Tiros contra Lula empurram democracia do Brasil na ladeira da intolerância
01 abril 2018 às 00h00

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Você pode até acreditar, por qualquer motivo, que o ex-presidente seja o maior criminoso do País, que isso não lhe dá direito a fazer “justiça” por conta própria

Está para surgir manifestação mais curiosa – para não dizer que deve ser estudada pela psiquiatria – do que bater panela na frente de uma televisão enquanto um presidente da República se pronuncia ou fechar a Praça do Bandeirante contra a Reforma da Previdência. Concorde ou não, as duas são formas de protesto legítimas e devem ser respeitadas, até mesmo se parecerem incompreensíveis e com pouca eficácia.
Se os movimentos de demonstração pública do descontentamento a determinada política governamental, figura partidária ou sigla seguissem o script do campo das ideias, da importunação das vias interditadas por marchas de pessoas ou com barulho nas janelas, estaríamos no caminho natural dos protestos de uma sociedade participativa e que pressiona por meios democráticos de usar o direito à voz. A triste realidade é que, pequenos grupos ou individualidades fascistas, tem crescido em escala assustadora a intolerância e interpretado a garantia da opinião como imposição do posicionamento. Do mais ignorante ao extremamente esclarecido.
A raiva contra o diferente e o individualismo extremo atingiram níveis intoleráveis e inexplicáveis. Ao ponto de a violentada expressão “direitos humanos” ter se tornado moeda de troca na distorção ideológica que desafia a capacidade intelectual das pessoas a entender – sabe-se lá como – que o estabelecimento da cidadania seria o mesmo que defender bandido. A interpretação nada racional do termo gerou uma série de manifestações de ódio e comemorações incompreensíveis quando foi noticiada a execução da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e o motorista Anderson Gomes, na noite de 14 de março.
O desafio à inteligência e o respeito às diferenças tomaram um golpe fortíssimo ao serem confrontados com a crueldade desrespeitosa das notícias inventadas e fatos que nunca existiram, mas começaram a ser atribuídos à imagem da vítima de assassinato, única e exclusivamente pelo fato de que “direitos humanos” seriam coisas inventadas por “esquerdopatas” para defender bandido. Não adiantaram institutos de verificação de informações comprovarem com todas as provas e fatos possíveis que todas as invenções contra Marielle se tratavam de fake news. A frase “eu disse a verdade, se você não acredita é problema seu” tem tomado força desproporcional e desleal frente aos acontecimentos. Eu defendo aquilo que é favorável à verdade de mundo que eu construo de acordo com minhas convicções, se isso é uma invenção da minha cabeça pouco importa, o meu universo particular fica mais confortável assim.
Não bastasse o ódio agravado pelos algoritmos das redes sociais na internet, pelos quais só se tem acesso a conteúdos favoráveis e tranquilos para a sua vida diária, sem qualquer chance de ser confrontado com uma realidade oposta às suas crenças, as pessoas têm se engajado de corpo e alma – quando não com punhos, pontapés, xingamentos, armas e sangue – na violenta atitude de evitar a fadiga do desgaste cerebral do debate de ideias e partido para a comprovação anencéfala da deturpação por meio da agressão.
Bastaram 13 dias – curiosamente o mesmo número do PT nas urnas – depois da morte de Marielle e Anderson para que dois dos três ônibus da caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Sul, depois de ataques, vidros quebrados, ovos e pedras arremessados contra os participantes dos eventos, sofressem um ataque a tiros. Você leu isso mesmo: disparos de arma de fogo. Quando se esperava a reação intolerante e simplista de quem deseja a salvação do Brasil pelos discursos rasos de um pseudomártir ou ao coro de “mito” em saguões de aeroportos, o despejo de frases infelizes e raivosas surgiu da boca dos que deveriam ser os mais comedidos e que aguardava-se demonstração de indignação em defensa da apuração imediata do grave ocorrido em Quedas do Iguaçu (PR) na noite da terça, 27: pré-candidatos a presidente adversários de Lula.
É justo e natural que aqueles que enxergam na pessoa do ex-presidente um bandido em liberdade se revoltem com a demora da Justiça em, depois da condenação em segunda instância, ainda permitir que ele excursione pelo Brasil na posição de pré-candidato a Presidência da República. O que não torna justificável, mesmo que por parte de um pequeno grupo, que alguém atente contra uma reunião de pessoas ou em confronto à vida de Lula – ou mesmo de Jair Bolsonaro (PSL), Geraldo Alckmin (PSDB) e João Dória (PSDB), que ironizaram o caso em suas declarações iniciais.
“Lula quis transformar o Brasil num galinheiro. Agora está colhendo os ovos.” A frase do pré-candidato Jair Bolsonaro não surgiu das falas de um internauta metido a comediante criador de memes ou veio da página do Movimento Brasil Livre (MBL). Nem mesmo a tentativa desastrada de Alckmin ao se retratar criticando o petista um dia depois de afirmar que “estão colhendo o que plantaram”: “É papel de homens públicos pregar a paz e a união entre os brasileiros. O país está cansado de divisão e da convocação ao conflito”. Quem completa o termômetro da ladeira escorregadia pela qual a democracia brasileira despenca rumo à caverna da intolerância é o pré-governadoriável por São Paulo, João Dória. O quase ex-prefeito que queria acelerar a capital paulista afirmou que “o PT sempre utilizou da violência, agora sofreu da própria violência”.
Que o Partidos dos Trabalhadores, em momentos específicos, incentivou o extermínio da oposição – na condição de ocupante do espaço político – e chegou a dizer que pegaria em armas para evitar a prisão de Lula, isso não há como negar. Quem tentar será traído pelas gravações e notícias publicadas em diversos veículos de comunicação. O problema está justamente em defender que a fala do outro justifique um ato violento, um xingamento, uma agressão ou até uma tentativa de homicídio em busca do que se acredita ser a “justiça”.
Não. Isso nem de longe é fazer valer o direito à justiça, no sentido de algo legal e justo. Atirar contra um ônibus, matar uma política supostamente por sua atuação parlamentar em defesa dos oprimidos e sem voz ou agredir alguém porque declarou que votará em Lula, Dória, Alckmin, Bolsonaro, Marina Silva (Rede), Ciro Gomes (PDT), Flávio Rocha (PRB) ou João Amoedo (Novo) é jogar fora o que o ser humano tem – ou deveria – de mais precioso, que é a capacidade de síntese. Voltemos a ser uma espécie racional, saibamos dialogar ou em pouco tempo estaremos presos na caverna de Platão armados com ovos, pedras, chicotes e correntes. Ou até mesmo pistolas, que estarão apontadas para pedestres, ciclistas, outros motoristas, vizinhos, colegas de trabalho e parentes.
Sobreviveremos até outubro para votar no melhor populista, com soluções simplistas para nossas vidas, embalado em uma boa produção de discurso e imagem na propaganda eleitoral de rádio e TV? Podemos também aprender a respeitar a opinião do outro e entender que as pessoas são diferentes e precisam usar o poder do diálogo para enfrentar a complexidade dos desafios que um país em crise nos obriga a encarar.