Supostamente ecoando Aleksandr Púchkin, o escritor russo Liev Tolstói sugeriu que, para se conhecer bem o universo, é preciso começar pelo entendimento da aldeia. A observação direta do particular, da província, contribui para uma percepção aguçada do geral — o universal.

Porém, com a internet, fica-se com a impressão de que nada é “longe”; pelo contrário, tudo é “perto” — até pertinho. Então, dada a velocidade da globalização das informações, o terremoto da Turquia e da Síria, que matou mais de 40 mil pessoas (Uruaçu, cidade do Norte goiano, tem 41.150 habitantes), “entra” nas nossas casas e se torna uma tragédia compartilhada por todo o mundo. Me vejo acompanhando o salvamento de pessoas e, às vezes, fico emocionado. Quando reflito, um pouco que seja, concluo, mas sem condenação moral, que o jornalismo excede, sobretudo na repetição das mesmas cenas, como se quisesse, não apenas mostrar, mas piorar o trágico. Ao mesmo tempo, ao menos na mídia patropi, não leio nem vejo reportagens sobre pessoas, com personagens e histórias detalhadas. As imagens, chocantes, são, por assim dizer, as reportagens. É como se os indivíduos não tivessem faces, nomes e histórias. Um poeta lírico acrescentaria: “alma”.

Liev Tolstói: o entendimento do universal começa pela aldeia | Foto: Reprodução

A foto de um homem segurando uma mão da filha morta mobilizou meu interesse. Olhei a foto detidamente. Observei o rosto do homem, no qual há uma tristeza pétrea. Fixei o olhar na mão pálida da adolescente de 15 anos. E fiquei triste com sua história. Entretanto, assim como surgem, as histórias desaparecem, e não ficamos sabendo mais nada sobre o homem e sua família (o fotógrafo será premiado, sem dúvida). Aí surge uma nova notícia trágica e nosso olhar é conduzido para o outro lado. A tragédia seguinte, e quase sempre próxima, leva ao esquecimento da anterior.

Se as tragédias turcas e sírias nos comovem, e é natural que isto ocorra, há notícias brasileiras, ocorridas bem perto de nós, que passam quase despercebidas. Um dos motivos é que não são expostas com frequência. As histórias de pessoas escravizadas no Brasil, no século 21 — em tese, a escravidão foi abolida em 1888, há quase 135 anos (observe-se que a bisavó do jogador Pelé foi escravizada) —, aparecem nos jornais e portais, mas, no geral, de maneira episódica, sem a devida repercussão. Sobretudo, sem uma discussão capaz de mobilizar o país contra a barbárie, contra o crime inominável. Trata-se de um escândalo e precisa ser apresentado à sociedade como tal. Os escravocratas deveriam ter seus nomes expostos e as penalidades precisam ser mais duras.

Na sexta-feira, 17, na reportagem “Com 139 vítimas na cana, resgate de escravizados é o 3º maior em 5 anos”, de Leonardo Sakamoto, com a colaboração de Daniel Camargos, o UOL denuncia um fato gravíssimo — não o retorno, e sim a permanência da escravidão, ligeiramente disfarçada, no país. Um escândalo. Não deixa de ser vergonhosa a escassa divulgação do caso e louvável o material de Sakamoto.

De acordo com Sakamoto, membros da Inspeção do Trabalho — com o apoio do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal, de Defensoria Pública da União e da Polícia Federal —, resgataram “139 trabalhadores de condições análogas às de escravo em uma fazenda de cana-de-açúcar, em Acreúna (GO)”. Segundo a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, é o terceiro maior resgate de pessoas em um único estabelecimento nos últimos cinco anos”. A operação foi concluída na quinta-feira, 16.

Acreúna é uma cidade de Goiás, uma das mais prósperas do Sudoeste do Estado. É uma grande produtora de grãos. Muito perto de nós — é a nossa aldeia, aquela de que falaram, no século 19, Púchkin e Tolstói.

As pessoas escravizadas, afirma o auditor fiscal do Trabalho Roberto Mendes, “deixaram suas famílias para trás na expectativa de enviar algum dinheiro para casa. Mas, chegando lá, viram que as promessas eram falsas e que descontos indevidos eram feitos sobre a alimentação e o transporte”.

Os indivíduos escravizados estavam trabalhando em terras da Agropecuária Nova Gália, dona da Usina Nova Gália, mas foram “recrutados” por intermediários, os “gatos”. Sakamoto informa que “quatro pequenas empresas de prestação de serviço sem idoneidade e capacidade financeira evitaram que a beneficiária final arcasse com os custos trabalhistas”. Procurada pelo repórter, a direção da empresa — cujos maquinários devem ser modernos, em contradição com o comportamento trabalhista e moral — não se manifestou.

De início, as pessoas foram contratadas, como trabalhadores e não escravizados, para plantar cana de açúcar. Porém, no local, a informação era outra: eles foram obrigados a limpar o terreno, atividade pela qual se paga menos. “Descontos ilegais eram feitos em seu salário [ressalva do Jornal Opção: se se pode falar em salário] para quitar dívidas de transporte da região Nordeste de Goiás, porém a lei obriga que esse deslocamento seja bancado pelo patrão”, assinala Sakamoto.

“De acordo com a fiscalização, após os gastos com alimentação e os descontos de passagens, alguns trabalhadores ficavam sem nada no bolso e sequer tinham condições de retornar para seus Estados de origem. Parte estava endividada com o comércio local sob a supervisão dos gatos”, conta Sakamoto. O objetivo dos “gatos” era, obviamente, manter os “trabalhadores” escravizados — quer dizer, dependentes. Assim, não poderiam sair do local, porque, sem pagar as “dívidas”, eram praticamente prisioneiros do esquema tão ardiloso quanto bárbaro e criminoso.

Os abrigos dos escravizados eram pocilgas, espécies de senzalas. “Um grupo cozinhava usando lenha. Não eram fornecidos equipamentos de proteção individual adequados e não havia sanitários nem local para guardar as refeições nas frentes de trabalho, levando a comida a azedar”, relata Sakamoto.

O procurador do Trabalho Tiago Cabral disse ao repórter que as usinas “estão achando que podem fazer qualquer coisa”. Não só acham — estão mesmo fazendo qualquer coisa. Felizmente, mesmo sendo errático e permissivo, o governo do presidente Jair Bolsonaro não conseguiu promover um desmanche total da máquina fiscalizadora, na qual há profissionais categorizados, responsáveis e humanistas.

A reportagem de Sakamoto não fala em prisões de “gatos”, senhores de escravizados, e empresários, mas pelo menos a empresa teve de indenizar as pessoas que foram libertadas. O repórter diz que “R$ 877 mil foram pagos aos trabalhadores como verbas rescisórias e direitos devidos. A Defensoria Pública da União negociou mais R$ 283 mil para eles a título de dano moral individual e o Ministério Público do Trabalho acertou o pagamento de dano moral coletivo no valor de R$ 315 mil, a ser destinado a instituições sociais de Acreúna e de outros municípios goianos”.

Nós, jornalistas, precisamos ficar mais atentos àquilo que acontece tão perto, mas, como estamos tão voltados para os acontecimentos do mundo, mal percebemos. As 139 pessoas foram escravizadas em Acreúna, quer dizer, praticamente na nossa porta. Mas, de olho nos fatos gerados pelo universal, não vimos a tragédia da aldeia.