Crimes brutais ocorridos neste início de 2019 chocam a sociedade pela banalização da crueldade e ajudam até mesmo a ampliar uma espécie de paranoia

Contrariando a metáfora de Glauber Rocha com a cabeça de estátua grega decepada e jogada na lama: liberar forças inconscientes pode ser perigoso | Foto: Reprodução

Símbolos de uma barbárie assustadora, os três corpos sem cabeça encontrados na Região Metropolitana de Goiânia, em menos de dez dias neste início de 2019, contam muita coisa sobre os tempos em que vivemos. A violência modo “hard” (que lembra muito a estilização sanguinária de algumas obras de ficção) talvez seja o maior drama contemporâneo no Brasil – pelo menos será, certamente, um dos mais difíceis de se resolver.

Os problemas brasileiros não são poucos. Há gamas variadas de dificuldades, que podem ser fatiadas de acordo com a preferência do freguês: a corrupção que se alastra em todos os estratos, estruturas e ambientes; o atraso histórico na educação e na ciência; o lerdo desenvolvimento econômico, atrelado a práticas cartoriais e retrógradas; uma desarticulação social quase congênita, que é causa e consequência de um doentio comportamento egocêntrico da maioria etc.

Sim, são todos graves. E mais do que isso: é certo que a violência é filha da soma desses problemas. A questão é que, se perguntarem ao chamado cidadão comum (aquele que precisa enfrentar as ruas sem escoltas e carros blindados), ele frequentemente responderá que a maior dificuldade do país é, sem dúvida, a insegurança. A violência desmedida que vem cercando cidades grandes, pequenos municípios e também propriedades no campo. O medo de sair de casa e não voltar. De topar com “o horror, o horror”, no sentido conradiano.

Os números da violência no Brasil assustam e, em Goiás, que apresenta índices acima da média nacional, a situação é ainda mais intimidadora. Segundo o Atlas da Violência 2018, estudo produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o país convive com um número de homicídios nada menos que 30 vezes maior que o da União Europeia: absurdas 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes. Em Goiás, esse número chegou a bizarras 45,3 mortes por 100 mil viventes.

Além do contato frequente com a violência real, essa que engrossa as estatísticas, brasileiros e goianos também são obrigados a conviver com uma ameaça bem mais subjetiva: a sensação de insegurança. Sim, são duas coisas bem diferentes: a insegurança em si e a sensação que ela provoca. Mesmo que o maior volume de ocorrências aconteça em determinadas regiões de uma cidade e em certos horários, é comum que o cidadão tema que o crime possa ocorrer com ele a qualquer hora e em qualquer lugar.

Trata-se, como se disse, de um fenômeno subjetivo para o qual contribuem fatores específicos da realidade brasileira: o sucesso da chamada mídia sensacionalista e a incrível aceitação dos aplicativos de mensagens instantâneas (o WhatsApp especificamente). No noticiário de quase todos os canais de TV, por exemplo, o material sobre crimes violentos é superexplorado, com repetições sem fim de notícias escabrosas e suas imagens, que são indigestas, mesmo com as tarjas utilizadas nessas situações.

Pelo WhatsApp, a exposição à brutalidade consegue ser bem pior, já que não é submetida aos filtros de censura que os canais televisivos ainda mantém. Em grupos ou em listas de transmissão do aplicativo de mensagens, é comum a divulgação de imagens cruas da sanguinolência, muitas vezes obtida por pessoas que deveriam estar prestando socorro às vítimas – nesta semana, ocorreu um exemplo desses, no caso de um motorista que foi baleado várias vezes no Anel Viário, em Aparecida de Goiânia. Imagens captadas por celulares de curiosos mostravam o homem ainda sangrando no banco do carro, logo após crime.

Vale lembrar que o Brasil é um dos países com maior número de usuários de WhatsApp (mais de 76% das linhas móveis baixaram o aplicativo). Essa exposição exagerada a esse tipo de conteúdo tem consequências bastante perceptíveis, ajudando a envolver parcela considerável da população em um clima de tensão frequente, às vezes beirando o irracional, quem sabe uma paranoia. Um exemplo disso é o fato de muitos considerarem a hipótese de adquirir uma arma de fogo como uma solução plausível para se defender da violência.

Tais considerações sobre a sensação de insegurança, contudo, não amenizam a realidade de fato, que é mesmo brutal. As três cabeças decepadas, pelo que a polícia já apurou, não têm relação entre si. Teriam sido casos isolados, apesar de os acusados da terceira decapitação afirmarem que fizeram isso por terem visto a notícia das outras duas atrocidades na mídia. Mas, juntas, as cabeças “coroam” um lamentável início de ano para a segurança em Goiás, especialmente na região da Capital. São uma espécie de epítome cruelmente estetizada de uma onda de violência que não termina e sempre faz emergir o pior da natureza humana.

As decapitações já foram usuais na história, quase sempre com o objetivo de incutir medo em adversários – com as cabeças sendo expostas publicamente. Já foram inclusive consideradas o meio mais eficiente e civilizado para se executar penas de morte em massa, como na sangrenta fase do Terror, durante a Revolução Francesa, em que mais de 16 mil dissidentes foram decapitados na guilhotina em menos de um ano.

“Cabeças Cortadas” (1970) é também o nome de um filme mediano de Glauber Rocha, no qual a decapitação de uma estátua grega é uma metáfora quase psicanalítica. A cabeça feita pela razão e pela cultura ocidental deve ser decepada e jogada na lama, simbolizando o engajamento do diretor em certa ideia romântica: valorizar o inconsciente e os desejos para se libertar das amarras do racional. Glauber, como cineasta (e não como ideólogo), se deu melhor cortando cabeças de cangaceiros.

De qualquer forma, seja com a estátua grega ou com Corisco na mão do jagunço Antônio das Mortes (“Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964), o mais badalado diretor do Cinema Novo brasileiro estetizou a decapitação. Mas a estetização do modo “hard” de violência no cinema encontraria seu veio mais conhecido a partir do anos 1990, em filmes de Oliver Stone (“Assassinos por Natureza”) e de Quentin Tarantino (”Pulp Fiction”) – ambas as produções de 1994.

Difícil não se lembrar da banalização da violência encontrada nesses filmes ao se deparar com as notícias sobre a onda de crimes brutais em Goiânia neste início de ano. Mas enquanto não se sabe todos os detalhes das histórias por trás das três decapitações, a narrativa de outro crime violento que ocorreu na semana passada chocou a sociedade, sendo esse já desvendado pelas investigações. Trata-se do homicídio de Vanusa da Cunha Ferreira, motorista de aplicativo, que foi morta por um cliente que ela conhecia há pelo menos três meses.

Parsilon Lopes dos Santos confessou o crime, oferecendo à polícia (e à mídia, por extensão) todos os detalhes sórdidos. Sua versão inclui tentativa de estupro, assassinato e vilipêndio de cadáver. Ele alega que estava embriagado quando cometeu as atrocidades. Companheira de Vanusa, a corretora de imóveis Juliana Pereira acrescentou à história informações que indicam ter sido uma forma de feminicídio: o assassino estaria apaixonado pela motorista e não se conformava com o fato de ela ser lésbica.

É interessante observar que casos como o de Vanusa são apenas a superfície da crise de insegurança. Entram nas estatísticas mas, por serem passionais, não integram aquilo que poderia ser descrito como “sistema da violência”. Um mecanismo composto por crimes cometidos sistematicamente em função dos lucros de uma determinada atividade, seja ela organizada ou desorganizada.

Nesse sistema, o narcotráfico assume a dianteira com o maior número de ocorrências, mas também é preocupante o crescente número de quadrilhas que atuam em assaltos cada vez mais violentos, na receptação de bens roubados e também no mercado de mortes por encomenda – muitas vezes comandadas de dentro de presídios ou travestidas sob o nome de milícias “em defesa” da comunidade.

Por mais que se confirmem as graves suspeitas de que esse sistema de crime organizado possui vínculos com instituições públicas, inclusive nos mais altos degraus do poder político, há pelo menos uma vantagem: aqui, o inimigo da sociedade é certo e divisível. Pensando com otimismo, é possível vislumbrar até mesmo o conjunto de ações que precisam ser tomadas na dificílima missão de combatê-lo.

Quanto aos crimes passionais, a questão é muito mais complexa. Trata-se aqui daquela esfera inconsciente dos desejos pretendida pelo cineasta Glauber Rocha com a decapitação de sua estátua grega. Mas há um porém: quem retira a cabeça racional, não sabe o que coloca no lugar. Pois o universo interior dos sonhos e dos desejos é uma caixa de pandora mantida a sete chaves pelas forças civilizatórias da ética e da razão. Abri-la, sem cuidados, é quase sempre arriscado.