A sociedade fica com a impressão de que o PMDB está sem rumo, à deriva e implodindo, e que seus principais líderes vivem num mundo paralelo, distante do mundo real dos eleitores. O tucano Marconi Perillo pode ser o principal beneficiário deste apreço pela irrealidade

Saturno devorando um filho, de Francisco de Goya
Saturno devorando um filho, de Francisco de Goya

O histriônico e carismático Jânio Quadros renunciou à Presidência da República em agosto de 1961 — o que, de algum modo, contribuiu para desestabilizar a democracia brasileira. O aliado do udenista Carlos Lacerda disse que renunciou sob pressão de “forças ocultas”.

Críticos bem humorados, talvez não imprecisos, contam que tais “forças” estavam “ocultas” numa garrafa de uísque. Quadros, dizia-se, seria “uisquezofrênico”. O sempre atento Afonso Arinos preferia nominá-lo de “a UDN de porre”. No filme “O Homem Que Matou o Facínora”, o cineasta americano John Ford afirma que, se a lenda é mais empolgante do que o fato, é mais adequado publicar a primeira. Entretanto, para entender o presidente patropi, um especialista em renúncias, é crucial separar a lenda do fato. Na verdade, sua renúncia foi uma espécie de golpe que não deu certo. O político que condecorou Che Guevara, e mantinha uma política externa independente, deixou o governo acreditando que, dado o receio dos militares, João Goulart não tomaria posse. Assim, ele voltaria ao poder nos braços dos homens da caserna e, claro, do povo. Deu tudo errado. O Congresso aceitou a renúncia e, apesar da revolta das Forças Armadas, Jango, o vice, assumiu, sob uma solução negociada, que deu origem a um parlamentarismo que não funcionou, porque se tornou tão-somente um arranjo para reduzir o poder de um presidente que coronéis e generais apontavam como suspeito de esquerdismo.

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Renúncias às vezes são blefes — como no caso de Quadros. Em Goiás, em menos de um mês, o eleitor é “apresentado” a duas renúncias, que talvez sejam renúncias que não são renúncias, e sim maneiras de pressionar adversários internos. Primeiro, o ex-prefeito de Goiânia Iris Rezende (PMDB) “desistiu” de ser pré-candidato a governador, porém, paradoxal e estranhamente, se tornando, e não apenas nos bastidores, uma espécie de candidato a governador. Segundo, ante a pressão de um político do qual eleitoralmente se sentia como refém, o pré-candidato oficial do PMDB a governador de Goiás, Júnior Friboi, renunciou. “Pra valer”, dizem, entre desconcertados e desconsolados, seus aliados.

Sabe-se que, para justificar suas fragilidades e insuficiências, o indivíduo “precisa” responsabilizar ou culpar o outro. De alguma maneira, é uma tentativa, consciente ou inconsciente, de se tornar ou de se acreditar são. No caso da renúncia de Friboi — o apelido em si é uma coisificação, ou reificação, com o “objeto” definindo o homem, e não o oposto —, há várias explicações, mas passa-se ao largo, nos comentários da imprensa, de uma questão mais relevante. Porém, antes de examiná-la (leia, se preferir, o último parágrafo), tratemos de escarafunchar os bastidores deste “afastamento” surpreendente.

Registre-se, para expressar um humor ao estilo corrosivo e satírico do escritor britânico Ewelyn Waugh, que os nomes Jânio Quadros e Júnior Friboi têm 12 letras. O que isto quer dizer? Nada, mas não deixa de ser uma “empatia”. Agora, falando sério, dificilmente um empresário entende o ritmo e as démarches da política. Na política, há avanços e recuos, além de balões de ensaio que parecem irreais mas não o são. O mundo da política tem uma agressividade de rara excepcionalidade, mas disfarçada ou suavizada pela linguagem.

Empresários assustam-se com isto e ficam com a impressão de que a política é um terreno sem regras — uma espécie de pântano ou atoleiro. Não é bem assim. O sociólogo alemão Max Weber percebia a especificidade da política e valorizava o político profissional. Os políticos em tempo integral, alguns (do Executivo) chamados de gestores públicos, são fundamentais à sociedade. Quando eficientes, quando entendem e aceitam que a função do homem de Estado é contribuir para o crescimento da economia e para o desenvolvimento, são extremamente úteis à sociedade, e não apenas, como avalia o marxismo instrumental e ortodoxo, a uma determinada classe social, a dominante. Até porque nem sempre classe dirigente é sinônimo de classe dominante.

Friboi possivelmente não entendeu, e confundiu-se, os jogos da política, com as idas e vindas, com sua falta de clareza, com suas zonas cinzentas. É provável que tenha tentado aplicar métodos empresariais ao mundo político. De fato, métodos administrativos cabem em quaisquer lugares, mas o rigor da seara empresarial nem sempre coaduna com a flexibilidade da política. Os tempos e objetivos são diferentes. O empresário quer “grelhar” logo, mas o político prefere “cozinhar”, quer dizer, demora mais a fechar os acordos.

Comenta-se que um dos motivos da renúncia de Friboi tem a ver com uma suposta “gravação” em que aparece “comprando” apoio político. Até que se mostre a gravação, trata-se mais de uma lenda do que de um fato. Procede que o empresário estava montando uma estrutura caríssima, com seus fartos recursos, mas não há nenhuma prova de que tenha “comprado” apoios. Aos acusadores cabem o ônus da prova.

Fala-se que a pré-campanha de Friboi estava ficando muito cara. O colunista Lauro Jardim, da coluna “Radar”, da revista “Veja”, embarcou nesta interpretação. Como o empresário revelou que iria bancar sua campanha, sem pedir recursos a terceiros, para evitar compromissos que pudessem engessar seu provável governo, é lícito supor que sua campanha pesaria nos seus polpudos bolsos. O nome Friboi estava associado a cifras astronômicas. Dependendo do interlocutor, os valores monetários de sua campanha variavam. Uns falavam em 250 milhões de reais. Os mais exagerados apontavam 500 milhões. Se verdadeiros, e se Friboi fosse candidato, a campanha deste ano seria a mais cara da história de Goiás. O empresário, hoje dedicando-se à construção civil, teria deixado a JBS-Friboi. Teria vendido suas ações por cerca de 10 bilhões de reais. O mercado sugere que este valor é exagerado. A revista “Forbes” apresenta seus irmãos, Joesley e Wesley Batista, e seu pai, José Batista, como bilionários, mas não o arrola. Por isso, é possível que a fortuna de Friboi não se aproxime dos 10 bilhões citados pelo mercado persa da economia e da política.

Joesley e Wesley, empresários agressivos, teriam dito que o irmão, no lugar de se aposentar precocemente, deveria ter continuado na empresa — uma fonte garante que não o veem como estorvo e o admiram por sua tenacidade —, mas seu pai teria batido o martelo e o apoiado no seu sonho de governar Goiás. Entretanto, a pré-candidatura de Friboi mexeu em determinados vespeiros. Aliados, como Iris, passaram a tratá-lo como adversário, ou seja, motivo para ataques. Quanto aos adversários, nem é preciso dizer nada. Mas talvez seja verdadeiro dizer que o fogo amigo tenha sido o principal responsável para a renúncia de Friboi. O empresário parecia acreditar que, para enfrentar um político temível como Iris, precisava tão-somente de “estrutura”, o que lhe proporcionaria aliados no PMDB. Mas, se Friboi milita na política há um ou dois anos, Iris come, bebe e respira política há meio século e cinco anos — exatos 55 anos. O decano peemedebista conhece o pulo e o “despulo” do gato. Friboi ainda “pula” como um filhote de gato. En­quanto pensava que estava “canibalizando” Iris, tomando-lhe os aliados, o ex-governador o cozinhava em banho-maria.

As empresas da família Batista faturam mais de 100 bilhões de reais por ano e têm acionistas, como o Banco Nacional de Desen­volvimento Econômico e Social. O BNDES é dono de 31% do grupo, que está se tornando uma espécie de conglomerado — cada vez mais parecido com os conglomerados japoneses, coreanos e chineses, atuando em várias áreas, da área produtiva a banco. Grandes empresas produtivas sobrevivem, em larga medida, porque, na prática, são também grandes empresas financeiras. Tal ocorre com a JBS. Não à toa a holding J & F é presidida por um executivo egresso do mercado financeiro — Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston. Empresas precisam zelar por sua imagem com rigor, sob pena de perder espaço no mercado e, mesmo, de, a médio ou longo prazo, quebrar. Os irmãos Batista, agora com o apoio do pai, não gostaram de saber que um dos motes da campanha de Goiás e, mesmo, do país seria a JBS, quase uma estatal-privada. A revelação de que a JBS deve milhões em impostos para o governo de Goiás — notícia que espalhou-se pelo país e pelo mundo —, sinalizando que não cumpre compromissos públicos, preocupou os empresários. CPIs federal e estadual não são bem-vindas a empresários que negociam na bolsa de valores.

Finalmente, cabe a pergunta: Iris puxou o tapete de Friboi ou este articulou mal e isto permitiu a retirada do tapete? As duas coisas, possivelmente. Mas o fato é que, eleitoralmente, o empresário só teria alguma força se tivesse o político empenhado, em tempo integral, na sua campanha. Ao descobrir que tinha o apoio de arrivistas, oportunistas e alpinistas políticos, com escassos votos, Friboi pode ter “acordado”. Pesquisas sinalizavam que sua expectativa de poder era baixa.

Há, por fim, uma questão essencial, que poucos discutem. A briga interna sinaliza que o PMDB está sem rumo, à deriva. O partido implodiu e não será fácil juntar os cacos. Fica-se com a impressão, para não dizer que se tem certeza, de que os líderes peemedebistas estão desconectados da realidade e vivem num mundo paralelo, cada vez mais distante do mundo real dos eleitores. Um mundo nebuloso, no qual fantasia e realidade se misturam, sobrepondo-se. Parece que nem percebem que, enquanto se atacam, o governador Marconi Perillo, do PSDB, está bem na frente, na raia, sem ser minimamente incomodado. O tucano é um político de sorte, para dizer o mínimo.