O ex-governador Marconi Perillo errou ao vender um patrimônio dos goianos para uma empresa que não tem honrado os compromissos com os consumidores

Franklin D. Roosevelt foi eleito quatro vezes presidente dos Estados Unidos (depois, a lei passou a permitir apenas uma reeleição). Ao assumir o governo, sentado numa cadeira de rodas — teve poliomielite aos 39 anos —, na década de 1930, o líder do Partido Democrata recebeu um país em frangalhos, dada a depressão econômica. Os capitalistas, para evitarem mais perdas, não investiam e o Estado estava paralisado.

Franklin Roosevelt e Harry Hopkins perceberam que o Estado às vezes precisa ser indutor da economia  | Foto: Reprodução

Roosevelt descobriu, se se pode falar que descobriu, que, em períodos de crise intensa, se os homens da iniciativa privada não podem ou não querem investir, para não correr riscos de perdas financeiras, o Estado acaba tendo de assumir o seu lugar. Tanto investindo diretamente quando agindo como indutor. Paradoxalmente, enquanto tentava salvar os capitalistas — até de si mesmos, de seus equívocos e indolência —, o presidente chegou a ser chamado de “comunista” e “vermelho”. Porque investia no social (o governo chegava a pagar para jovens zelarem de florestas).

Na verdade, Roosevelt, como Joe Biden, era liberal. Mas não um liberal ortodoxo. Ao contrário da turma de Chicago — Milton Friedman (1912-2006) é uma espécie de pai intelectual do ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes —, por ter de resolver problemas reais, que a iniciativa privada não podia ou não queria equacionar, o presidente percebeu que os Estados Unidos só sairiam da depressão se o governo federal investisse maciçamente na economia e, ao mesmo tempo, no social. Pode-se sugerir que o social era indutor da economia.

Sob bombardeio de empresários e intelectuais liberais, Roosevelt criou o New Deal, bancou tanto os pobres quanto os ricos (incentivando-os a construir obras, a abrir e reabrir empresas) e, para surpresa dos incrédulos, contribuiu, de maneira decisiva, para a recuperação da economia — restaurando o vigor do capitalismo ianque.

Paulo Guedes, quando jovem: o ministro parece que não percebeu a evolução do liberalismo | Foto: Reprodução

Recentemente, numa entrevista ao canal GloboNews, um professor de Economia da Unicamp disse que o liberal Paulo Guedes “parou no tempo”. Seu liberalismo estaria estacionado na década de 1970, sem evoluir um milímetro. Sabe-se que pensa mais em privatizações do que em construir um país melhor para todos — portanto, mas inclusivo socialmente. O governo de Jair Bolsonaro, se aceitar suas teses, terá de sair vendendo tudo, numa espécie de leilão permanente. Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Correios e Eletrobrás devem ser repassados para a iniciativa privada a qualquer custo. Seu ideário chocou-se, porém, com o do presidente Jair Bolsonaro — que, embora diga respeitá-lo e aceitar suas ideias, não é liberal. Ao contrário, como a maioria dos militares que estão no governo, é estatizante. Os militares que governaram o país de 1964 a 1985, apesar das veleidades liberais — sobretudo o general Castello Branco, que colocou dois liberais no governo, Roberto Campos e Octavio Gouveia Bulhões —, eram estatizantes. Criaram dezenas de estatais (um livro do doutor em História Jorge Caldeira menciona mais de 400 estatais).

Tudo bem privatizar o que não funciona, e gera despesas para a sociedade, reduzindo a capacidade de investimento do governo. Mas por que privatizar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, que certamente representam algum fator de estabilização no setor bancários e não geram problema algum para a sociedade? Produtores rurais, por exemplo, ficariam em melhor situação sem o BB? Possivelmente, não. Nem tudo precisa ser privado na economia. No caso da telefonia, a privatização ampliou e melhorou os serviços. Nas mãos do Estado, era difícil adquirir uma linha telefônica — era precisa entrar numa fila imensa e, às vezes, participar de um consórcio, por sinal com parcelas mensais caras. Hoje, há linhas sobrando. Há problemas? Menos do que antes.

Banco do Brasil: precisa mesmo ser privatizado? Tudo indica que não | Foto: Reprodução

No campo da energia elétrica, a privatização foi positiva? Em alguns Estados, talvez sim. Em Goiás, nem tanto.

O primeiro equívoco foi cometido no governo de Maguito Vilela, na década de 1990. Há indícios de que o então governador não pretendia privatizar a usina de Cachoeira Dourada. No entanto, sob pressão do governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, teve de fazê-lo.

Cachoeira Dourada era a galinha de ovos de ouro da Celg. Ela produzia energia elétrica e a Celg distribuía. Com a privatização, a empresa estadual passou a comprar energia da usina, o que aumentou seus custos. Portanto, no caso, a privatização não foi um bom negócio para o governo, para a Celg e para os goianos.

Posteriormente, e sem ter recebido pressão alguma, Marconi Perillo (PSDB), quando governador de Goiás, vendeu a Celg para a Enel, uma multinacional italiana. Construiu-se o mito de que se tratava de um grande negócio. E era mesmo… para a Enel (Ente Nazionale per l’Energia Elettrica). Curiosamente, o governo italiano é o maior acionista da empresa, com 21,20% de suas ações. No fundo, a Enel é praticamente uma estatal, uma semi-estatal.

Marconi Perillo, quando governador, vendeu a Celg e comemorou | Foto: Divulgação

Ao comprar a Celg, num negócio de avô para neto, a Enel prometeu o Céu na Terra. A rede de distribuição seria melhorada, o que, em tese, contribuiria para o crescimento da economia do Estado e do país (a empresa atua em outros Estados, como Rio de Janeiro, Ceará e São Paulo). O que parecia luminoso, nas belas palavras dos dirigentes da multinacional — que continua enviando os lucros para a Itália (o governo federal não sabe como verificar o quanto deveria ser investido no Brasil) —, acabou por se tornar, por assim dizer, trevoso. O gato por certo virou lebre ou a lebre virou gato?

Dada a crise hídrica, a energia elétrica ficou mais cara. Numa casa de classe média, de 134 metros quadros (dois moradores), com dois aparelhos de ar-condicionado, pagava-se pouco mais de 200 reais de tarifa. Agora, o valor saltou para 604 reais. É justo? Pode não ser. Certo, há um estudo técnico para elevar a tarifa (seria uma forma de forçar o consumidor a reduzir o consumo). Mas de 200 para 604 reais! Há lógica real nisto? Não haveria nenhuma manipulação de dados? Há a quem recorrer? Ah, dizem: à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Noutras palavras, é o mesmo que recorrer ao bispo. As demandas, se judicializadas, são demoradas e, ao mesmo tempo, a Enel contrata, em todo o Brasil, as melhores bancas de advocacia. O consumidor, na verdade, está aos deus-dará — sem nenhuma proteção. A Enel se tornou uma espécie de Deus — intocável. Consta que há políticos que a “protegem”.

O consumidor paga, inclusive, ICMS pelo consumo de energia elétrica. Adequado não seria a empresa pagar ICMS (e outras “contribuições”) aos governos? Tudo indica que sim. Mas é um assunto a respeito do qual quase todos se esquivam. Numa tarifa de 600 reais, o consumidor paga 200 reais de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, como se fosse sócio da Enel. O sócio que faz “aplicações” mensais mas não faz nenhuma retirada. E ainda fica sem um serviço qualificado.

Quando chove, a Enel não atende os consumidores com rapidez; ao contrário, a multinacional italiana é a primeira a chegar atrasada | Foto: Reprodução

Recentemente, durante uma chuva forte, com ventos intensos, vários bairros ficaram sem energia elétrica — algum deles por dois dias. Sem contar que, quando a energia volta, às vezes fica “caindo” com frequência — gerando instabilidade e risco de se queimar aparelhos nas casas (como televisão, geladeiras, computadores).

Se a chuva “apareceu”, o que é positivo para aumentar os reservatórios de água (nas hidrelétricas), ainda que não seja suficiente, pode-se sugerir que a Enel “desapareceu”.

Antes, quando o serviço de energia elétrica era controlado pela Celg, uma estatal, era mais fácil entrar em contato com a empresa, em busca de apoio, de socorro. A Celg e o governo do Estado eram pressionadíssimos. Com a Enel, apesar das denúncias divulgadas por jornais, sites e emissoras de televisão e rádio, é bem diferente. A empresa italiana não parece se sentir responsável pela falta de energia nas casas e nas empresas. É como se não fosse com ela. Talvez seja possível indicar que a Enel é omissa. Experimente, leitor, ligar para a Enel num dia de chuva. Se conseguir contato será um ato heroico, que merece comemoração. Se obtido o contato, o serviço da empresa — quiçá terceirizado — não chegará de imediato. Pode-se dizer, sem receio de errar, que a Enel é a primeira a chegar atrasada.

No momento, há um mercado aquecido no país, notadamente em Goiás. O de geradores de eletricidade, e não necessariamente para empresas, e sim para residências. Há geradores que funcionam com diesel (mais caro) e com gasolina. É a única maneira de não se perder produtos das geladeiras e dos freezers — além de não precisar comprar velas, lanternas e fósforos (se brincar, dependendo da Enel, a era dos lampiões voltará).

Se a Enel não funciona bem, se não trata os consumidores de maneira adequada, há como retomar os serviços e devolvê-los para o governo de Goiás? Tudo indica que não. Porque abalaria a segurança jurídica dos negócios feitos no país, não apenas em Goiás. Entretanto, como a prestação de serviços não é adequada, a sociedade e o governo devem se mover no sentido de pensar ou repensar a questão. Talvez se deva articular um movimento, inclusive cívico-popular, a respeito.

Mas a Enel está passando dos limites, tendo se tornado a James Bond da energia elétrica no Brasil: parece que tem licença para não atender e, quando o faz, para atender mal o consumidor. Vale sublinhar o que se disse acima: a Enel, mezzo estatal e mezzo privada, comprou uma estatal, dentro de um sistema que insiste em dizer que tudo que é estatal não presta — o que, seguramente, não é verdadeiro. A Celg atendeu bem os goianos durante décadas. O serviço de eletrificação rural, por exemplo, é impagável e, de algum modo, contribuiu para modernizar o campo em Goiás. Um serviço feito pela Celg que hoje, certamente, a Enel não faria, porque demandaria um investimento muito forte, com alto endividamento, inclusive externo. O trabalho “social” da Celg — esquecido depois da privatização — merece ser contado pelos historiadores. Talvez tenha sido a estatal que mais contribuiu para desenvolver e modernizar Goiás — ao lado da Saneago (com água tratada e esgoto sanitário).

Vale realçar: não falta energia elétrica em Goiás, nas casas e empresas, apenas quando chove. Falta sempre, mesmo no período não chuvoso. O que prova que o serviço da Enel é deficiente em qualquer época do ano.

Xi Jiping e Joe Biden: drinque civilizado e guerra comercial | Foto: Reprodução
Retomando Roosevelt e o papel do Estado

Franklin Roosevelt recuperou a economia dos Estados Unidos investindo maciçamente no social e na recuperação das empresas dos capitalistas, que, ante a crise, estavam recolhidos, resguardando seus capitais das intempéries. Pode-se postular que, tendo governado durante quase toda a década de 1930 e quatro anos e alguns meses da década de 1940, o presidente salvou o capitalismo para os capitalistas. Hoje, é um ícone americano. Ele colaborou, mais do que qualquer outro presidente (inclusive Theodore Roosevelt, o amigo do marechal brasileiro Cândido Rondon), para tornar os EUA a potência dominante do século 20. As economias europeia e japonesa, por exemplo, se tornaram, em larga medida, dependentes da economia da terra de Henry James.

A “Veja”, prócer do liberalismo patropi (mesmo no período controlado pela família Civita), passou a escrever a palavra Estado com a letra “e” minúscula — numa tentativa de postular que é (quase) “desnecessário” ou “desimportante”. Não é. A atitude pueril da revista, até como jornalismo, é a bobagem típica dos que se preocupam com ninharias e lugares-comuns. É a troca da essência pela aparência, a banalização do debate político e econômico.

Assim como não pode ser visto como mero representante das classes dominantes — como quer certo marxismo retardatário —, o Estado não pode ser percebido como não-necessário. O Estado é vital, porque, quando funciona bem, é o representante da sociedade, incluindo na pauta, por exemplo, a defesa dos mais pobres (mesmo contra o desejo dos ricos, que vivem dizendo que é preciso ensinar os pobres a pescar. Brincar com a fome alheia é o cúmulo da falta de humanismo, de solidariedade). Estados frágeis, onde quase tudo é privatizado, raramente são inclusivos. Frise-se que a centro-esquerda está se firmando, mais uma vez, em vários países europeus (inclusive na poderosa Alemanha, onde os conservadores perderam para os social-democratas). Há uma nova vaga por (mais) igualdade social e pela preservação ampliada do meio ambiente.

O Estado é “fraco” (e não intervencionista) nos Estados Unidos, na China, no Japão e na Alemanha, os quatro países mais ricos do mundo? Pelo contrário, é forte e onipresente. Agora mesmo assiste-se o presidente Joe Biden, sem receio de aumentar o déficit público, investindo trilhões na economia americana. A saída das tropas americanas do Afeganistão visa a liberação de capitais para investimentos na economia endógena, que teme, com razão, o avanço da China. Um avanço quiçá incontornável. Ainda que o historiador Niall Ferguson, britânico que leciona em Stanford, aposte que os chineses não vão suplantar a capacidade tecnológica dos americanos. Dados recentes, porém, sugerem que o pesquisador talvez esteja enganado (o supercomputador mais rápido do mundo já é chinês, assim como a melhor escola de engenharia já é chinesa).

A ascensão da China é cada vez mais rápida. A crise recente de uma grande empresa do setor imobiliário pode criar um sistema de quebra coletiva? Dificilmente. O governo da China é um dos mais capitalizados do mundo e, por isso, dificilmente permitirá uma quebradeira geral da economia. (Quando a crise do setor imobiliário americano levou bancos à derrocada, o Estado, na gestão do então presidente Barack Obama, “salvou” os capitalistas de seus próprios erros. As fábricas de automóveis também aceitaram, alegremente, o apoio do governo. Nenhum capitalista em crise pediu vara para pescar.)

Quando veta a distribuição gratuita de absorvente menstrual para as estudantes de baixa renda, nas escolas públicas, Bolsonaro não está agindo como “liberal”, como um apóstolo da grei de Paulo Guedes. Na verdade, mostra-se um agente do atraso, um político que não se preocupa de fato com os pobres. Como a Enel, o presidente mostra que está se tornando o primeiro a chegar atrasado.