Falta ao brasileiro ter orgulho de sua Constituição
08 outubro 2023 às 00h19


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No dia 5 de outubro de 1988, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte e também da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, fez o discurso que marcaria uma nova era para o Brasil. “Declaro promulgado o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social, do bem-estar e da paz para todos os brasileiros. Quando alguém quiser saber quem sou, direi sempre: sou um construtor de sonhos. Fiz parte de um grupo de homens e mulheres que ousou sonhar e que conseguiu transformar seu sonho em realidade.”
Se algum dia, andando pela rua no centro de Nova York, um turista brasileiro for parado por um cidadão local e em seguida desafiado a dizer algo que o Brasil oferece que não poderia ter nos Estados Unidos, a resposta deveria estar na ponta da língua: “Ir ao posto de saúde do bairro, ter uma consulta com um médico especialista, marcar uma série de exames e tomar vacinas contra várias doenças. Tudo isso sem ter de desembolsar ali um centavo do próprio bolso.”
E, então, o compatriota uniria sua declaração ao trecho que abre este Editorial com uma frase. “Esse é um dos direitos que a Constituição de meu País prevê para todos os que estejam em território nacional, seja brasileiro ou estrangeiro”. O Sistema Público de Saúde (SUS), que dá o direito universal ao acesso gratuito ao serviço, é uma das garantias asseguradas pela Lei que rege os destinos do Brasil nos últimos 35 anos.
Em agosto, na cidade de Louisville, no Estado de Kentucky, pacientes, alguns deles idosos, foram despejados de um hospital e literalmente jogados na rua por não terem como pagar os custos da internação. Por maiores que sejam as deficiências do SUS, uma cena desumana como essa é impensável no Brasil.
Infelizmente, o SUS – assim como a Constituição, como um todo – ainda são pouco valorizados pelo brasileiro. É preciso alguém de fora para tentar abrir. Anos atrás, o programador de computadores Dylan Stillwood, originário dos Estados Unidos, precisou ser submetido a uma cirurgia no maxilar. Como turista, ele visitava Caruaru (PE), no período das festas juninas.
Dylan foi atendido no Hospital Regional do Agreste, onde ficou hospitalizado, recebeu medicação e, dias depois, foi operado. Após sair do hospital, antes de retornar à origem, ainda ficou sob os cuidados médicos até a consulta final e a liberação. Tudo sem gastar um real. Como seria o tratamento de um brasileiro nos EUA, em situação inversa?
Muito grato por tudo o que viveu, o programador contou sua experiência nas redes sociais. Entre outras ponderações, disse: “Os brasileiros devem exigir sempre melhores condições de saúde pública, mas também devem se sentir extremamente orgulhosos do SUS, uma conquista enorme que poucos países no mundo alcançaram”.
Mais do que um “documento de praxe” para eliminar outro – a Constituição de 1967, imposta pela ditadura militar –, a Constituição é uma grande carta de intenções mirando um novo Brasil no horizonte, pensada e escrita em um momento em que voltava a democracia e a esperança de dias melhores, apesar do estrago, inclusive econômico, deixado pelas décadas de repressão.
Também não poderia jamais ser considerada mera burocracia algo que foi elaboração por todas as diversas correntes de pensamento, classes corporativas e movimentos sociais. O processo que envolve a Assembleia Nacional Constituinte é até hoje o momento mais rico de participação popular da história nacional.
Depois de 35 anos, ainda há muito o que fazer para que o que foi promulgado realmente seja efetivado
Por tudo isso, seria importante que cada brasileiro tivesse a oportunidade de acessar de verdade os meandros da Constituição. Seus críticos dizem que ela contém “direitos demais e deveres de menos”. É uma injustiça com quem a construiu e buscou salvaguardar, na Lei, uma parte do que foi, durante séculos de história, negado à imensa maioria de sua população, especialmente aos pobres, negros e indígenas.
E, como as coisas não acontecem num passe de mágica nem o sr. Ulysses não dispunha de uma vara de condão, depois de 35 anos ainda há muito o que fazer para que o que foi promulgado realmente seja efetivado. São várias e complexas as demandas. Uma delas, e com certeza um dos mais importantes, é a demarcação dos territórios dos povos originários, que se encontra agora como tema de disputa entre os Poderes Judiciário e Legislativo, por causa da tese do marco temporal, já descartada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas que o Congresso, bancada ruralista à frente, quer implementar.
O Artigo 5º, de longe o mais importante da Constituição e onde constam os direitos individuais, é o cerne de vários outros debates, como a descriminalização do aborto e das drogas, o respeito à diversidade e a extensão da união civil a todos os casais. Esses temas polêmicos serem discutidos à luz da democracia é algo que também deve ser motivo de satisfação para os cidadãos desta Nação.
A quadra atual de nossa história é especialmente desafiadora. Desde o início da década passada, o País passa por um cenário político instável, a que as instituições tem respondido com assertividade, apesar de rompantes “fora da curva”, diga-se, de representantes de todos os Poderes.
Para ultrapassar esse momento de grande turbulência, o respeito à Constituição é o primeiro mandamento. Mas só se respeita aquilo que se conhece com profundidade e, infelizmente, os brasileiros não foram acostumados a ter intimidade com o texto constitucional – algo que traria um outro nível de cidadania e de civilidade à Nação, como um todo.
Se muito tempo foi desperdiçado nesse sentido, nada impede que se torne uma prática, a partir de agora, que, nas escolas e demais instituições de ensino, a Carta Magna promulgada em 1988 passe a ser objeto de estudo e de pesquisas. A maior familiaridade com o texto certamente trará, consigo, um maior sentido de pertencimento à Pátria. Ou seja, conhecer de verdade a Constituição é também tomar parte no que seria um patriotismo de fato, muito mais profundo do que apenas vestir verde e amarelo, colocar a mão no peito e cantar o hino nacional.
O jornalista e escritor Nelson Rodrigues, que poderia também ser considerado um sociólogo sem diploma, soube entender como poucos a alma do brasileiro médio. É dele a teoria do vira-latismo encrustado no espírito nacional que, muitas vezes, faz com que o povo esqueça as coisas grandes de sua própria Nação. A Constituição de 1988 é uma prova de que a união de esforços pode construir pelo Brasil.