O professor emérito da USP Ruy Fausto afirma que não acredita na “inocência absoluta” de Lula, mas faz críticas à Operação Lava Jato

Ruy Fausto e Marielle Franco: a vereadora “era crítica do modelo capitalista e muito democrata. Defendia causas como o antirracismo e o fim do preconceito sexual” | Foto: Divulgação

Radicado na França, Ruy Fausto é um filósofo respeitável. Embora seja marxista, não agrada parte da esquerda, notadamente a petista. Trata-se de um dos críticos mais contundentes dos filósofos Marilena Chaui e Paulo Arantes. Seu livro mais recente, “Caminhos da Esquerda — Elementos para uma Reconstrução” (Companhia das Letras, 216 páginas), provocou certo alarido na Imprensa, mas a esquerda, sobretudo a hegemônica, fingiu que não viu. Porque, possivelmente, não aceita crítica ou autocrítica. Na edição de 11 de abril da revista “Veja”, nas “Páginas Amarelas”, o pensador concedeu uma entrevista que deveria ter gerado debate, mas, até onde se sabe, não chamou a atenção pública dos que, no momento, avaliam que ser de esquerda é defender a libertação do preso Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República condenado por corrupção.

Pode-se discordar de Ruy Fausto, é provável que, aqui e ali, o fantasista substitua o filósofo rigoroso, mas suas ideias não devem provocar indiferença. O marxista afirma que “a principal causa da violência” é a “desigualdade” e critica a direita que avalia que é possível acabar “com a violência matando bandidos”. Embora critique a falta de atualização da esquerda, de sua temática, o pensador comete, quem sabe, ao menos um equívoco. De fato, é possível que a “desigualdade” seja uma das causas da violência, mas talvez não seja a principal.

Fica-se com a impressão, e isto é dito porque o filósofo não apresenta sua ideia deste modo — portanto, não seria decente indicar que pensa exatamente assim —, que os pobres, por serem as principais vítimas da desigualdade, são vetores da violência. Não são, é claro. Pode-se dizer que a violência mais desabrida decorre do crime organizado, que, em alguns casos, criou uma estrutura semelhante à da máfia ítalo-americana. Não se deve concluir, porém, que não há desigualdade e que não deva ser combatida. Sociedades inteiramente igualitárias, como as imaginadas pelos comunistas, possivelmente jamais existirão. Mas cabe a uma associação entre o Estado e a sociedade trabalhar pela redução das desigualdades — assim como da violência.

O brutal assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, sugere a reflexão de Ruy Fausto de que poderia ser um novo modelo de política. “Ela foi um exemplo excelente. A esquerda está numa encruzilhada, em busca de um novo caminho. E a Marielle encarnou muito bem esse caminho. Ela era crítica do modelo capitalista e muito democrata. Defendia causas como o antirracismo e o fim do preconceito sexual. Quem é a esquerda? É Marielle. A esquerda não é Fidel Castro, Lênin ou Chávez”. E se, ao contrário do que sugere o filósofo, a esquerda for Lula da Silva, José Dirceu, Antonio Palocci, Dilma Rousseff, João Vaccari Neto? Pensadores supostamente não autoritários da esquerda tendem, quando uma esquerda fracassa no poder, a determiná-la como não de esquerda. O equívoco, em tese, se deu, como no caso de Lênin, Stálin, Mao Tsé-tung e Fidel Castro, não por que eram de esquerda, e suas ideias não funcionaram quando postas em prática, e sim porque “deixaram” de ser de esquerda. É uma visão instrumental da política. Marielle não teria sido um avanço exatamente porque, embora fosse filiada ao radical PSOL, se tornou uma porta-voz de pautas dos indivíduos — quiçá da sociedade — e se afastou das pautas tradicionais da esquerda? A rigor, seria mesmo de esquerda?

A nova esquerda, segundo Ruy Fausto, faz a “crítica do capitalismo e a defesa da democracia. Mais especificamente, crítica da desigualdade excessiva e defesa da liberdade. Trata-se de mostrar o absurdo de um sistema econômico que não funciona, porque mantém e aprofunda a desigualdade; e, com ela, também a violência e o banditismo”. Karl Marx, o filósofo que Ruy Fausto idolatra, ainda que não de maneira mecânica — até porque o mundo mudou muito desde sua morte, há 135 anos —, descreveu o capitalismo de seu tempo com certa mestria, mostrando-o como extremamente avançado. Até hoje, e a derrota do socialismo contribui para o que se vai dizer, não se inventou um modo de produção tão revolucionário e que nem sempre aprofunda a desigualdade (a revista “Piauí” publicou artigos do economista Samuel Pêssoa, numa polêmica civilizada com Ruy Fausto, no qual exibe dados mostrando certo caráter “distributivista” do capitalismo ao longo dos tempos). Talvez seja possível sugerir que o capitalismo gerou uma “igualdade possível” e que a “igualdade total” é uma impossibilidade.
Quando instado a dizer quais são os países que se aproximam do modelo que idealiza, Ruy Fausto não menciona nem Cuba nem China, países socialistas (a China teria um socialismo de Estado ou capitalismo de Estado). Ele cita exatamente países capitalistas. Afinal, a socialdemocracia é uma resposta capitalista, por assim dizer, ao socialismo. “Há a socialdemocracia dos países nórdicos, os movimentos comunitários na Espanha e na Itália. Há um movimento mundial de cooperativas e, em países como a França, que não vou idealizar, há de qualquer modo uma seguridade social que funciona bem, ainda que com limitações. Assim, existem experiências que se aproximam do que deveria ser feito. E não por acaso certos países, como os nórdicos, estão bem posicionados nas escalas internacionais de condições de vida”, afirma. Tais países não abdicaram do mercado e usam o Estado para pressioná-lo a aceitar uma vida menos desigual entre as pessoas. Não deixaram de ser capitalistas, não se tornaram socialistas, mas criaram uma sociedade mais igualitária. Não deixa de ser curioso um marxista defender as cooperativas, que, em algumas regiões da Espanha, funcionam muito bem.

Não há, da parte de Ruy Fausto, uma defesa do fim da propriedade privada. “Não se trata de extinguir nem mesmo o capital, ou os capitais. Mas sim de fazer com que o capital seja neutralizado, deixe de ser a forma hegemônica.” Ele sugere como contraponto ao capitalismo ferrenho as “cooperativas, a economia solidária, aliadas ao imposto progressivo sobre os mais ricos”. Resta saber se dá para fazer o que propõe em larga escala. Imagine que, na tentativa de controlar as forças indomáveis do capitalismo — o que o faz ser um modo de produção de um progressismo exemplar —, a sociedade acabe por torná-lo parasitário, portanto incapaz de gerar renda excedente para que seja apropriada e aproveitada pelo Estado, talvez por intermédio do imposto progressivo, para produzir mais igualdade entre os indivíduos? Ideias bonitas, que no papel parecem uma obra de arte de Leonardo da Vinci ou de Michelangelo, nem sempre resultam em práticas belas e, sobretudo, eficientes. Arrancar cada vez mais dinheiro dos ricos, dos que geram excedentes, teoricamente pode criar uma sociedade mais igual. Mas pode também, ao menos em determinadas sociedades, reduzir a renda dos que produzem, os empresários, o que resultará em menos dinheiro sob o controle do Estado para gestar agendas socialmente inclusivas.

A Noruega, a Dinamarca e Suécia adotaram um capitalismo, via a socialdemocracia, menos radical e digamos menos selvagem, mas não deixaram de ser capitalistas. A Volvo, gigante do setor de veículos grandes e de automóveis, é uma empresa tão capitalista quanto a General Motors, a Ford e a Volkswagen. Ruy Fausto não está equivocado ao mencionar tais nações como modelares, o que surpreende, se ainda surpreende, é um marxista valorar, de maneira positiva, a socialdemocracia. Há marxistas que apontam a socialdemocracia como uma “máscara” do capitalismo, uma maneira de evitar mudanças sociais mais radicais ou estruturais. Entre as décadas de 1930 e 1940, antes de Adolf Hitler atacar a União Soviética — em 1941 —, os socialdemocratas eram chamados pelos comunistas de “social-fascistas”.
Diferentemente de outros marxistas, que avaliam que é possível justificar Lênin e até Stálin e Mao Tsé-tung, o doutor em filosofia pela Universidade Paris I e professor emérito da USP é crítico visceral do totalitarismo. “O totalitarismo de esquerda, assim como de direita [Hitler, Mussolini], foi monstruoso. Nos países onde ele aconteceu, hoje há uma espécie de autocracia que junta o pior dos dois lados — autoritarismo e capitalismo selvagem —, como é o caso da China. O stalinismo foi medonho. Foram regimes genocidas. Quem defende um caminho fora da liberdade está indo na direção errada”, sublinha Ruy Fausto. Se não se é epígono do comunismo é impossível discordar do filósofo, mas é possível fazer um ligeiro reparo: no caso da China, não seria menos inadequado falar em “socialismo selvagem”?

Lava-Jato

Ao fazer a defesa de Lula da Silva, parte da esquerda, a petista e mesmo a comunista — o PC do B é mais lulista do que petista (o PT, frise-se, é socialdemocrata, não é comunista) —, tangencia a discussão da corrupção. Ruy Fausto não segue pela mesma seara: “Há correntes de esquerda que acham que a corrupção não importa se existe um projeto social em andamento. Mas corrupção é uma coisa seriíssima. Quem acha que isto não tem importância está delirando e parece querer a morte da esquerda”. Em seguida, ressalva: “Mas há também os que acham que a corrupção é o único problema, que basta não se corromper que tudo estará bem. E isso é um erro também”.

O Partido dos Trabalhadores do ex-presidente Lula da Silva “fez a besteira de entrar na política vigente. O PT queimou a esquerda. Fez coisas boas para o Brasil, mas, agora sabemos, sob condições terríveis” | Foto: Ricardo Stuckart Filho

A repórter Ana Clara Costa, da “Veja”, deveria ter feito uma pergunta ao filósofo, mas não a faz: o que terá a dizer do fato de que, em alguns Estados funcionários públicos, apropriam-se, por meio dos salários, de quase 100% da receita, que, a rigor, deveria ser apropriada pela sociedade? Pode-se falar em casta? O que dirá um marxista de tema excruciante, mas que, em ano eleitoral, os políticos — de esquerda, de centro e de direita — não querem discutir? Não são empresários que estão se apropriando da, digamos, “renda” dos Estados. Não são os corruptos que estão, necessariamente, assaltando a receita. Os servidores, de maneira legal, se tornaram sócios remidos dos recursos dos Estados. O que um marxista do quilate de Ruy Fausto tem a dizer a respeito? Como investir mais em igualdade social se a renda é apropriada por uma “nova classe”, diria o marxista iugoslavo Milovan Djilas?

Ruy Fausto frisa que “não” acredita “na inocência absoluta do” ex-presidente Lula da Silva. “Tampouco sou, em princípio, contra a Lava Jato. Acho necessária, só que ela desandou.” A Operação, na sua interpretação, não provou, juridicamente, corrupção “no caso do apartamento do Guarujá”. “No caso de Lula, não ficaram provadas nem a propriedade nem a posse consubstanciada do imóvel.” O filósofo diz que “a esquerda foi muito mais golpeada do que a direita. Por isso mesmo, acho que a prisão do Lula é muito injusta e é um ato político que serve às forças mais conservadoras”. Não seria possível sugerir outro modo de interpretar: a prisão não seria mais excessiva do que injusta?

O filósofo diz que “o PT fez a besteira de entrar na política vigente, a da promiscuidade entre público e privado. Ganhou fazendo alianças com partidos como o PMDB, e pagou um preço enorme. Seria melhor não ter entrado nesse jogo. Teria, hoje, uma imagem de prestígio. Não sei se estaria na Presidência, mas para que ter levado a Presidência e estar onde está agora? O PT queimou a esquerda. Fez coisas boas para o Brasil, mas, agora sabemos, sob condições terríveis”. Anteriormente, Ruy Fausto elogiou Marielle Franco, que pertencia ao PSOL, mas, adiante, critica partidos radicais: “A extrema esquerda tem nuances totalitárias, um apego a velhas ideologias, como o trotskismo e o castrismo”. O PT não morrerá, assinala o filósofo, “mas perderá a hegemonia”.

O PT mantém o nome de Lula da Silva como candidato a presidente da República, quando petistas minimamente qualificados sabem que não estará entre os postulantes, em outubro deste ano. Ruy Fausto defende que o PT deveria bancar logo Fernando Haddad. “Se o Lula for inteligente, indicará o Haddad como candidato. O problema é que o partido não gosta dele. E não gosta porque ele é melhor que a direção do partido. Particularmente, não creio que ele vá se eleger. Mas faria uma boa campanha, e isso já é importante.”

A entrevista mostra um filósofo não obtuso e que se propõe a examinar “quadros reais” e com um realismo ímpar. Ruy Fausto não é, em definitivo, um nefelibata nem defende ideias, diria um gaúcho, “escronchas”. Não é preciso concordar com ele para admitir que apresenta ideias que, no lugar de fechar, abrem o debate. Talvez seja possível sugerir que é a profunda desigualdade entre os indivíduos que move a sociedade e que a luta pela igualdade, como ocorreu na União Soviética e na China, pode acabar travando as forças produtivas. Mas isto não é o mesmo que defender a desigualdade social. Sociedades socialmente menos desiguais são mais, digamos assim, felizes.