O Ocidente às vezes trata o sucesso econômico da China — segunda maior potência global — como uma espécie de acidente. Por que os caminhos do país que agasalha 1,4 bilhão de habitantes são diferentes dos sendeiros das nações capitalistas típicas, como Estados Unidos, Japão, Alemanha e Inglaterra.

Na China, o Estado é mais forte do que o mercado. No entanto, o mercado também é sólido. Só que, diferentemente do que ocorre nos quatro países citados acima, é controlado e monitorado pelo Estado. Quer dizer, pelo Partido Comunista Chinês.

A China conseguiu combinar forte interferência estatal com mercado poderoso — e não apenas com empresas chinesas. Pode-se sugerir que o capitalismo salvou o comunismo no país de Xi Jinping. Mas é um capitalismo (ou socialismo) híbrido: o mercado existe, é atuante, mas o Estado é onipresente, onipotente e onisciente. Tinha tudo para dar errado. Mas deu certo.

Então, quando se vai avaliar a China, todo cuidado é pouco. Não basta dizer que se trata de uma ditadura, o que é fato. É preciso admitir que se trata de um caso de sucesso. De grande sucesso. Tanto que surpreendeu o capitalismo e seus ideólogos. Se a União Soviética naufragou, porque não permitiu que o mercado irrigasse o crescimento de sua economia, tolhendo as forças individuais, a China, pós-Mao Tsé-tung deu-se bem, reinventando sua economia. Talvez seja possível indicar que há um novo modo de produção — o socialismo-capitalista — não suficientemente descrito pelos economistas.

Lula da Silva ao lado de Xi Jinping, presidente chinês | Foto: Ricardo Strucket/PR

Diz-se que a China está chafurdando numa crise de dimensões imprevistas, sobretudo no mercado imobiliário, que, a rigor, envolve bancos — enfim, toda a economia. Pode-se postular que se terá um quebra-quebra? Dada a capacidade financeira do país, às suas poderosas reservas (em dólar, diga-se), a resposta talvez deva ser um rotundo “não”.

Há uma torcida para que a crise da China seja maior, sobretudo nas economias ditas liberais? Talvez sim. Os chineses estão ampliando sua presença em todo o mundo, inclusive em países pequenos tanto da América do Sul quanto da América Central. Sua moeda, ainda não forte quanto o dólar e o euro, começa a ser aceita em outros países, como na Argentina.

A capacidade da China de se reinventar, mesmo sendo uma ditadura — o que, claro, é imperdoável —, é imensa. Por isso, a crise atual pode abalar o país, mas certamente não o derrubará. Num artigo traduzido e publicado no “Estadão”, sob o título de “Como lidar com o evidente declínio da China?”, Bret Stephens assinala: “O maior desafio que a República Popular nos apresentará na próxima década decorrerá não de sua ascensão, mas de seu declínio”.

Xi Jinping e Joe Biden: batalha geopolítica | Foto: Reprodução

Previsões que tratam da China, sobretudo quando em termos de “próxima década”, às vezes são alarmistas. Bret Stephens estaria misturando “desejo” e “realidade”? É possível. Porém a crise, que aponta, é uma realidade. Mas não há indícios, ao contrário do que sugere o crítico, de que se trata de uma crise de “queda” do sistema de socialismo de mercado. Entretanto, o crítico é “esperançoso”, ao apontar o paradoxo de Tocqueville: “A ideia de que revoluções ocorrem quando expectativas crescentes são frustradas por uma piora abrupta nas condições sociais e econômicas”.

Bret Stephens é, claro, muito bem-informado, mas não divulga que, nos últimos anos, a miséria caiu na China. O grau de satisfação com a nova realidade é alto. Há insatisfações, é natural, mas isto não sugere que surgirá, de repente, um movimento para a derrubada do governo ou então por uma liberalização do comunismo, ao estilo do que fez Deng Xiao-ping — um grande avanço em relação a Mao Tsé-tung, um político que, na área de economia, era reacionário.

Certo, Xi Jinping está centralizando mais poder em suas mãos, quiçá temendo, no futuro, o surgimento de um Mikhail Gorbachev chinês, que, tal como o soviético, promova uma glasnost e uma perestroika, que, longe de levar o país adiante, em termos de economia, talvez leve a uma debacle econômica e, sobretudo, política.

Análise de Paul Krugman sobre crise na China

Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman publicou um artigo no “New York Times”, traduzido pelo “Estadão” e publicado com o título de “Quão assustadora é a crise da China?” A pergunta, feita por um economista do mais alto gabarito, sugere dúvida, embora o texto contenha determinadas certezas.

Goiás precisa, e muito, do mercado da China | Foto: Reprodução

Krugman sugere que a atual crise da China — que envolve o setor imobiliário, mas não apenas ele — é “muito parecida” com a crise global de 2008 (muito acentuada, por exemplo, nos Estados Unidos, onde bancos foram fechados e o sistema imobiliário entrou em parafuso).

A dívida chinesa — interna — é insustentável? Krugman diz que é muito difícil responder à questão… nem as autoridades da China saberiam explicá-la, para além de uma possível “propaganda”.

“Se a China realmente passa por uma crise em estilo 2008, esta crise transbordará de alguma maneira importante para o restante do mundo? E a resposta é bastante clara: não. Por maior que seja a economia chinesa, os Estados Unidos estão poucos expostos financeiramente ou comercialmente aos problemas da China”, assinala Krugman.

(Krugman não discute o Brasil de Lula da Silva. Mas fica a pergunta: se a China é o maior parceiro comercial do país tropical, no caso de uma crise grave, que reduza ainda mais o seu crescimento, o que acontecerá com a economia patropi? Talvez seja fortemente atingida. Alguns municípios goianos — como Rio Verde, no Sudoeste do Estado — dependem, em larga escala, da nação oriental. Certamente, os chineses não deixarão de comprar produtos brasileiros, como soja e carnes, mas poderão reduzir as aquisições — o que poderá abalar a economia da terra das grandes prosadoras Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles e das grandes poeta Sônia Elizabeth e Lêda Selma. A impressão que se tem é que Krugman universaliza a “boa” situação dos Estados Unidos, cuja economia é muito superior a qualquer outra.)

Há uma poderosa crise imobiliária na China | Foto: Reprodução

“A crise de 2008”, pontua Krugman, “foi ocasionada pelo estouro de uma enorme bolha imobiliária transatlântica. Os efeitos da bolha estourada foram amplificados por perturbações financeiras, especialmente o colapso dos ditos ‘shadow banks’ — instituições que agiam clandestinamente como bancos, criando riscos de corridas a bancos mas prescindindo amplamente de regulamentações e das redes de segurança fornecidas a bancos convencionais”.

Para Krugman, o setor imobiliário da China é “mais inchado que o dos países ocidentais antes de 2008. A China também tem um enorme e altamente atribulado setor de shadow-banking; além de problemas peculiares, como dívidas enormes de governos locais”.

Mas há uma boa notícia para a China, na avaliação de Krugman: a dívida chinesa “é, essencialmente, de dinheiro que a China deve para si mesma”. O economista pergunta: “O governo da China tem competência suficiente para gerir o tipo de reestruturação financeira que sua economia precisa? As autoridades chinesas têm determinação suficiente ou clareza intelectual para fazer o que é necessário ser feito?”

A segunda questão é a que mais preocupa Krugman (o economista não estaria repisando velhos preconceitos contra os chineses e sua capacidade intelectual?)

“A China precisa substituir o investimento imobiliário insustentável por maior demanda de consumo. Mas alguns relatos sugerem que autoridades chinesas mais graduadas continuam suspeitas em relação a gastos de consumo ‘supérfluos’ e também resistem à ideia de ‘dar poder para os indivíduos tomarem mais decisões a respeito da maneira que eles gastam seu dinheiro’. E não é nada tranquilizador o fato de as autoridades chinesas estarem respondendo à possível crise pressionando os bancos para emprestar mais, basicamente continuando a política que levou a China à situação em que ela se encontra”, assinala Krugman.

Mas e se a receita do economista americano for conveniente para o capitalismo americano e de outros países, mas não para a China, que, a rigor, não é capitalista, ao menos no sentido tradicional?

A crise chinesa, se alargada, atingirá o Ocidente ou ao menos os Estados Unidos? Krugman acredita que não: “A exposição dos Estados Unidos a uma possível crise chinesa” seria “surpreendentemente pequena”.

“Quanto os Estados Unidos têm investido na China? O investimento direto — que envolve controle — na China e em Hong Kong é de aproximadamente 215 bilhões de dólares. Investimento em carteira — basicamente ações e obrigações — estão na casa de pouco mais de 300 bilhões. (…) Um total de 515 bilhões de dólares”, anota Krugman. Não é um investimento grande para uma economia como a americana.

Krugman frisa que a economia chinesa, gigante, atraiu pouco investimento americano, porque, “dadas as arbitrariedades das políticas chinesas, muitos possíveis investidores temem a possibilidade da China se tornar uma armadilha de baratas: você consegue entrar, mas pode não conseguir sair” (vale ressaltar que Nike e Apple estão na China, alegremente, aproveitando tanto a mão de obra quanto as matérias primas baratas — o que o Nobel de Economia não diz).

A China compra pouco dos Estados Unidos — “apenas cerca de 150 bilhões de dólares em 2022, menos de 1% do PIB” do país de Joe Biden.

O que Krugman está sugerindo, portanto, é que “uma crise chinesa não surtiria muito efeito direto na demanda por produtos americanos. O efeito seria maior em países que vendem mais para a China, como a Alemanha e Japão, e algo poderia ricochetear nos Estados Unidos por meio das vendas a esses países. Mas o efeito geral ainda seria pequeno”. (O texto do economista saiu num jornal brasileiro, mas não há referência ao Brasil, país que, certamente, perderá com uma possível grande crise da China. O país vende soja, minérios e carnes para os asiáticos.)

Krugman conclui que a crise será da China, e não do mundo. Mas é possível que ele esteja enganado, ao menos parcialmente. Uma crise da China, se de grandes proporções, sobretudo se abalar seus parceiros — que também são parceiros dos Estados Unidos —, pode afetar todo o mundo, inclusive o país do poeta William Carlos Williams.