Lula da Silva é fênix da política brasileira e Alexandre de Moraes é o homem do ano de 2022
06 novembro 2022 às 00h00

COMPARTILHAR
Há três instituições basilares na democracia: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. Quando os dois primeiros são fortes, e realmente independentes, não há hipertrofia do Poder Executivo. Consequentemente, a democracia se torna mais sólida e infensa aos tiranos.
De 2019 a 2022, quase quatro anos, o Legislativo “agachou-se” ante o presidente Jair Bolsonaro várias vezes. Mas o Senado, sob o comando de Rodrigo Pacheco, manteve-se, na maior parte do tempo, altivo. Na gestão de Arthur Lira, a Câmara dos Deputados estabeleceu um pacto faustiano com o chefe do Executivo. Marchou com o governo e, em troca, ganhou o Orçamento Secreto, espécie de mensalão sob nova máscara.
Apesar de ceder a Bolsonaro, o Centrão, que opera a Câmara dos Deputados, não lhe fez uma concessão seminal: não compactou com o ideário golpista do bolsonarismo. A rigor, o Centrão puxou Bolsonaro para a democracia nos momentos em que, ao confrontar o Supremo Tribunal Federal, flertou abertamente com a ideia de um golpe de Estado. Nunca é demais lembrar que o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, disse que, para fechar o STF, basta um cabo e um soldado. Quer dizer, não é difícil. O parlamentar em nenhum momento foi desautorizado pelo pai.

Se o Congresso às vezes se omitiu, por interesse ou subserviência, o Supremo jamais agachou-se. Um ou outro ministro, quiçá por receio de uma crise institucional grave, abriu conversações com Bolsonaro. Porém, mesmo figuras moderadas, como Gilmar Mendes (cujo legalismo, por vezes exacerbado, é confundido com alinhamento) e Dias Toffoli, depois de algum tempo, “desistiram” do presidente. Porque aquilo que dizia de manhã não servia mais para o período da tarde.
Aos poucos, o líder do PL passou a “contar” apenas com os ministros que indicou, Kássio Nunes e André Mendonça. Os dois, com Bolsonaro fora do poder, certamente ganharão “alforria” e poderão votar, a partir de 2023, com autonomia. Os magistrados são competentes, o que atrapalha a ação deles é o alinhamento aparentemente automático com o presidente.
Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, tecnicamente dos mais preparados do Supremo, enfrentaram, algumas vezes, a fúria de Bolsonaro e seus gabinetes do ódio. Não recuaram, apresentando as questões com autonomia e posicionamento firme. Porém, no geral, são discretos, sobretudo Fachin.

Alexandre de Moraes, o homem do ano
Por ter garantido eleições limpas e ter enfrentado, corajosamente, as pressões do bolsonarismo, não há como não denominar o ministro Alexandre de Moraes como o homem do ano de 2022.
Nunca um ministro do Supremo foi tão atacado quanto Alexandre de Moraes, de 53 anos. Ameaçaram o ministro e sua família, com o objetivo de intimidá-lo e fazê-lo recuar em decisões a respeito do governo de Bolsonaro e de alguns de seus aliados — alguns deles vulgarizadores de fake news.
Trabalhando estritamente dentro das leis, às vezes com as jurisprudências — que são formas de manter as leis atualizadas, contemporâneas e abrangentes —, Alexandre de Moraes não recuou um milímetro, mesmo sob ataque globalizado do bolsonarismo.
O bolsonarismo fez uma campanha de difamação de Alexandre de Moraes — que é chamado de “Xandão” — inédita na história do país, ao menos em termos de um ministro do Supremo. Fabricaram informações falsas, exibidas em textos, áudios e vídeos, e espalharam pelas redes sociais e sites ditos de “notícias” com o objetivo de desmoralizá-lo. No fundo, acreditaram que o ministro, sob pressão intensa, recuaria. Porém, o magistrado não recuou em nenhum momento.

Ao ser entrevistado pela Imprensa, Alexandre de Moraes sempre mostrou coragem, firmeza — e não raiva. A impressão que sempre deixou é de que se trata de um magistrado devotado à lei, como deve ser, mas que sabe interpretá-la, não para (re)negá-la, e sim para torná-la mais sólida e conectada à realidade. Trata-se, sobretudo, de um ministro austero, probo, competente e intimorato.
Mesmo atacando o ministro com frequência, o bolsonarismo nunca conseguiu apresentar nada que realmente o desabonasse. Pelo contrário, como possivelmente foi “investigado” e nada encontraram que conspurcasse sua trajetória, o magistrado ficou ainda mais forte. A verdade sempre esteve com o magistrado, e não com os experts em fake news.
A coragem de Alexandre de Moraes, que enfrentou uma turba organizada, que talvez tenha contado com apoio de órgãos estatais de investigação — atuando à margem da lei —, merece louvor da sociedade civil e da sociedade política.
Jornalistas da TV Globo comemoraram com dancinha e abraços a vitória de Lula da Silva (leia nota na coluna Imprensa, no site do jornal). Também deveriam ter comemorado a coragem e a lisura de Alexandre de Moraes.
Lula da Silva, a fênix dos trópicos
Um historiador consciencioso certamente examina a história de um político pela média — exceto no caso de ditadores cruentos, como Ióssif Stálin, de esquerda, e Adolf Hitler, de direita, que devem ser analisados pelos extremos, como uma forma de, inclusive, “condená-los”.
Como avaliar Lula da Silva, o presidente recém-eleito do Brasil, cuja história ainda está em andamento?
Há quem postule que pode ser avaliado e julgado pela história do sítio de Atibaia e do tríplex do Guarujá, entre outras questões. Mas um historiador, e mesmo um jornalista com visão mais ampla, sabe que isto não é possível, porque afetará a precisão da análise.

Independentemente das decisões do Supremo, Lula da Silva é maior do que as histórias de corrupção que envolveram seus dois governos, entre 2003 e 2010. A corrupção em suas gestões, que de fato ocorreu — não são invenções do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e da Justiça Federal —, é uma parte de sua história. Não é toda a sua história.
Há uma grandeza em Lula da Silva desde o início de sua vida. Ele saiu menino de Garanhuns, acompanhando a mãe e irmãos. Eram muito pobres, tão retirantes quanto aqueles pintados no célebre quadro de Cândido Portinari. Foram para São Paulo, a meca dos nordestinos.
No Estado mais rico do país, Lula da Silva — Luiz Inácio da Silva — se tornou metalúrgico de uma multinacional. Na empresa aprendeu como funciona o capitalismo moderno, com salários em dia e benefícios. Poderia ter se acomodado, pois aos poucos se tornaria membro de uma classe média emergente. Mas isto não aconteceu.
Lula da Silva percebeu, com sua inteligência aguda e intuitiva — refinada pela experiência de vida —, que nem tudo eram flores na maioria das grandes empresas de São Paulo. Aos poucos, se conscientizando do funcionamento do capitalismo, postou-se ao lado dos companheiros de jornada, adquirindo, digamos, consciência de classe e começou a defendê-los.
Havia, é claro, vários sindicalistas, alguns bem experientes e cuja história merece ser contada. Porém, quem se celebrizou foi Lula da Silva, o que denota alguma característica especial. Trata-se de uma pessoa diferenciada.
Frise-se que Lula foi sindicalista em tempos difíceis, sob uma ditadura que perseguia e prendia representantes de trabalhadores. Ele próprio foi preso.

Em 1980, ao lado de trabalhadores do ABC Paulista, Lula da Silva se uniu a intelectuais de várias universidades do país, e, com forte presença de integrantes da Igreja Católica, criou o Partido dos Trabalhadores. O PT é um partido de esquerda — próximo da socialdemocracia europeia —, mas não é comunista. É provável que sua cor símbolo, o vermelho, leve várias pessoas a associarem o partido ao comunismo, que são conhecidos como “reds”, “vermelhos”. A rigor, petistas e comunistas se associam, no espectro da esquerda, mas são diferentes.
Ligado à Igreja Católica, à intelectualidade e ao operariado paulista, que trabalhou em modernas empresas capitalistas, Lula da Silva não forjou o PT, com seus vários aliados, para implantar o comunismo no Brasil, e sim para criar uma sociedade mais justa — uma espécie de socialdemocracia. Nada a ver, insistamos, com comunismo.
Aos poucos, Lula se tornou o grande nome do PT e nenhum outro líder, nem mesmo José Dirceu — um operador qualificado do partido —, chegou a se equiparar ao pernambucano de vida, inicialmente, “severina”, diriam João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque de Holanda.
Em 1989, na primeira eleição direta para presidente da República depois do fim da ditadura civil-militar, Lula da Silva apareceu como candidato natural do PT. Perdeu para Fernando Collor, do PRN, mas levou a disputa para o segundo turno. A direita se uniu ao centro para derrotar o petista, e conseguiu.
Nas duas eleições seguintes, em 1994 e 1998, Lula da Silva foi derrotado mais pelo Plano Real, que estabilizou a economia do país — reduzindo drasticamente a inflação — e o levou à retomada do crescimento econômico, do que por Fernando Henrique Cardoso, do PSDB.
Porém, em 2002, com o tucanato em processo de esgotamento político e social, Lula da Silva foi eleito presidente. Em 2006, foi reeleito. Seu governo foi moderado e equilibrado, o país cresceu em média 4% ao ano e, graças os programas sociais do governo — integrados (tanto que mais negros e pobres entraram nas universidades públicas) —, a pobreza diminuiu.
Entretanto, por causa da governabilidade, as gestões do PT inventaram o mensalão e o petrolão. A corrupção grassou. Mas, retomando a discussão acima, é possível discutir Lula apenas pelo viés da corrupção? Não. Porque sua história é maior do que este aspecto. O que não se pode negar, por outro lado, é a existência de corrupção em seu governo. É um fato.
A força eleitoral de Lula da Silva era tamanha que contribuiu, de maneira decisiva, para eleger e reeleger Dilma Rousseff para presidente da República.
Por causa da Operação Lava Jato — que foi importante para o país, pois, pela primeira vez, políticos e empresários poderosos responderam processos por corrupção —, Lula da Silva acabou preso. Quando mandou prender o ex-presidente, o então magistrado Sergio Moro tinha alguma pretensão política? É possível, mas vale sublinhar que Jair Bolsonaro era um anódino deputado federal e não tinha intenção, nem condições, de disputar a Presidência da República.
Mas era mesmo necessário prender Lula da Silva? Não era. Ele poderia perfeitamente responder aos processos em liberdade. O mais provável é que os jovens do Ministério Público e do Judiciário queriam dar uma lição no(s) político(s). E, com isto, acabaram “gerando”, direta ou indiretamente, Bolsonaro, o Silvio Berlusconi dos trópicos.
Entretanto, com o apoio do Supremo, que suspendeu seus processos, Lula da Silva, aos 77 anos, retornou à política e foi eleito presidente, no dia 30 de outubro, com uma votação extraordinária. Ele tem dito que, além do investimento no social (desenvolvimento), vai apostar na retomada do crescimento econômico e que vai “pacificar” o país. Oxalá não promova perseguições e deixe os contenciosos, os indispensáveis, para serem dirigimos pela Justiça.
Lula da Silva é, por assim dizer, uma espécie de fênix tropical.