçonaria, significa servir. Os cruzados antigos foram criados por cavaleiros francos para proteger os peregrinos que iam a Jerusalém, que eram constantemente atacados. Os templários surgiram com essa missão e depois expandiram suas atividades, tornando-se uma força econômica e militar notável.

Primeiro, porque eram soldados valorosíssimos. Segundo, e aqui entro em uma área que conheço bem, já que fui oficial de cavalaria no Exército por três anos: os templários eram soldados extraordinários. Usavam, ao invés de cavalos comuns, cavalos normandos, enormes e poderosos.

Isso durou bastante tempo, até que o Papa Clemente e o rei Felipe da França acabaram com eles. Muitos foram massacrados na França, Espanha e Israel; alguns, como Jacques DeMolay, foram queimados vivos. Acreditou-se que a ordem tinha acabado, mas não foi assim. Em Portugal, o rei D. Manuel I os acolheu, e os templários passaram a se chamar “Cavaleiros da Ordem de Cristo”.

Antigamente, o rei de Portugal era o mestre principal da ordem. No início do século XX, com o fim da monarquia, passou a ser o presidente da República. Hoje, já não é mais assim.

Herbert Moraes – O senhor é o fundador da Arena. Segundo seu biógrafo, Márcio Fernandes, houve uma conspiração para a derrubada de João Goulart. O que significa e o que foi essa conspiração?

Olha, você não pode separar 1964 de 1961. A história, como todo mundo sabe, é uma série de argolas. Cada período é uma argola, e uma não se solta da outra. Se você quer entender o que aconteceu em 1964, precisa olhar para a argola anterior, 1961.

O que aconteceu em 1961? Isso eu posso falar porque eu estava lá. Eu era oficial de dia no quartel do Primeiro Regimento de Carros de Combate, no Rio de Janeiro, quando, no dia 24 de agosto, aconteceu a renúncia de Jânio Quadros.

Eu estava desesperado, porque, como não havia oficiais subalternos suficientes no Exército, os tenentes estavam sobrecarregados, e eu também. Eu morava em Copacabana naquela época e sonhava em tomar uma cerveja na praia, comer umas batatas fritas e dormir um pouco. Mas, quando chegava o toque às 8 da manhã, eu ainda estava entregando o serviço, tomando banho, fazendo a barba, tirando o uniforme de combate e colocando o de passeio. Nesse momento, o toque chamava todos os oficiais para se reunir no quartel.

Houve uma modificação muito grande. Alguns dizem que houve uma piora; talvez não. O fato é que ainda não conseguimos entender totalmente essas novas gerações

Então veio a notícia: Jânio renunciou e estava em São Paulo. E aí começou toda a confusão. Surgiram comentários do tipo: “O Jango não pode tomar posse, ele é um outro Perón”.

Nesse contexto, é preciso dizer que o Brasil, o Exército Brasileiro, estava dividido em quatro comandos regionais: o Primeiro Exército no Rio de Janeiro, o Segundo em São Paulo, o Terceiro em Porto Alegre e o Quarto no Recife.

Entre os comandantes, surgiu um impasse sobre a posse. O comandante do Primeiro Exército disse: “Não, ele não pode tomar posse, isso aqui vai virar um inferno”. O do Segundo Exército, acredito, por razões pessoais, ficou em cima do muro. Mas no Exército não há meio-termo: ou você é amigo ou inimigo. O Terceiro Exército declarou: “Pode vir, dou posse a você, você é presidente”. O Quarto Exército ficou com a posição do Primeiro: não tomaria posse.

Tudo isso aconteceu entre os dias 24 de agosto e 7 de setembro. Meu regimento, que era um regimento de tanques pronto para combate, foi enviado para a Serra das Araras, na região da Mantiqueira, entre Rio e São Paulo. A preocupação era que o Segundo Exército de São Paulo pudesse se deslocar para o Rio de Janeiro. Como ele era neutro, poderia se tornar inimigo a qualquer momento, e nós estávamos na linha de frente. Eu assisti a toda essa história de perto.

Nesse ínterim, entrou em cena um habilidosíssimo político chamado Tancredo Neves, que ressuscitou um projeto de lei que havia sido apresentado no Parlamento por um gaúcho chamado Raul Pilla, para transformar o Brasil em um regime parlamentarista.

Professor Joveny Cândido segura sua biografia, ‘Lutar pela Pátrica e Viver com Razão’ | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

O projeto foi aprovado às pressas, o parlamentarismo foi implementado, Tancredo assumiu como primeiro-ministro, e João Goulart chegou a Brasília com poderes reduzidos, quase como uma rainha da Inglaterra, sem poder real. Depois veio o plebiscito, o presidencialismo foi restaurado, e Jango pôde governar como prometia.

Portanto, você não pode separar 1964 de 1961.

Herbert Moraes – O senhor foi testemunha de vários momentos históricos. Como o senhor vê, hoje, o momento político do Brasil?

Pela primeira vez na minha vida, eu vi os partidos de direita tirarem a cabeça para fora do buraco. Ninguém tinha coragem de dizer no Brasil que era de direita. “Eu sou conservador, sou isso, sou aquilo”, mas não falava que era de direita. Agora, pela primeira vez, eles botaram a cabeça para fora. Na verdade, isso é uma página que se virou na história política do Brasil. Com toda certeza, haverá um choque entre partidos de esquerda e de direita.

A grande função dos partidos é representar o povo. Você acha que existe linha filosófica ou política com 32 partidos? Eu sou professor de ciência política e nunca consegui encontrar mais do que uma, duas ou três. Olhe para a Inglaterra, os Estados Unidos, a França, a Alemanha.

Os donos de partidos políticos não os largam, porque agora têm financiamento público. Isso permite controlar cargos, funções, despesas e tudo mais. Acredito que haverá uma união de partidos de direita, como o UB e o PP. Daqui a pouco, mais um ou dois se juntarão, e o PL, com certeza, também se aproximará, porque sozinho ele pode ser grande, mas logo perderá bancada.

Herbert Moraes – O senhor é considerado um homem da direita intelectual. O que seria a direita intelectual?

Não sei. Nesse ponto, não tem nada a ver com minha posição política. Eu defendo a liberdade, a vida, o direito de propriedade e a família. Esses pontos para mim são inegociáveis.

Ninguém pode mexer com a minha família, eu não aceito isso. Qualquer modificação que haja, aí entra em cena aquilo que falei sobre a modificação da cabeça dos jovens, das moças, com essas sinapses novas que surgiram na cabeça da garotada moderna. Novos neurônios, outras funções, ainda não pesquisadas, alterando profundamente os padrões éticos e morais de comportamento.

Herbert Moraes – O que ainda choca o senhor?

Nada. Nada mais me choca. Pelo que já vi em governos passados, roubando bilhões e tendo sentenças anuladas por questões processuais — deixa-se de lado a parte substantiva do processo e inocenta-se a pessoa por pontos adjetivos. Isso não foi o que eu aprendi na faculdade. E aí você esquece o crime e olha só porque não foi citado: pimba, manda o cara embora e ele fica com um bilhão de reais que roubou.

Herbert Moraes – Toda essa experiência política e histórica que o senhor tem na vida, como é que o senhor prevê o futuro político do Brasil?

A política é sempre um pêndulo. Vai lá, vem cá, vai lá, vem cá. Começou com Fernando Henrique Cardoso, com uma tendência para a esquerda. Depois veio todo o período do PT, houve esse pequeno intervalo com Bolsonaro e agora voltou para o PT.

Eu acho que a tendência agora talvez seja chegar ao centro. Pode ser que chegue à direita, com um candidato como Ronaldo Caiado, Romeu Zema ou Tarcísio de Freitas. Mas, no geral, a política fica indo e voltando. Observe a Inglaterra ou a Alemanha — países de sólidas tradições culturais —, e você verá a mesma oscilação.

Agora, com as ações que o Lula tomou, pode ser que ele continue no poder, se tiver saúde. Ele tem chance de ganhar a eleição. Mas se os partidos de direita não formarem uma união sólida, Lula poderá ir novamente para o segundo turno. Ele é um político que não permite que outros cresçam perto dele.

Vou citar o exemplo do meu amigo Iris Rezende. Ninguém crescia à sombra política do Iris. Lula age da mesma forma. Quem seria o grande sucessor dele? Seria Zé Dirceu, mas ele não deixou Zé Dirceu crescer. O PT tem mesmo apenas o Lula. Se ele se candidatar de novo, corremos o risco de mais quatro anos de lulismo.

Herbert Moraes – Mesmo com essa onda direitista – Milei na Argentina, Trump nos EUA, esse pêndulo que o senhor mencionou não deve se voltar mais para a direita?

Ele vai voltar para a direita um dia. Agora, não posso dizer se será em 2026 ou em 2030. Isso depende dos candidatos que competirem e também do contexto internacional.

A questão tributária, por exemplo, que Trump influencia indiretamente no Brasil, terá efeitos a médio prazo e pode impactar a presidência de forma significativa. Isso prejudica os partidos daqui, porque decisões tomadas fora têm repercussões internas. Na minha opinião, muitas das decisões tomadas no Brasil são equivocadas. Não se cutuca a onça com vara curta. Os Estados Unidos são poderosos.

Herbert Moraes – O senhor foi aviador. Santos Dummont dizia que, quando voava, navegava entre as nuvens. O que o senhor sentia quando estava ali pilotando, na solidão do céu?

A solidão é provocada por terceiros; a solitude é procurada. E eu sempre procurei essa solitude: ficar sozinho, quieto no meu canto. Era exatamente isso que sentia ao voar — tranquilidade.

Eu tinha um aviãozinho pequeno e fazia voos de brincadeira, como sempre fiz. Eu curtia. Por exemplo: “vou daqui até Rondonópolis”, uns 180, 210 graus. Botava a bússola, fazia as contas de combustível, tempo, e ia. Não olhava para nada.

Eu gostava de voar para simplesmente me desligar do mundo, porque lá eu não estou ligado a ninguém.

Herbert Moraes – O senhor é conhecido por ser destemido e por passar por diversas lutas. O senhor enfrenta agora um câncer aos quase 90 anos de idade. Essa seria uma das suas maiores lutas?

Eu não dou bola para esse câncer. Fui a quatro médicos — três em Goiânia e um em São Paulo —, três homens e uma mulher. As conversas foram praticamente idênticas. Dois médicos, inclusive, meu filho me acompanhou em São Paulo. Eles diziam mais ou menos o seguinte:

“Primeiro, na sua idade não tem cirurgia para isso. Pode tirar o cavalo da chuva, não há cirurgia. Segundo, se você largar esse câncer aí, não tratar nada, não tomar nada por conta dele, você vai viver quatro, cinco anos que ele não vai te matar. Você pode morrer de outra coisa, de um acidente, mas esse não vai te matar. Terceiro, se você, com a vitalidade que tem, a vontade de viver, com as metas que ainda quer cumprir, quer fazer as coisas que quer fazer, então faça o tratamento, certo?”

Eu resolvi fazer um tratamento. Estou fazendo o tratamento determinado, o radiológico já foi concluído. O quimioterápico foi concluído nesta segunda-feira.

Grande parte do tratamento quimioterápico, você recebe uma injeção que na verdade é uma aplicação de bolinhas muito pequeninhas que passam através de uma agulha muito grossa que entra em você. Isso dói que é uma praga. A única coisa que me incomodou foi essa dor dessa injeção, onde tem essas bolinhas implantadas em você.

E essas bolinhas vão liberando pouco a pouco o medicamento para curar o tumor. Mas eu fico até fazendo brincadeiras. Eu até convido gente para o meu enterro.

Herbert Moraes – O senhor teme a morte?

De jeito nenhum. Se eu temesse, não teria combatido o que combati. Vou seguir fazendo o que sempre quis, principalmente agora com meus netinhos e bisnetinhos. E ler.

Estou lendo agora, por exemplo, o Gramsci. Eu nunca tinha lido o Gramsci inteiro, mas agora consegui pegar todas as obras – os 27 cadernos dele transformados em livro. Eu nem sabia que existia assim. Consegui encontrar isso pela internet, comprei e estou lendo.

Também estou lendo José Régio; adoro José Régio. Quero curtir a vida, mas quero tão pouco dela… Ela já me deu tudo.