O jornalista criou o Jornal Opção, há quarenta anos, em plena ditadura, para analisar os fatos do Estado, do país e do mundo, mas sobretudo para defender o desenvolvimento de Goiás

Herbert de Moraes morreu na quinta-feira, 24, aos 73 anos. Ele acreditava no Jornal Opção como uma coisa viva
Herbert de Moraes morreu na quinta-feira, 24, aos 73 anos. Ele acreditava no Jornal Opção como uma coisa viva

Euler de França Belém

O jornalista e economista Herbert Moraes — que morreu na quinta-feira, 24, aos 73 anos — era um homem múltiplo e, como tal, é muito difícil resumir sua vida e história numa página e meia. Mas o fato de ser múltiplo, por ter variados interesses, não significa que não tinha alguns objetivos que considerava mais seminais. Um deles, a base de seu trabalho jornalístico — que chamava de “luta”, de “ação” (costumava dizer à redação que mais importante do que reagir, quando se chega quase sempre atrasado, é agir, antecipando-se ou agindo “em cima” dos fatos) —, era a batalha por um Estado de Goiás mais desenvolvido e menos desigual em termos sociais. Ele tinha paciência para explicar a todos, do foca ao mais tarimbado profissional, que “crescimento” é uma coisa e “desenvolvimento”, outra. O desenvolvimento, frisava, é quando a maioria das pessoas tem acesso ao produto do crescimento. Era, portanto, um apóstolo do desenvolvimento e da sociedade democrática, aberta. Quem conviveu com o intelectual e prestou atenção no que dizia lembra-se de que citava, com frequência, o livro “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, do filósofo austríaco Karl Popper.

Neste Editorial, que não pretende celebrar a dor mas sim falar do legado de Herbert, o leitor encontrará trechos divertidos. Sim, é preciso lembrar que, embora se tratasse de um homem reservado, tinha o humor sardônico dos ingleses (observe bem a fotografia que ilustra esta página: Herbert sorri com todo o rosto, notadamente com os olhos, mas de maneira contrita, sem estardalhaço). Era sutil, e pouco expansivo — pouco dado a intimidades com estranhos. Mas caloroso e solidário com os amigos, com as pessoas próximas. Fazia questão, por sinal, de que as pessoas beneficiadas por sua solidariedade não divulgassem o que havia feito. Por quê? Porque, moderno e iluminista, nada tinha de populista.

Qual a origem do humor refinado de Herbert? Talvez derive do escritor Machado de Assis, leitura constante e referencial. Era leitor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro” (insistiu para que lêssemos as obras críticas de Roberto Schwarz e Raymundo Faoro a respeito do Bruxo do Cosme Velho). Nas reuniões de pauta (longas mas agradáveis), da quais participavam vários jornalistas — como José Maria e Silva (expert em Machado de Assis), Léo Alves, José Luiz Bittencourt, Danin Júnior, Cezar Santos, Wilson Silvestre, Elder Dias, Patrícia Moraes e eu —, por vezes, com aquele sorriso entredentes, Herbert colocava a questão: “Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?” Então, durante alguns minutos, discutíamos o assunto. O leitor leu, numa frase anterior, a palavra “colocava”. Como soava mal, ao apurado ouvido de Herbert — que alguns amigos, os mais velhos, chamavam de Betinho —, entrava para o nosso índex de palavras, digamos, mal postas. Herbert ria quando eu dizia que era o nosso “tolicionário”.

O que se está dizendo é que, como jornalista, Herbert valorizava a cultura. Ele acreditava que repórteres só escreviam bem — e escrever bem incluía analisar os fatos de maneira ampla, sólida e livre — se tivessem cultura. Por isso, nas reuniões de pauta — depois de passar por livrarias como Saraiva, Fnac e Leitura —, sempre presenteava os repórteres e editores com livros de história, literatura (leitores de romances, dizia, têm um texto mais flexível e musical), filosofia, política e economia. Herbert apreciava vida inteligente perto de si. Aduladores e elogiadores, artífices na arte do salamaleque, eram abominados. Sempre buscou os melhores jornalistas para compor sua redação, com textos afiados e cultos.

As reuniões de pauta com Herbert deveriam ter sido gravadas, de tão interessantes que eram. Eram verdadeiras aulas enciclopédicas. José Maria e Silva, Rogério Lucas, Afonso Lopes e José Luiz Bittencourt, para citar apenas quatro jornalistas, certamente lembram-se bem disso. Ninguém ficava indiferente. Editores e repórteres apresentavam as pautas e eram obrigados a defendê-las. Era um exercício de dialética — Herbert era admirador de Karl Marx, embora lamentasse o que os comunistas fizeram na União Soviética, em todo o Leste Europeu e na China, ainda que não fechasse os olhos aos problemas do capitalismo. Pautas nasciam, renasciam e, às vezes, eram derrubadas. As discussões eram duras, sem condescendência.

Herbert não se irritava, mas era firme na sua exposição, defendendo suas ideias com inteligência e abertura. O que mais admirava no interlocutor era a vitalidade de sua argumentação. Desde que suas ideias fossem sólidas, desde que mostrasse que era possível transformá-la numa pauta e, em seguida numa reportagem ou num artigo, a argumentação do repórter era aprovada. Mas ideias perfunctórias, copiadas ou repetidas, dessas que lotam os jornais, eram descartadas. “Papel está muito caro, meus amigos”, dizia, com um leve sorriso nos lábios. Várias vezes, falava: “Convença-me, Afonso!” Clamava por abrangência, sempre sugerindo que o jornalismo não deveria “agradar”, e sim explicar a realidade, escarafunchar os bastidores.

Numa das reuniões, quando um jornalista estava repetindo algumas ideias a respeito de um assunto nacional, Herbert pediu tempo e disse: “Vamos pensar pela própria cabeça. Certos valores, assim como certas ideias, não são nossos. Nós os repetimos, adotando-os como regra, mas eles não são nossos. Quem repete, sem exploração, limita”. O jornalista ecoava o filósofo alemão Nietzsche, que leu cuidadosamente, grifando e fazendo anotações (ficava chateado com algumas citações que se fazia de Nietzsche sem o devido contexto). Ficou extremamente feliz quando a Companhia das Letras começou a publicar as traduções de suas obras feitas a partir do alemão. Um portento de Paulo César Souza. Tempos depois, começou a ler Kant, um filósofo complexo, e seus explicadores. Leu “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, e falava com intimidade de personagens como Swann e Odette de Crécy. Sabia mais de Karl Marx do que muitos marxistas. Uma de suas paixões era, por vezes, discutir a mais valia. Falava de física quântica como especialista.

Patrícia Moraes Machado e Herbert de Moraes, jornalistas: a continuadora e o fundador do Jornal Opção
Patrícia Moraes Machado e Herbert de Moraes, jornalistas: a continuadora e o fundador do Jornal Opção

Herbert tinha paixão pelo saber total, enciclopédico. Buscava dominar os assuntos. Pense sobre a história do golpe civil-militar de 1964, no Brasil e em Goiás. Sabia tudo sobre o assunto e apreciava desnudar mitos. Num período, decidiu que deveria aprender tudo ou quase tudo sobre informática. Aí comprou livros e mais livros, vasculhava a internet, conversava com jovens especializados, como Adonai Andrade e Willian Barbacena, e logo aprendia a linguagem específica e dissertava com facilidade sobre o assunto. Cobrava reportagens a respeito, de maneira obstinada. Numa das reuniões de pauta, alguém sugeriu: “A internet é o futuro”. Ele ouviu e contrapôs: “Não, meu amigo, é o presente dizendo que o futuro é agora”. Homem formatado pelo pensamento iluminista, não tinha apreço algum por nostalgia. Era um cético — não um niilista — aberto às novidades e possibilidades da vida.

Há quem acredite que o Jornal Opção quer fazer a cabeça do leitor. Não quer. A pretensão de Herbert sempre era outra: contribuir para tornar a cabeça do leitor o mais aberta possível, escapando de vezos ideológicos. Para tanto, sugeria, deveria ser dado a ele informações e análises de qualidade. “O factual passa; a análise, desde que sólida, fica e reverbera” — dizia-nos. O jornalista que apenas noticia, mas não explica os fatos, não lhe interessava tanto. Nos meus cadernos de capa dura, nos quais registro tudo que ouço de interessante das pessoas, anotei várias frases e ideias de Herbert.

Para Herbert, o Jornal Opção — que criou em 1975, numa época, sob a ditadura civil-militar, em que era difícil publicar críticas — não era lazer, um meio de comunicação como os outros. Era um instrumento de desenvolvimento de Goiás. Várias vezes, disse aos repórteres que aqueles que contribuíssem para desenvolver o Estado, independentemente de ideologias partidárias, teriam o seu apoio. Mas aqueles que se colocassem contra o desenvolvimento de Goiás o teriam como adversário ferrenho. Era um desenvolvimentista, mas não ortodoxo. Quer dizer, apostava no desenvolvimento, no Estado como indutor, até certo ponto, mas avaliava que era preciso ter controle dos gastos públicos. Porque, quando o governo gasta mal, quem paga o pato é a sociedade, quer dizer, as pessoas.

Numa das reuniões de pauta, quando se discutia exatamente a modernização de Goiás, Herbert admoestou Afonso Lopes: “Que tal parar de escrever ‘eles fizeram a gata parir’?” Herbert explicava que não era purismo, mas que o refinamento de um jornalista começa pela linguagem. Certas expressões, se grosseiras, mais empobrecem do que enriquecem a vida, o homem. O homem se torna mais suave, quiçá civilizado, quando usa uma linguagem mais elaborada e precisa. “Jornal é”, por vezes, “uma usina de reciclar lixo” — era uma de suas tiradas. O problema, acrescentava, é que alguns jornais publicam o lixo.

Havia um índex de palavras no Jornal Opção? Não se tratava exatamente de um índex, pois Herbert afirmava que, em determinadas circunstâncias, poderiam ser usadas. Preferia “integrante” no lugar de “membro”. “Desempenho” quase lhe dava urticária. Sugeria que se evitasse escrever “o ‘racha’ que implodiu a candidatura da deputada”. A deselegância gratuita era vista por ele como brutalidade. “Desempenho” não era uma palavra propriamente “amada”. O que Herbert queria de fato era um jornal moderno e que usasse, ao estilo do escritor francês Flaubert, as palavras justas, adequadas. Na segunda-feira, para as reuniões de pauta, ele aparecia com o jornal devidamente anotado (lia todo o jornal — não é folclore, não), não só com o registro dos erros, mas também com sugestões de como os textos deveriam ter sido escritos. Preocupava-se com a sonoridade da frase e sublinhava que jornalista não é datilógrafo nem estenógrafo, por isso deveria recriar a oralidade de quem dava a entrevista. O texto escrito precisava, afirmava, de um estilo, uma fluência e uma cadência diferentes. O leitor, insistia, aprecia uma frase bem construída.

O Jornal Opção era, para Herbert, uma instituição, por isso ficou felicíssimo quando sua filha caçula, Patrícia Moraes Machado, formou-se em jornalismo em São Paulo, depois fez um curso no “El País”, jornal mais gabaritado da Espanha, e voltou para dirigir o jornal. Ele abriu espaço para a jovem sem nenhum problema. Porque pensava longe. Pensava na continuidade do jornal. Ficou tremendamente contente quando o filho Herbert Moraes — “o meu garoto é bom, não é, Euler?”, perguntava-me afirmando — se tornou correspondente da TV Record em Tel Aviv, Israel. A consolidação de sua filha Ludmila Melo como médica deixou-o imensamente feliz. Nanci Guimarães de Melo Ribeiro, sua mulher, era a companheira de toda uma vida.

Nós, do Jornal Opção, perdemos um orientador, um jornalista de raro talento (não apreciava o uso da palavra “faro” para nomear jornalistas investigativos), um aliado corajoso, que sempre nos dizia para não ter medo de nada. “O medo é paralisante.” Sugeria que não se deve subestimar nem superestimar possíveis adversários. Quem subestima pode acabar perdendo a batalha, por excesso de confiança e por não entender aquilo que está combatendo. Quem superestima tende, por medo, a não enfrentar adversários tidos como poderosos e acaba por ser derrotado. “O verdadeiro jornalista cresce na adversidade”, pontuava.

Eu ouvi, como Patrícia Moraes certamente ouviu, várias vezes que o jornalista, mesmo vivendo num Estado em que a iniciativa anuncia pouco, não deve se “agachar” ante o poder. O poder não respeita aqueles que se tornam previsíveis. Quem elogia demais perde o respeito até daquele que é elogiado — era outra de suas lógicas implacáveis. Portanto, mesmo admitindo a dependência econômica, sugeria que era preciso guardar certa independência, impor limites. Manter um jornal de ideias, posicionado, durante 40 anos, com o mínimo de concessões, não é pouca coisa — embora os radicais, avessos à crueza do real ou devido à cegueira ideológica, não percebam isto com nitidez.

Herbert morreu, mas deixa um legado imenso: um filho eterno — o Jornal Opção. É o que, apesar da tristeza infinda por sua morte — como é dolorosa para todos nós do jornal! (não há como não exclamar) —, nos deixa alegres.