COMPARTILHAR

Economistas, inclusive de linhagem marxista, admitem a convivência de modos de produção diferentes numa mesma sociedade. Mas ressalvam que um dos modos de produção será dominante e, portanto, subordinará os demais.

O capitalismo, desde que se tornou o modo de produção hegemônico, permeia todas as demais relações na sociedade. O homem típico da sociedade moderna é o homem capitalista — seja pobre, rico ou da classe média.

O capitalismo é altamente absorvente, inclusive das rebeldias político-comportamentais. Os hippies pretendiam, de alguma maneira, criar uma sociedade alternativa, com escasso consumo, portanto contra o modo de produção capitalista. Aos poucos, a maneira mais despojada de se vestir — roupas largas, fora do cânone oficial — foi absorvida pelo mercado, com estilistas hábeis sendo a face visível, escondendo, por assim dizer, a força e a perspicácia da indústria.

Homem que, escravizado, foi torturado em Bento Gonçalves | Foto: Divulgação

Ciclistas rompem, em parte, a dominância dos automóveis, portanto adotam um comportamento alternativo e saudável. Porém, alternativo em relação a quê? As bicicletas, às vezes caríssimas, são produzidas pela indústria e, não raro, com as mesmas matérias-primas usadas para fabricar automóveis. Para se tornar um ciclista modelo, é “preciso” ter roupas, calçados, luvas e capacetes especiais. Noutras palavras, há um modelito que, a rigor, não é nada alternativo e é definido pelo mercado.

O fato é que o capitalismo não combate mais a “rebeldia” — o “radicalismo” comportamental —, mas apressa-se a absorvê-la. Umberto Eco talvez dissesse assim: o rebelde (o apocalíptico) nasce de manhã e, à tarde, já está “integrado” (ou dominado). Observe-se que até Che Guevara, o temível guerrilheiro comunista, aparece nas estampas das camisetas usadas por pessoas que, a rigor, mal sabem sobre sua história. O líder comunista se tornou, digamos, um ícone do capitalismo. Assim como os britânicos Beatles e a mexicana Frida Kahlo. A rebeldia está inteiramente “domesticada” e se tornou prêt-à-porter? Não, é claro. Mas é fato que o mercado soube absorvê-la, reduzindo sua capacidade contestatária. Pode-se falar em rebeldes, sobretudo identitários (as contestações políticas coletivas perderam energia), ma non troppo.

Escravidão “produziu” o capitalismo

A força do capitalismo advém, pois, de que, ao mesmo tempo que impõe seus valores (sua ética), absorve a dos outros e, com o tempo, torna-os seus (Étienne de La Boétie falaria em “servidão voluntária”?).

Livro de FHC sobre a escravidão no Sul do País | Foto: Jornal Opção

Com as grandes empresas de tecnologia, as chamadas big techs, a internet se tornou a meca do mercado moderno — um hipermercado gigante e global no qual se vende tudo. Quando se fala tudo está se incluindo os indivíduos. Quando participa de uma rede social, dialogando com amigos e desconhecidos-quase amigos — expondo suas características e idiossincrasias —, ou procura produtos nos múltiplos sites, o indivíduo não está apenas “comprando”. Ele está se vendendo para o mercado, está se tornando mercadoria — como um relógio, um sapato, um celular ou um notebook.

A internet acentuou o fato de que homens e mulheres — adultos, adolescentes e crianças — são os produtos mais vendáveis do “novo” capitalismo. Pode-se falar que o capitalismo inventou uma escravidão “light”; portanto, ligeiramente invisível. Costumamos dizer “meu Twitter” e “meu Facebook”. É um engano. Nós somos do Twitter, do Facebook, do Google, do YouTube. Nós somos “seguidores”. Mas totalmente? Não. Há um quê de “sujeito” entre os que se tornaram “objetos” (todos nós), ou melhor, “mercadorias”. Nunca se perde a autonomia inteiramente.

Quartos-senzala onde ficavam trabalhadores escravizados | Foto: Polícia Rodoviária Federal

Se há uma servidão voluntária entre os diversos consumidores que, a rigor, são “consumidos”, há uma outra questão — e grave. O capitalismo, na sua convivência com modos de produção diferentes, permite, por certa flacidez moral-ética, a permanência de modos de produção retardatários e, no geral, brutais.

Como “sistema”, a escravidão foi abolida no Brasil há 135 anos. É tão recente que, quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nasceu, em 1931, fora abolida havia apenas 43 anos. Título da tese de doutorado de FHC: “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional — O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul”.

Nos romances “Luz em Agosto e “Absalão, Absalão!”, para além da linguagem inventiva, que o aproxima de James Joyce, o norte-americano William Faulkner trata da “maldição” dos Estados Unidos, sobretudo do Sul. Assim como mais tarde Toni Morrison, Faulkner examinou a escravidão com extrema perspicácia e a denunciou de maneira candente, o que às vezes não se percebe dada sua literatura enviesada e experimental.

Romance do escritor norte-americano William Faulkner revolve a maldição do Sul nos Estados Unidos — a escravidão | Foto: Jornal Opção

A escravidão no Brasil, que matou e destruiu a vida de milhares — e produzindo a vileza do racismo, ainda tão presente no país —, é, como sugeriu Faulkner (a respeito dos Steites), a maldição dos trópicos. Ao se denominar a escravidão de genocídio não se deve apresentar ressalvas. Porque se trata de genocídio mesmo. Os negros foram vítimas de uma barbárie cometida por empresários brancos (no geral, brancos).

Durante o período em que prevaleceu a escravidão, o Brasil era escravista (houve um escravismo colonial, de acordo com o historiador Jacob Gorender), feudal ou capitalista? No século 19, antes e pós-Independência, havia uma sociedade escravista — os negros eram, além da força de trabalho dominante, mercadorias à venda — e, ao mesmo tempo, capitalista. Havia uma convivência entre os modos de produção. Pode-se sugerir que a moderna economia capitalista da nação patropi deriva tanto do tráfico negreiro quanto da escravidão em si. O uso da escravidão foi, por assim dizer, um dos fatores de acumulação primitiva do capitalismo tardio ou retardatário nas terras verde-amarelas.

Trabalhadores que foram resgatados pela polícia em Bento Gonçalves | Foto: Polícia Rodoviária Federal

Então, o capitalismo patropi é filho direto da escravidão, ou seja, do genocídio contra os negros. A moderna indústria paulista, para citar um exemplo, deriva, em larga escala, de capitais gerados pela produção de café e outros empreendimentos agrícolas. Fora a mão de obra imigrante, os empresários-fazendeiros — assim como os barões da cana de açúcar (e não deixa de ser sintomático que em algumas lavouras de cana para produção de etanol, como na cidade goiana de Acreúna, recentemente, se tenha usado mão de obra escravizada) — utilizavam escravos para produzir o café que exportavam para vários países.

Brasil é o país-Sísifo: descendo a ladeira

Sísifo, de Ernesto Blanco

Se o capitalismo se tornou o modo de produção dominante, desde há várias décadas, por que a escravização — ou, como assinala o eufemismo legal, “trabalho análogo à escravidão” — persiste no Brasil? A lei é crucial para enquadrar uma sociedade, para a eliminação da barbárie. Mas as leis, mesmo as melhores e mais aceitas pela sociedade, demoram a se tornar, digamos assim, éticas coletivas.

A escravidão é uma abominação e sua permanência deve ser tratada com o máximo de rigor pelas instituições. Talvez seja o caso de se criar leis ainda mais rígidas, sobretudo afetando os bolsos dos novos escravocratas — diretos ou indiretos — e impedindo que tenham acesso a recursos de bancos públicos, como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, e fundos, como o Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO). Escravocratas devem ser impedidos de manter quaisquer negócios com o poder público. Aquele que for preso por escravizar terceiros não deve se enquadrar entre os que podem pagar fiança. Deve responder ao processo legal preso.

Indivíduos que escravizam outros indivíduos aproximam-se dso antigos senhores de escravos e, sim, dos nazistas. Podem até não matar — no caso das vinícolas de Bento Gonçalves (RS), há registros de ameaças de morte e castigos físicos, inclusive com o apoio de policiais —, mas a escravização em si é inominável e merece penas duras. O Brasil precisa discutir a questão da maneira o mais ampla possível. Porque se trata de casos gravíssimos. A barbárie está entre nós. O passado não foi embora, está presente — firme, sólido e resistindo às leis. Civilização não é beber vinho de 12 mil e sair fazendo publicidade. Civilização verdadeira é o respeito aos seres — todos eles.

Sandro Fantinel é vereador em Caxias do Sul (RS) | Foto: Reprodução

No caso das empresas que fabricam etanol em Goiás (e outros Estados) e das vinícolas do Rio Grande do Sul, que são empreendimentos altamente “modernos”, há desculpas que beiram o kafkiano.

As empresas, as “modernas”, mantêm negócios com os contratantes da mão de obra (espécie de novos traficantes de pessoas) e abdicam de qualquer responsabilidade por aquilo que acontece na frente de todos.

Os contratantes buscam pessoas em outros Estados, como a Bahia — em locais pobres —, e colocam-nas para trabalhar nas lavouras de cana e vinícolas. Ao chegar são trabalhadores, porém, quando começam a plantar ou colher, descobrem que “estão” escravizados (repetindo o eufemismo, em “situação análoga à escravidão”). Trabalham, não exatamente para melhorar de vida e enviar dinheiro para suas famílias, e sim para pagar as dívidas que passam a ter com os “gatos”. Tudo funciona assim, “normalzinho”, naturalizado, sem nenhum estranhamento. As dívidas não podem ser pagas, é claro, e os escravizados passam a dever cada vez mais.

Os três livros mostram que a escravidão foi um genocídio | Foto: Divulgação

Quando os procuradores do Ministério Público do Trabalho (contando com o apoio da Polícia Federal) descobrem o que está acontecendo, porque alguma denúncia vazou, os empreendedores “modernos” — aqueles que vendem etanol, vinhos e sucos (Aurora é “manhã” para alguns e “noite” para muitos) e circulam por Paris, Londres, Roma e Nova York (e fazem compras em Miami) — se dizem perplexos e, claro, culpam os “intermediários” ou “gatos”. Estes são presos, pagam fiança e, às vezes, desaparecem. Transferem seus “métodos” para outros municípios ou Estados.

Os empresários ditos modernos — há algo mais chique e refinado do que vinho (uma das vinícolas vende vinho para a Igreja Católica)? —, ao serem intimados para explicarem sua face retardatária, seu vínculo com um passado que resiste a desaparecer, dizem que não têm a ver com a tal de escravização. Porém, como sabem que não há como escapar dos tentáculos da Justiça — e do imenso desgaste público (Aurora, Salton e Garibaldi talvez tenham de mudar de nome) —, aceitam negociar e pagar o que é devido àqueles que, amparados pelo Estado, voltaram a ser trabalhadores (ou desempregados), deixando a condição de escravizados.

Os empresários do vinho e do Etanol têm de encontrar outras fórmulas para manter a competitividade de seus produtos. O uso de escravizados — agredidos de várias formas, sobretudo pela forma de trabalho — é um crime contra a humanidade. Observe-se que a maioria dos escravizados não foi mostrada. Mas alguns que foram filmados e fotografados são negros. É o Brasil, o país-Sísifo, descendo a ladeira.

Sobre Sandro Fantinelo, vereador do Rio Grande do Sul, que atacou trabalhadores baianos — sugerindo que são “preguiçosos” e “sujos” —, resta dizer: é apenas a face racista explícita de setores cruéis e perversos da sociedade brasileira (não apenas do Sul do país). Por certo, o político quer receber ou manter os apoios financeiros de empresários que são modernos no consumo — comida, automóveis, aviões, viagens de primeira linha —, porém bárbaros e selvagens no comportamento. O membro do Legislativo é a face visível de um país que — às vezes — disfarça o racismo contra os negros e o preconceito contra os pobres.

Leia sobre escravizados do século 21 em Goiás