A tradição golpista das Forças Armadas — sobretudo o golpe de 1964 — contamina as avaliações recentes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha. Uma vez golpista, sempre golpista.

Em 1889, a República foi proclamada por uma irmandade entre militares e civis. O fato de que os dois primeiros presidentes, os alagoanos Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892) e Floriano Vieira Peixoto (1839-1895), eram militares, o segundo apodado de “Marechal de Ferro”, indica que a República é filha de um golpe de Estado, não de uma transição pacífica, democrática.

Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto: a República nasceu com militares no poder | Fotos: Reproduções

Em seguida, a República foi capturada pelas oligarquias de São Paulo num dueto com as de Minas Gerais. Trata-se do que se convencionou denominar de política do Café (São Paulo) com Leite (Minas). Tais grupos controlaram, durante boa parte do tempo, a política e o orçamento nacional — isolando os demais Estados.

Em 1930, houve uma crise entre Minas e São Paulo. Era a “vez” de Minas Gerais governar o país, com Antônio Carlos de Andrada, o oligarca da terra do bardo Carlos Drummond de Andrade e Adélia Prado. Porém, São Paulo roeu a corda e o presidente Washington Luís decidiu bancar a candidatura de Júlio Prestes, que havia sido governador de São Paulo.

Os grupos políticos do Rio Grande do Sul, ao perceberem a divisão entre São Paulo e Minas, entenderam que havia uma oportunidade para derrotar as facções políticas lideradas pelo Estado do poeta Mário de Andrade.

Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954) — com o apoio de Osvaldo Aranha (1894-1954) e João Pessoa (1878-1930 — foi assassinado aos 52 anos), entre outros — candidatou-se a presidente da República.

Getúlio Vargas e Pedro Ludovico Teixeira: representantes da ditadura do Estado Novo no país e em Goiás | Foto: Reprodução

Dado o apoio de São Paulo, a locomotiva do país, Júlio Prestes de Albuquerque (1882-1946) foi eleito. Porém, dadas as denúncias de corrupção (fraudes eleitorais) — que, a rigor, beneficiou os dois lados da contenda —, civis e militares se insurgiram e derrubaram o presidente Washington Luís e impediram a posse de Júlio Prestes (que, membro da elite paulista, não tinha nenhum parentesco com o comunista Luiz Carlos Prestes).

Como tratar 1930? Getúlio Vargas chegou ao poder, se tornando presidente, graças a um golpe de Estado. Mas o senso comum e a historiografia tratam 1930 como “Revolução”, com “R” maiúsculo. E assim ficou: Revolução de 30. O clássico do notável historiador Boris Fausto (recém-falecido, aos 92 anos) tem o título de “A Revolução de 1930”.

Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek: os dois políticos não perceberam que os militares da ditadura não iriam passar o poder para os civis | Foto: Reprodução

Cabe uma pergunta: sem os militares — os tenentes, o tenentismo, como ficou conhecido —, Getúlio Vargas teria vergado São Paulo? É provável que não. Então, os militares foram decisivos para a eficácia do golpe de Estado.

A modernização posta em marcha por Getúlio Vargas foi de tal monta que o caráter golpista de sua chegada ao poder e o caráter autoritário de seu governo — com matizes fascistas — são obscurecidos. Porém, convém não esquecer: sua ditadura, entre 1937 e 1945 (o Estado Novo), foi cruenta. E mesmo antes, em 1936, seu governo prendeu o escritor Graciliano Ramos, autor das belas e dolorosas memórias “Memórias do Cárcere”, e entregou Olga Benario para os nazistas de Adolf Hitler.

O tenentismo apoiou a ditadura de Getúlio Vargas. Ditadura, portanto, que também era deles.

Os militares estavam na ordem do dia — e queriam o poder de qualquer maneira. Tanto que, em 1945, apearam Getúlio Vargas do poder.

Em 1945, um general, Eurico Gaspar Dutra, chegou ao poder, por meio de eleição direta. Por baixo dos panos, ma non troppo, ganhou de outro militar, o brigadeiro Eduardo Gomes, graças ao apoio de Getúlio Vargas.

Eurico Gaspar Dutra: general eleito com o apoio de Vargas | Foto: Reprodução

Em 1950, Getúlio Vargas voltou ao poder, agora por eleições diretas, e seu governo talvez tenha sido o mais combatido da história do país. A pressão foi tanta que, para evitar um golpe civil-militar, o presidente se matou, em 25 de agosto de 1954, com um tiro coração.

Os golpistas militares e civis, como Carlos Lacerda, recuaram. Por isso o mineiro Juscelino Kubitschek pôde ser eleito presidente da República, em 1955.

No poder, com a decantada matreirice mineira, Juscelino Kubitschek, ainda que sob pressão dos golpistas — que tentaram impedir sua posse —, operou uma gestão democrática e realizadora. Seu governo “sorridente”, digamos assim, deu estabilidade ao país — que pôde crescer. Brasília, que acabou de completar 63 anos — sempre bela, com seu museu a céu aberto (Oscar Niemeyer planejou edifícios que são esculturas) —, contribuiu, de certa forma, para uma relativa desconcentração do desenvolvimento.

O sucessor de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, era o presidente dos golpistas da República. As vivandeiras, como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, e vários militares o apoiaram.

Leonel Brizola, João Goulart e Jânio Quadros | Foto: Reprodução

Entretanto, depois de encontrar “forças ocultas” num copaço de uísque, Jânio Quadros renunciou, em agosto de 1961 — sempre agosto —, e deixou os golpistas órfãos.

Tenentes de 30 chegam ao poder como coronéis e generais

Civis e militares golpistas se uniram para evitar a posse do vice-presidente da República, João Goulart, o Jango — um político de centro-direita (nacionalista) que, dado ao fato de ser filiado ao PTB, passou a ser considerado como “de esquerda” tanto pelos aliados, à esquerda, quanto pelos adversários, à direita.

Contra a vontade dos golpistas — com Carlos Lacerda e Magalhães Pinto na linha de frente —, Jango tomou posse, devido ao arranjo político que criou o Parlamentarismo. Tancredo Neves, moderadíssimo, se tornou primeiro-ministro.

Costa Silva, da linha dura, e Castello Branco, da moderada “Sorbonne”: golpistas de 64 | Foto: Reprodução

Se o Parlamentarismo tivesse sido mantido, com Tancredo Neves como primeiro-ministro, provavelmente o golpe de 1964 não tivesse ocorrido. Porém, faltou visão política a Jango, que, ao pressionar pelo plebiscito, voltou a ter controle total, com a readoção do presidencialismo.

A rigor, Jango não queria golpe algum, exceto uma espécie de micro golpe, uma chicana legal: a aprovação de sua reeleição, em 1965. Ele possivelmente acreditava que poderia derrotar tanto Juscelino Kubitschek, do PSD, quanto Carlos Lacerda, da UDN.

Os golpistas civis (Carlos Lacerda, na Guanabara, e Magalhães Pinto, em Minas) e militares se articularam para derrubar Jango, o que conseguiram entre o fim de março e o início de abril de 1964. Os tenentes de 1930 — o golpe pôs um civil no poder, Getúlio Vargas — finalmente chegavam ao poder, agora pelas próprias mãos. Não eram mais dirigidos por um civil (Carlos Lacerda não percebeu a nova especificidade do movimento político-militar e, por isso, dançou).

Carlos Lacerda e Magalhães Pinto não perceberam que os tenentes, agora generais, não derrubaram um civil para colocar outro civil no poder. Eleição democrática em 1965? Nem pensar. E adiante? Nem pensar.

A ditadura, construída por civis e militares, havia “chegado” para ficar. Os civis teriam participação ativa — daí ser chamada de ditadura civil-militar. Os militares controlavam as “rédeas”, davam o norte, mas o planejamento, a estrutura fazendária e o arcabouço jurídico-institucional foram obras de civis.

Quer dizer, os civis também governavam — só não podiam indicar o presidente da República (mas indicaram, algumas vezes, os vices, como José Maria Alkmim, Pedro Aleixo, Aureliano Chaves). Milton Campos, Octavio de Bulhões, Roberto Campos, Gama e Silva, Delfim Netto, José Sarney, Petrônio Portella, Magalhães Pinto, Leitão de Abreu, Mario Henrique Simonsen, Antônio Carlos Magalhães, Marcos Maciel, entre tantos outros, contribuíram, de maneira decisiva, para dar rumos à ditadura.

Golbery do Couto e Silva, Ernesto Geisel e Heitor Aquino Ferreira: três militares decisivos no processo de distensão e abertura | Foto: Reprodução

Os militares e civis golpistas ficaram no poder, durante 21 anos, entre 1964 e 1985. Coube a um general-presidente, Ernesto Geisel, a iniciativa da retirada dos militares do poder. Primeiro, com a distensão e, em seguida, com a Abertura.

Ernesto Geisel decidiu que a ditadura precisava ter um fim. Porque era, nas suas palavras, “uma bagunça”. Governos perfeitos, com políticos com certa santidade, eram e são uma ficção. O general e seu fiel escudeiro, Golbery do Couto e Silva, perceberam que era hora de devolver a “bagunça” — e é muito melhor uma democracia bagunçada do que uma ditadura ordeira — aos civis.

O general João Figueiredo era meio “chucro”, não tinha as luzes do “sacerdote” (Geisel) e do “feiticeiro” (Golbery), mas, apontado como um militar firme, parecia talhado para levar a Abertura adiante.

Em 1981, com o atentado do Riocentro, a linha dura sinalizou para João Figueiredo que exigia a continuidade da ditadura. Porém, como o atentado falhou, o presidente não puniu os terroristas, com chefia no alto escalão, mas decidiu enquadrá-los. O Riocentro é o chamado tiro pela culatra. Não matou ninguém da esquerda. Matou um militar e feriu outro. Sobretudo, praticamente sepultou a linha dura.

Em 1985, com a eleição de Tancredo Neves e José Sarney no Colégio Eleitoral, a ditadura de 1964 foi sepultada com 21 anos — quase um quarto de século. Um capítulo sombrio da história do Brasil apagou-se. Ou melhor, tornou-se história.

Agora é hora de um salto, porque, de 1985 a 2018, um período de 33 anos, a democracia não correu riscos.

Supremo, um cabo e um soldado

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Jair Bolsonaro e os filhos, Eduardo, Flávio e Carlos: sem apreço pela democracia | Foto: Reprodução

No entanto, com a eleição de Jair Bolsonaro para presidente da República, em 2018, houve uma reviravolta. A mudança foi sintetizada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente. Ele disse que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, era preciso tão-somente de um cabo e um soldado.

Noutras palavras, Eduardo Bolsonaro disse que a democracia — da qual o Supremo é um dos pilares — pode ser abalada facilmente… e por militares. O que sugeriu, com sua franqueza próxima da estupidez, é um golpe pode começar com militares e pela “derrubada” do STF. Ele talvez tenha se lembrado, se é que tem memória histórica, do general Olímpio Mourão Filho, o Vaca Fardada, que precipitou o golpe de 1964 ao sair de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro sem avisar os golpistas-chefes, como Castello Branco, Odilio Denis, Amaury Kruel e Arthur da Costa e Silva.

Nos quatro anos de seu governo, Jair Bolsonaro ameaçou jornalistas, políticos e ministros do Supremo Tribunal Federal. Manteve o país sob tensão, sempre deixando em aberto a possibilidade de um “choque” contra a democracia.

Ibaneis Rocha, governador afastado do DF, e Anderson Torres, ex-secretário de Segurança Pública | Foto: reprodução
Anderson Torres, o ex-ministro foi pego com a minuta do golpe | Foto: reprodução

Democratas verdadeiros não ameaçam a democracia e por isso, quando confrontados, não precisam dizer que “jogam nas quatro linhas”. Bolsonaro não chegou a se tornar ditador, mas consolidou a imagem de que tem vocação.

Com a vitória de Lula da Silva, a direita bolsonarista articulou um golpe, que culminou com o 8 de janeiro de 2023 — num domingo.

Bolsonaristas relativamente organizados — contando também com o apoio de aloprados — invadiram o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso. Promoveram um quebra-quebra gigantesco e não foram contidos. Houve, portanto, um golpe, que não chegou a ser um golpe de Estado porque faltou liderança. Jair Bolsonaro — precavidamente? (queria voltar nos braços do povo, como Jânio Quadros em 1961?) — estava fora do país.

O que faltou em janeiro deste ano não foram golpistas, e sim liderança civil ou militar para comandá-los.

Minuta do golpe e a resistência das Forças Armadas

No desespero, Lula troca comando do Exército | Foto: reprodução
Tomás Paiva: general do Exército está alinhado com a democracia | Foto: reprodução

Descobriu-se, em seguida, uma minuta do golpe com o ex-ministro da Justiça Anderson Torres. O silêncio do policial federal sugere que está protegendo, para se proteger, peixes graúdos e não arraia miúda.

Tudo indica que o projeto de golpe tenha sido confeccionado pelo entorno do Jair Bolsonaro, tanto que o texto encontrado estava nas mãos do ex-ministro da Justiça. Anderson Torres era um dos operadores do golpismo.

O fato é que o grupo de Jair Bolsonaro chegou a articular um golpe e o 8 de janeiro certamente fazia parte disso.

Mas há uma questão que, apesar de discutida, não o foi o suficiente: qual a participação dos militares na aventura golpista do grupo de Jair Bolsonaro? Há indícios de que militares, possivelmente de maneira isolada, participaram das articulações golpistas. Os generais Braga Netto e Augusto Heleno se envolveram? É possível, porque eram (e são) muito próximos do ex-presidente.

Porém, se há militares golpistas, incentivando Jair Bolsonaro e sendo incentivados pelo ex-presidente, não há evidências de que, como instituições, as Forças Armadas — Aeronáutica, Exército e Marinha —, tenham participado de qualquer aventura golpista, entre 2019 e 2023.

O que parece evidente é que uma ampla resistência democrática prevaleceu nas Forças Armadas e só por isso não ocorreu um golpe de Estado no Brasil em 2023.

Se a Aeronáutica, o Exército e a Marinha estivessem envolvidos com Jair Bolsonaro e golpistas, como instituições, dificilmente o país teria escapado de um novo golpe de Estado.

Ante a estridência dos golpistas — inclusive daqueles que, apesar de cercar Jair Bolsonaro, são golpistas, mas negam ser —, não se percebe, com a devida nitidez, a vocação democrática das atuais Forças Armadas.

O caso mais interessante a estudar pelos cientistas políticos nem são os golpistas empedernidos — que sempre existirão —, mas os oficiais democráticos, que, obedecendo à Constituição, não caíram no canto da sereia de Jair Bolsonaro e de seu círculo de militares.

Quer dizer, prevaleceu, entre 2019 e 2023, a orientação democrática nas Forças Armadas. Porém, por causa da ditadura civil-militar, ainda recente, e do golpismo bolsonarista, que inclui militares, esta vocação é pouco destacada.

Cabe um estudo da resistência democrática — hegemônica — nas Forças Armadas. Graças a ela, o Brasil continua democrático. Vale insistir: o golpismo de 8 de janeiro de 2023 mostrou força, o que faltou foi organização e objetivos mais bem definidos. O que faltou foi liderança. E não houve liderança porque as Forças Armadas decidiram não participar dos atos golpistas, sobretudo optaram por não comandá-los.

O presidente Lula da Silva, um político moderado e sensato, e os petistas, os não radicais, já perceberam, por certo, a vocação democrática das Forças Armadas. Convém incentivá-la, no lugar de acuá-la. Diz-se isto porque há um preconceito imenso contra militares — todos eles —, desconsiderando que as linhas dominantes são democráticas. É preciso ressaltar isto.