Golpista que luta contra a democracia, como Bolsonaro, pode ganhar o “amor” de uma prisão
11 fevereiro 2024 às 00h01
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Nona economia do mundo, com 201 anos de Independência, o Brasil é, em larga medida, um país retardatário. Tanto que demorou para abolir a escravidão.
O Brasil está livre da escravidão há apenas 135 anos. Livre? Pois é: não inteiramente. O Ministério Público do Trabalho, com o apoio da Polícia Federal, está sempre colaborando para “libertar” escravos do “novíssimo” capitalismo patropi.
Há pouco tempo, uma produtora de vinhos, das mais requintadas, operava com mão de obra de escrava em sua vinícola. Nada é mais moderno, nos dias atuais, do que tomar um bom vinho e se mostrar entendido no assunto. É uma prova de ascenso social, de refinamento. Entretanto, saber que o vinho (e o espumante) de qualidade, vendido nas melhores adegas, é produzido por uma empresa — “moderníssima”, com os donos viajando e tomando vinho nas melhores regiões da França e da Itália — que se utiliza de trabalho escravo deveria provocar um profundo mal-estar.
Como a aurora do capitalismo tropiniquim é uma espécie de crepúsculo, o moderno colorido e manchado pelas tintas do passado, o estranhamento passou. A sociedade brasileira ouve as notícias, mas não há um verdadeiro e contínuo debate sobre a espantosa e bárbara revitalização da escravidão no Brasil.
O escritor William Faulkner, autor dos emblemáticos “Absalão, Absalão!” e “Luz em Agosto” — romances que denunciam a brutalidade dos brancos contra os pretos —, via a escravidão como a maldição do Sul dos Estados Unidos. Toni Morrison é autora de um romance — “Amada” (quem não leu está “dormindo de touca”, como se dizia nos tempos de antanho) — tão extraordinário quanto doloroso sobre a tragédia dos negros escravizados no país ianque.
Os brasileiros precisam aceitar a escravidão como a grande tragédia de sua história — um dos mais brutais genocídios de que se tem notícia. Por que comprar vinho e espumante, um ato de conivência, de uma empresa que usou trabalho escravo e só parou de utilizá-lo porque foi denunciada? O problema é a memória curta ou o fato de que não se considera a escravidão como uma barbárie inominável?
Golpe de Estado: esporte brasileiro
Se a escravidão é o pedaço mais triste da história do Brasil — e os pretos, que ajudaram (e ajudam) a construir a nação, ainda são vítimas de preconceito e são os mais pobres —, há outro aspecto a ser ressaltado, além de criticado: a história das ditaduras.
Golpe de Estado é uma das modalidades “esportivas” mais praticadas por parte dos brasileiros. A República nasceu, em 1889, há 134 anos, a partir dos coturnos dos militares. A Proclamação da República, em seguida à derrubada da Monarquia, se deu por meio de um golpe militar, e não de uma transição pacífica e democrática.
Aos trancos e barrancos, com a política do café com leite — constituída depois dos governos dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto —, a República Velha consagrou a democracia como norma. Ainda que não fosse uma democracia inclusiva. Era excludente.
Em 1930, as oligarquias do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, com apoio relativo do Nordeste, notadamente da Paraíba, derrubaram o presidente Washington Luís e impediram a posse do presidente eleito, Júlio Prestes.
Alegou-se, para justificar a derrubada do presidente, que a eleição de 1930 havia sido fraudulenta. De fato, foi, mas dos dois lados, e não apenas de São Paulo e aliados.
Os livros tratam o golpe de 1930 como “Revolução de 30”. Mas, insistindo, deu-se um golpe de Estado, a partir de uma aliança de civis, como Getúlio Vargas, do Rio Grande do Sul, e Antônio Carlos de Andrada, de Minas, com militares, os ditos tenentes.
A ideia de “Revolução de 1930” tem a ver com o fato de que o governo de Getúlio Vargas contribuiu para modernizar o país. Mas isto não esconde o fato de que o político gaúcho governou sob uma ditadura feroz. Entre 1930 e 1937, ao menos simulou-se uma certa democracia, mas convém lembrar que, entre 1935 e 1936, as prisões estavam abarrotadas de prisioneiros políticos e intelectuais. Um dos presos mais famosos do período é o escritor Graciliano Ramos, que legou aos brasileiros um livro estupendo sobre o período — “Memórias do Cárcere”. Getúlio Vargas e Felinto Müller entregaram a judia e comunista Olga Benario para o nazismo de Adolf Hitler.
Em 1937, retirando a máscara, pois a ditadura era embrionária, Getúlio Vargas deu o segundo golpe — agora conhecido como Estado Novo.
Com simpatia pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano, Getúlio Vargas modernizou o país, contribuindo para o avanço do capitalismo e melhorando, com a legislação trabalhista, a vida dos mais pobres. Ao mesmo tempo, governou com mão de ferro, perseguindo, de maneira implacável, os opositores — vários deles presos, torturados e, até, assassinados.
Em 1945, com a desculpa de que se lutara contra um regime totalitário na Europa e não se podia apoiar um sistema autoritário no Brasil, os militares apearam Getúlio Vargas do poder. Por sinal, os militares eram os mesmos que, durante 15 anos, governaram ao seu lado, sem maiores restrições. Ou seja, para “corrigir” o país, deu-se mais um golpe de Estado.
O substituto de Getúlio Vargas, eleito pelo voto e com o apoio do gaúcho, nada mais era do que um entusiasta do nazifascismo — o presidente Eurico Gaspar Dutra.
Precursor de Jânio Quadros, Eurico Dutra proibiu jogos no Brasil e incentivou a cassação do registro do Partido Comunista. Seu governo acanhado e sem norte acabou por possibilitar a volta do Velho — Getúlio Vargas — ao poder, agora pelo voto direto.
Getúlio Vargas, que não era de esquerda — na verdade, era um nacionalista de direita que elaborou uma legislação trabalhista avançada para a época —, eleito em 1950, governou sob intensa pressão da direita articulada por civis e militares.
Sob intenso bombardeiro, Getúlio Vargas, ao concluir que seria vítima de um novo golpe de Estado, matou-se, em agosto de 1954, com um tiro no coração.
O suicídio de Getúlio Vargas impediu o golpe de Estado, pois a sociedade, revoltada, reagiu à direita civil e militar, escanteando-a.
Em seguida, Juscelino Kubitschek, eleito com extrema dificuldade — menos de 40% dos votos válidos —, quase não tomou posse. Civis e militares, irmanados, tentaram impedi-la.
Para assumir, Juscelino Kubitschek, um democrata autêntico, teve de contar com um contragolpe dado pelo general Henrique Teixeira Lott, seu aliado.
Não fosse o legalista Henrique Lott, JK, o presidente bossa nova e pé de valsa, não teria assumido o governo.
No poder, para mantê-lo, percebeu que era preciso ser magnânimo e, por isso, chegou a anistiar vários golpistas. Quando começou a construir Brasília, para reorientar o desenvolvimento do país, a direita fez uma campanha atroz contra o político mineiro.
Com amplo senso de oportunidade, JK soube dividir a direita, dando-lhe cargos e prebendas, e, por isso, conseguiu governar até o fim do mandato. A esquerda também foi contemplada com as benesses habituais.
Terminado o mandato, JK deu um apoio relativo a Henrique Lott, seu candidato a presidente, contra Jânio Quadros, o eleito com o apoio da UDN do golpista-mor Carlos Lacerda, de Bilac Pinto e, entre outros, Milton Campos (este, um político admirável). Juscelino Kubitschek estava mais preocupado com a eleição de 1965. Eleito senador por Goiás, estava à espera da disputa seguinte.
Diz-se, em tom jocoso, que o presidente Jânio Quadros bebia tanto que, certo dia, viu “forças ocultas” no fundo de uma garrafa de uísque e, por isso, teria renunciado.
Na verdade, Jânio Quadros renunciou porque avaliou, errado, que voltaria nos braços do povo e dos militares. Estes, em tese, não aceitariam a posse de seu vice, o trabalhista João “Jango” Goulart e o reempossariam.
Parecia uma boa ideia, como a cachaça 51, mas acabou sendo ruim. Porque, encontrada uma alternativa, a adoção do parlamentarismo, João Goulart pôde assumir a Presidência da República, com Tancredo Neves guindado ao posto de primeiro-ministro. Jânio Quadros teria se consolado com suas melhores amigas — as garrafas de uísque, de fato, mui “simpáticas” e, até, “ardentes”.
João Goulart nada tinha de comunista, sequer era de esquerda — no máximo, aproximava-se da socialdemocracia. Mas, assim como Getúlio Vargas, queria modernizar o capitalismo patropi — melhorando a vida dos trabalhadores urbanos e rurais. O que ele, um homem do campo — que fez fortuna criando e vendendo gado —, queria era apenas uma atualização do capitalismo, não sua destruição.
Mas civis, como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, e militares, como Castello Branco, Golbery do Couto e Silva, Odylio Denis, Olímpio Mourão Filho (conhecido como “Vaca Fardada”), criaram, por assim dizer, um novo caldo cultural — simulando que Jango Goulart planejava introduzir o comunismo no Brasil. Os golpistas conseguiram convencer boa parte dos brasileiros e, em abril de 1964 — há quase 60 anos —, derrubaram o presidente. Acontecia mais um golpe de Estado na história da República.
Os militares governaram o país, sob uma ditadura civil-militar, durante 21 anos. O país chegou a se desenvolver, inclusive com crescimento econômico espetacular. Mas, como o presidente Ernesto Geisel “descobriu”, os problemas pré-1964, inclusive a corrupção, persistiam. Era hora, pois, de sair, de fininho — numa transição lenta e controlada —, do poder. O general chegou a dizer, ao deixar o governo, que decidira pela retirada dos militares porque a ditadura havia se tornado uma “bagunça”. Era preciso devolver o “caos” aos civis.
Ernesto Geisel, sob influência de Golbery, operou a distensão, que se transformou em Abertura, no governo do general Figueiredo — que, em 1985, passou o governo para os civis. Tancredo Neves, eleito no Colégio Eleitoral, morreu e José Sarney, espécie de Eurico Dutra — só que um “general civil” —, assumiu o poder. O político do Maranhão talvez tenha feito o último governo da ditadura, com ampla tutela, notadamente do general Leônidas Pires Gonçalves.
O golpismo do bolsonarismo
De José Sarney, em 1985, a Jair Bolsonaro, um capitão do Exército, entre 2019 e 2022, o Brasil viveu sob democracia; aliás, continua vivendo.
Entretanto, como tem se revelado, Bolsonaro, com o apoio de civis e militares, inclusive alguns generais, quis dar um golpe de Estado. Chegou a articulá-lo de maneira, digamos, “institucional”, com o objetivo de conferir o mínimo, se se pode dizer assim, de “legalidade” (na verdade, com a minuta do golpe, tentou-se “legitimar” a ilegalidade flagrante).
Se atraiu um grupo de militares, alguns generais e muitos coronéis, Bolsonaro não conquistou, digamos assim, o coração dos militares-chefes das Forças Armadas, que optaram pela legalidade. O comandante do Exército, Freire Gomes, chegou a ser chamado, nos bastidores, de “cagão” pelo general Walter Braga Neto, bolsonarista que, em 2022, candidatou-se a vice de Bolsonaro.
Portanto, Bolsonaro quis mesmo o golpe, que só não deu certo porque faltou coesão golpista nas Forças Armadas. O golpismo de 8 de janeiro de 2023 — que não deve ser tratado como mero vandalismo —, por mais que possa parecer espontâneo, teve um certo grau de articulação, possivelmente de parte de militares, como majores e coronéis do Exército, com alguma participação, direta ou indireta, de oficiais da Polícia Militar (que se omitiu no combate aos vândalos do golpe).
O golpismo do badernaço orgânico de 8 de janeiro deve ter sido uma tentativa de atrair as Forças Armadas para o golpismo, algo do tipo: “Estão vendo, é fácil tomar o poder”.
O golpismo do bolsonarismo deu com os burros n’água e não será nenhuma surpresa se Bolsonaro passar alguns anos na cadeia. Merecidamente. Há os que dizem que pode se tornar mártir. Talvez tenham razão. Mas o mártir do mal, aquele que luta contra a democracia, merece ganhar o “amor” de uma penitenciária.
Não há nenhuma ditadura positiva. Nem a de direita. Nem a de esquerda. As duas são nefastas. As ditaduras, ancoradas em ideias limitantes e preconceituosas — trabalhadas por um marketing às vezes eficaz —, fazem um mal imenso às sociedades e aos cidadãos. As sociedades se tornam frágeis, em busca de aventuras golpistas e levianas. Os cidadãos, em busca de paizões que se tornem responsáveis por eles, não amadurecem. Aderem a ideias mal alinhavadas, como a de um suposto “perigo vermelho”, e se tornam marionetes da estupidade de um néscio como Bolsonaro (que consegue ser pior do que seus apoiadores). É um suspanto que milhões de brasileiros permaneçam mesmerizados por um político de tão baixa qualidade quanto o ex-presidente.