André Amorim: “A chuva é barulhenta, vira notícia. A seca se instala lentamente e, quando percebemos, já é tarde”
01 setembro 2024 às 00h00
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André Amorim atua como gerente do Centro de Informações Hidrológicas, Meteorológicas e Geológicas de Goiás (Cimehgo), o órgão da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) responsável por monitorar as águas, ar e meteorologia em Goiás. Além de produzir boletins para a imprensa diariamente, Cimehgo colabora com o Estado para fornecer dados acerca das condições climáticas e minimizar impactos de eventos extremos, como chuvas fortes e secas prolongadas.
Climatologista com mestrado em engenharia agrícola, André Amorim afirma que sente especial identificação com a área agrícola. O Cimehgo também coopera com as entidades do setor produtivo para orientar produtores rurais aumentar sua produção com informações sobre o clima e minimizar perdas no campo.
Nesta entrevista ao Jornal Opção, realizada na sede do Cimehgo, o climatologista fala sobre o domo de fumaça de queimadas que cobriu Goiânia na última semana. Ele explica ainda os impactos das mudanças climáticas para Goiás e sobre como a seca, que antes era um fenômeno típico do nordeste, tem se instalado por todo o país. André Amorim expõe ainda sua visão sobre a responsabilidade individual de combater o problema que gradativamente se amplia.
Italo Wolff — Do último domingo, 25, até esta quarta-feira, 29, Goiânia ficou encoberta por um domo de fumaça. Quais foram os fatores responsáveis por isso?
Para entender o que acontece em Goiás, precisamos olhar para o que acontece em volta da gente. Há uma massa de ar sobre a Amazônia (Massa Continental Equatorial) que vai até a cordilheira dos Andes e se movimenta para o sul, em direção ao Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e São Paulo. A floresta amazônica está literalmente pegando fogo; está muito seca e são vários focos de incêndio. Naquele dia, ocorreram episódios de queimadas intensas no interior de São Paulo.
Quando uma frente fria veio do sul para o norte, formou-se uma barreira de fumaça que fui subindo. O fluxo de ar que desce da Amazônia pelo oeste do Brasil foi empurrado para o norte. É um fluxo anormal, que juntou a fumaça das queimadas de três regiões: Amazônia, região Sudeste e do próprio estado de Goiás. A frente fria criou uma barreira que manteve a fumaça sobre Goiânia.
Nós já havíamos previsto a seca excessiva na Amazônia e monitoramos o aumento das queimadas em Goiás, mas é um conjunto de fatores que se somaram. Ainda temos um nível de fumaça mais alto que o normal, que só vai passar quando começar a chover.
Ton Paulo — Na última semana, tivemos uma série de queimadas ao redor do país. Qual o impacto a longo prazo, tanto para a qualidade do ar quanto para o volume de chuvas, dessas queimadas?
As chuvas não estão diretamente relacionadas com as queimadas. Em 2023 para 2024, tivemos o fenômeno do El Niño, que provoca muita chuva no Sul do país e chuvas irregulares no Centro-Norte. A seca no Amazonas, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul provocou um acúmulo de massa inflamável, material vegetal combustível.
Já sabemos que o fogo não se inicia sozinho. Os incêndios são provocados. Ainda não sabemos se há um movimento para atear o fogo ou se isso foi iniciativa individual — uma única pessoa foi presa, próximo a Iporá, por incendiar 700 hectares de terras. O que sabemos é que, neste ambiente muito seco, os focos se alastram com facilidade. Veja o mapa: não estamos tendo chuvas em lugar nenhum do país. Nossa estimativa é de que, na próxima semana, a situação vai se agravar ainda mais, a umidade vai cair.
Atualmente, estamos em neutralidade, com possibilidade de La Niña. Quando isso ocorre, a tendência é de que ocorra a entrada de frentes frias vindo do Sul. Nossa preocupação no momento é que isso pode ampliar o período de estiagem. No final do ano, as chuvas vão chegar e as pessoas vão se esquecer do problema que passamos, mas nossa atividade de coleta de dados serve para nos lembrarmos e percebermos as tendências.
Italo Wolff — Nesta época do ano, sempre temos um período de estiagem prolongado, mas ouvimos que as secas estão ficando mais severas. O Cimehgo percebe piora nas secas ao longo dos anos?
Desenvolvemos um trabalho chamado Monitor de Secas, que mostra o Brasil gradativamente mais seco. Percebemos que as secas estão ficando mais severas. Isso não é só em Goiás — é um problema em todo o Brasil. A seca, que era característica do Nordeste, começou a andar todo o país. Isso despertou a preocupação da Agência Nacional de Águas (Ana), órgão com que nós colaboramos.
A Ana se atentou para o problema de forma mais ativa em 2014, com a crise do sistema Cantareira. Naquela ocasião, São Paulo anoiteceu com água e amanheceu sem água. Isso forçou o governo federal a dar mais atenção aos alertas emitidos pelos órgãos de monitoramento. O Monitor de Secas, no começo, atuava apenas no Nordeste, e hoje é um programa de acompanhamento nacional, com interesse até de outros países da América Latina.
Nos últimos dez anos, observamos redução das chuvas no período chuvoso. Em Goiânia e em outros municípios, todos os anos estamos ficando abaixo da chuva esperada pelas projeções da climatologia. A seca é assim: ela não chega e se instala; ela vem silenciosa. A chuva vira tempestade, é barulhenta, vira notícia. A seca se instala lentamente e quando você percebe, já é tarde.
Ton Paulo — A situação deste ano é pior do que no ano passado?
O fenômeno de seca é relativo: avança, recrudesce, piora em um ano e melhora em outro. Mas, na média dos anos, o Brasil está mais seco, sim. No ano passado tivemos estiagem prolongada, mesmo no período chuvoso. Foi decretado estado de emergência. Nos três anos anteriores, o Rio Grande do Sul decretou emergência em diversos municípios por falta de água.
Aí, neste ano, veio a chuva e destruiu tudo. Choveu 300 mm em um dia. Isso é uma anomalia. Quando acontece, as pessoas se esquecem do ano anterior. Mas, no geral, percebemos uma gradativa redução de volume pluviométrico; o que não significa que não choveu.
Italo Wolff — O Cimehgo também monitora o volume das bacias e das reservas hídricas de Goiás. Houve variação? Os níveis dos reservatórios podem abaixar até ficar preocupante?
Vamos pegar o nível do Rio Araguaia medido em Aruanã como exemplo. Existem as máximas históricas, as mínimas históricas e o que chamamos de zona de normalidade. Em 2023, por conta do El Niño, as chuvas no final do ano foram menores do que o normal. O rio esteve na zona de normalidade pela maior parte do ano, mas não recuperou seu volume. Entramos em 2024 abaixo do esperado e hoje o rio tem menos água do que no mesmo período do ano passado. No município de Bandeirantes, o nível da água já está bem próximo da mínima histórica. O panorama deve se repetir para o próximo ano.
Ton Paulo — Antigamente, falávamos em evitar o “aquecimento global”, e hoje discutimos como remediar seus efeitos. Quais são as consequências das mudanças climáticas em nível global para Goiás?
Existem grandes eventos naturais, como o El Niño e La Niña. Quando foram identificados, no início do século 20, eram apenas teorias elaboradas a partir de observações de variações periódicas no clima. Depois, com o incremento da tecnologia, passamos a perceber o efeito desses fenômenos por diversos parâmetros, e hoje somos capazes até de de prevê-los.
Com as mudanças climáticas, é a mesma coisa. Hoje, não temos mais dificuldades de perceber seus impactos. Trabalhamos construindo cenários para o futuro, e estamos trafegando por cenários cada vez mais extremos. Não vemos um cenário de reversão dessa tendência. Vislumbramos no futuro um cenário de escassez hídrica, em que as chuvas são intensas e causam inundações.
Além disso, fenômenos raros ficam mais frequentes. Tivemos dias de frio no início deste mês de agosto, por exemplo. Não podemos dizer que isso nunca acontece — mas a última vez que ocorreu foi em 1985. As mudanças climáticas farão as anomalias serem mais casuais.
Outro exemplo de cenário atípico também ocorreu em 2024, quando tivemos uma onda de calor em São Paulo e Rio de Janeiro, com neve no Rio Grande do Sul. É um desequilíbrio geral.
Italo Wolff — O que as pessoas podem fazer sobre a questão?
O que quero trazer para essa discussão, independentemente da questão global, é o que temos de fazer com essa condição que temos. Não me refiro somente ao Estado fazer algo a respeito. Se está mais seco, por que não preservamos os mananciais? Próximo de onde moro, no Jardim Novo Mundo, na Avenida do Ouro, a prefeitura construiu uma mureta para evitar que as pessoas joguem entulho no córrego afluente do Rio Meia Ponte. As pessoas pegam o lixo, colocam no carro, e vão despejar lá. Ouvimos os moradores antigos falarem que nadavam no Lago das Rosas, nos rios de Goiânia. Hoje, onde se pode nadar na cidade? Só em piscinas.
O mesmo serve para a qualidade ruim do ar. Se temos baixa umidade, por que as pessoas continuam incendiando o lixo, apesar das campanhas dos governos pedirem para as pessoas não fazerem isso? Sei que é cultural, se fazia no campo, quando as pessoas moravam longe e não havia prejuízo em juntar as folhas secas e colocar fogo. Mas hoje vivemos numa cidade adensada, isso prejudica a todos.
Acredito que esse tipo de cidadão, não é a maioria. Mas basta uma minoria insistir nessas práticas erradas para que todos tenhamos um problema grave.
As pessoas fazem essas escolhas equivocadas. No Cimehgo, nosso trabalho tem a ver com essa responsabilidade compartilhada. Quando temos tempestades, anunciamos a todos, mas as pessoas não mudam suas rotinas — os motoqueiros saem no horário de pico. São situações que colocam a vida em risco.
Italo Wolff — Com quais órgãos o Cimehgo trabalha para reduzir esses riscos à saúde?
Além de alertar a imprensa, nossa função é repassar os dados para a Defesa Civil, Corpo Bombeiros do Estado de Goiás, secretarias de Saúde e muitos outros. Hoje é tudo interligado. Quando tivemos o domo de fumaça no domingo, notificamos a Superintendência de Vigilância em Saúde de Goiânia e a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. Temos um grupo de alerta, trabalhamos em contato direto com as autoridades. Em casos como esse, todos já ficam na defensiva para lidar com a situação.
Italo Wolff — O senhor sente que essa colaboração com as autoridades tem dado resultados? Qual feedback recebem dos órgãos do Estado?
Tem dado resultados e temos um apoio excepcional por parte do Estado. O atual governo tem uma ação contínua na parte social, e muita preocupação com a forma como nossas informações podem impactar as pessoas. Além de trabalhar com o governador Ronaldo Caiado (UB), podemos destacar a atuação da primeira-dama e coordenadora do Goiás Social, Gracinha Caiado, com quem integramos o Grupo de Políticas Sociais (GPS).
Um exemplo é o programa que começou como Nordeste Solidário e foi expandido para o programa Goiás Alerta e Solidário. Trata-se de uma ação para minimizar problemas decorrentes dos casos de grande volume de chuvas em um pequeno intervalo de tempo, com entrega de donativos, ações preventivas, de socorro e de reconstrução.
Estamos sendo atendidos em tudo que precisamos, com investimentos em modernização e aquisição de equipamentos, ampliação da rede de monitoramento. É um esforço que tem partido da secretária de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Andréa Vulcanis, e do próprio governador Ronaldo Caiado.
Ton Paulo — Para este ano, com base nas projeções que vocês fizeram até agora, o que o produtor rural pode esperar? Como ele deve se preparar para garantir sua produção?
Neste ano, teremos um atraso nas chuvas. Temos a expectativa de que chova em meados de setembro, em detrimento de uma frente fria, mas não é hora de plantar. Temos de ter calma. Popularmente, se fala da prática aqui em Goiás de “plantar no pó”. Temos de ter cautela com essa situação. O produtor planta no pó, a chuva acontece e depois passa dez dias sem chuva, ele perde todas as sementes.
Tradicionalmente, o produtor começa a plantar logo após a primeira chuva, mas os mapas climatológicos mostram que em outubro teremos precipitação abaixo da média. Em novembro o cenário melhora e aí, sim, as coisas começam. As chuvas vão vir mais tarde neste ano, e em algumas regiões com excesso de intensidade. Vai ser desafiador para o produtor rural. Ele terá de ter muita paciência e planejamento.
Estamos trabalhando com a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) e Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg) para dar apoio e informação ao produtor rural. Não queremos que os produtores percam safras e que garantam a melhor colheita possível.
Quando o clima não colabora, é sempre um desperdício muito grande — o produtor coloca máquinas para funcionar, passa dias trabalhando, mas se não plantar no momento certo, ele perde o começo da safra. A produção agrícola é muito cara, todos os investimentos são altos. Temos de proteger o produtor, dando informação de qualidade para que ele possa fazer suas ações com segurança.
Ton Paulo — Já é possível saber quais regiões podem sofrer com excesso de chuva?
Ainda está longe, então temos apenas estimativas. Mas, a princípio, a situação que se desenha neste momento é de que o Centro-Norte do estado de Goiás pode sofrer em novembro, dezembro e fevereiro no período de chuvas.
Isso é importante para o produtor rural, porque ele tem dois tipos de curva de nível — uma para conter a água na lavoura, outra para escoar a água quando é excessiva. Quando a época das chuvas chegar, o Cimehgo vai emitir os alertas. Estamos sempre trabalhando em nossa sala de situação, para que não tenhamos novamente uma situação como a do ano passado, quando se estimou que a perda da produção agrícola tenha chegado à casa dos bilhões de reais por conta da estiagem. No momento, estamos olhando para a questão dos focos de queimadas.