A guerra contra o PSL tem a ver com a disputa por controle de dinheiro e poder mas também para manter o presidente com a imagem limpa

O verdadeiro nome do PSL deveria ser PJB — Partido do Jair Bolsonaro. Sem o presidente, a tendência é que, sobretudo a partir de 2022, o PSL se torne um nanopartido. O PRN, sem Fernando Collor na Presidência da República, desapareceu deixando uma história negativa.

Jair Bolsonaro, João Doria e Luciano Huck: 2022 pode ter chegado muito cedo: a dentro-direita quer arrancar a direita do poder | Fotos: Reproduções

No momento, Jair Bolsonaro, o presidente da República, está atacando abertamente o PSL e seu presidente, Luciano Bivar. Ele disse a um interlocutor, publicamente, que é melhor “esquecer” o PSL e postular que Bivar, “queimado pra caramba”, poderia queimar seu “filme também”. Midiático, ele sabia que o assunto iria para as manchetes dos jornais e das emissoras de televisão — sempre ávidos por uma fala explosiva de uma figura de proa da sociedade.

O clã Bolsonaro tentou, mas não conseguiu controlar o PSL — que terá 400 milhões de reais para a campanha eleitoral de 2020. Há uma queda de braço entre as lideranças estaduais e dois filhos do presidente, o deputado federal Eduardo, em São Paulo, e o senador Flávio Bolsonaro, no Rio de Janeiro. Os Bolsonaros-boys, neófitos mas confiantes no poder do pai, pressionaram, mas não amedrontaram políticos, digamos, mais profissionais. Afinal, o poder pode muito, pode quase tudo, mas não pode tudo. Por isso, se Bolsonaro não for reeleito em 2022, a família vai perder espaço na política.

Para esvaziar o PSL, retirando-lhe deputados — supostamente 15 e dois dos três senadores —, Bolsonaro estuda a possibilidade de migrar para a União Democrática Nacional. A UDN foi fundada em 7 de abril de 1945, no fim do Estado Novo, e extinta cm 27 de outubro de 1965, no início de outra ditadura. Bolsonaro tem a ver com o partido de Eduardo Gomes, Juarez Távora, Bilac Pinto, Milton Campos, Pedro Aleixo, Afonso Arinos, Gabriel Passos, Juraci Magalhães, Carlos Lacerda, Aliomar Baleeiro, Adauto Lúcio Cardoso, Otávio Mangabeira, Prado Kelly, Magalhães Pinto, Oscar Dias Correia, Domingos Velasco (migrou para o PSB), Emival Caiado, Jales Machado, Jerônimo Coimbra Bueno? Pouco, exceto no anticomunismo visceral.

Jair Bolsonaro sabe que Luciano Huck, o Mr. Globo, pode ser um páreo difícil | Fotos: Reproduções

A UDN era um partido de direita? Talvez de centro-direita, com forte presença da direita. O que alguns esquecem é que parte da esquerda militou na UDN. Um dos motivos é que o udenismo — “um estado de espírito” — era crítico visceral do autoritarismo do Estado Novo-Getúlio Vargas. Ao mesmo tempo, mantinha forte ligação com as classes médias urbanas. Defendia a previdência social, o ensino público gratuito e, apesar do anticomunismo, foi contra a cassação do mandato de parlamentares comunistas. Propunha o liberalismo e era antiestatista. Criticava, de maneira acerba, a corrupção. Era visto como moralista extremada. Tinha horror ao populismo (mas apoiou Jânio Quadros para presidente, em 1960, depois de perder três eleições presidenciais consecutivas). Mantinha forte ligação com militares. Apoiou o monopólio estatal do petróleo. E ficou com a imagem de partido golpista.

A socióloga Maria Victoria Benevides, a principal estudiosa do tema, afirma que na UDN conviviam tendências liberais e autoritárias e sugere que se pode se apontar a existência de UDNs. Ao final, porém, marchava unida.

Em 1945, na sucessão de Getúlio Vargas, derrubado por um golpe militar — o país torcia por sua queda, porque não tolerava mais a ditadura —, a UDN bancou o brigadeiro (a origem do doce, por sinal) Eduardo Gomes, cujo marketing dizia: “É bonito e é solteiro”. E, claro, honesto. Mas o povão optou por apoiar o general Eurico Gaspar Dutra — “feio e casado” —, que era bancado por Getúlio Vargas, o que sugere que os eleitores estavam “cansados” do regime discricionário, mas não necessariamente de seus representantes. Eduardo Gomes era liberal e não tinha simpatia por ideias totalitárias. Dutra, pelo contrário, havia sido simpático às ideias nazistas de Adolf Hitler. Mas, em 1945, com o nazismo no chão, todos haviam se tornado “democratas” — inclusive, claro, o presidente eleito.

João Doria e Jair Bolsonaro: o governador gere um Estado que tem economia de país e preocupa o presidente | Fotos: Reproduções

Na eleição seguinte, em 1950, Getúlio Vargas apresentou-se como candidato a presidente, contra o simpaticão Eduardo Gomes. Mais uma vez, os eleitores deixaram o militar na chapada e elegeram o candidato do PTB, que voltava ao poder pelo voto.

Getúlio Vargas governou sob intensa pressão da UDN, que, aliada a um grupo de oficiais, fez o possível para conturbar sua gestão. Com Carlos Lacerda no ataque, tentando convencer militares a arrancar o presidente do poder, o partido foi ficando com a imagem de golpista.

Pressionado — haveria um mar de lama no Palácio Catete —, Getúlio Vargas se suicidou, atropelando o golpe que aparentemente avizinhava. Os golpistas recolheram-se, ante a pressão popular. Entretanto, mesmo professando o golpismo e contestando o resultado das eleições, a UDN não deixava de disputar os pleitos. Entre seus líderes, havia grandes políticos, como Milton Campos, Afonso Arinos, Bilac Pinto e, apesar do golpismo, Carlos Lacerda (governou a Guanabara de maneira eficiente — provando que seu forte não era apenas a retórica).

Jair Bolsonaro e Luciano Bivar, chefão do PSL: o presidente quer se livrar de penduricalhos problemáticos | Foto: Reprodução

Na eleição seguinte, contra Juscelino Kubitschek, a UDN bancou o general Juarez Távora — um dos tenentes que ajudaram a colocar Getúlio Vargas no poder em 1930. Era a terceira disputa do período democrático. Mais uma vez, o udenismo perdeu.

Durante o governo de JK, o udenismo, parte dele, o lacerdista irmanado com militares, pregou o golpe e pressionou o presidente. Porém, com rara habilidade, inclusive dialogando com udenistas moderados, Juscelino Kubitschek sobreviveu e fez um governo qualitativo. A construção de Brasília teve a participação de udenistas, como o senador goiano Emival Caiado. Mais tarde, o político mineiro se tornou senador por Goiás — sem resistência do udenismo.

Em 1960, a UDN, mesmo sem filiá-lo, descobriu seu Jair Bolsonaro, quer dizer, a raposa política Jânio da Silva Quadros, o governador de São Paulo. Era um populista, quiçá de matiz autoritário, portanto não muito institucional, mas bancá-lo era o caminho mais fácil para, finalmente, arrancar a aliança PSD-PTB do poder.

A UDN ganhou a eleição, mas Jânio Quadros levou o poder. O presidente indicou ministros udenistas, mas governou com uma plataforma própria e, para a ira dos aliados conservadores, condecorou o argentino Ernesto Che Guevara, representante de Cuba. Sua política exterior independente era, por sinal, dirigida pelo udenista Afonso Arinos. Independente, no caso, era sinônimo de pragmática. O “primeiro” Bolsonaro entendeu que não podia articular apenas com os Estados Unidos — se a União Soviética poderia se tornar uma grande parceira comercial.

Pensando em voltar nos braços do povo e dos militares, Jânio Quadros renunciou em agosto de 1961, deixando os udenistas atônitos. Militares de direita, açulados ou não pela UDN, tentaram impedir a posse do vice-presidente, João Goulart. Mas, aceitando o parlamentarismo, que dividia e reduzia o poder de Jango, acabaram aceitando a posse do líder do PTB. Jânio Quadros e a UDN ficaram a ver navios.

Depois de perder o poder, dada a renúncia do aliado ou quase-aliados Jânio Quadros, o udenismo continuou articulando com generais, almirantes e brigadeiros. O partido se tornou uma espécie de PV — Partido das Vivandeiras.

Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, vivandeiras incansáveis, conspiraram, dia e noite, com generais, como Castello Branco, Odílio Denys, Luiz Carlos Guedes, Amaury Kruel (que simulava ser aliado de Jango), sempre pregando o golpe.

O golpe veio, começando em Minas, com Olímpio Mourão Filho (o mesmo que colaborou com Getúlio Vargas na articulação do golpe do Estado Novo, em 1937, ao produzir o Plano Cohen, que o governo atribuiu aos comunistas). Era o golpe da UDN. Mas o que os udenistas perceberam, mesmo ocupando cargos no governo de Castello Branco, Costa e Silva e outros generais, é que o golpe, se também era deles, era sobretudo dos militares. Carlos Lacerda, que pretendia disputar a eleição presidencial de 1965, acabou cassado.

O golpe de 64 significou também o fim da UDN, substituída pela Arena. A oposição concentrou-se no MDB. Quem não quis participar do pacto democrático, o pacto possível, resvalou para a guerrilha, abrindo a possibilidade de a ditadura se tornar ainda mais cruenta.

Classes médias e moralismo

A UDN tinha suas plataformas e lemas, como: “O preço da liberdade é a eterna vigilância” e “De nada valem as formas de governo, se é má a qualidade dos homens que nos governam”. Ao implicar com os líderes do PSL — a maioria deles sem tradição de liderança política real —, Bolsonaro está sugerindo que, em termos políticos, é baixa a qualidade deles?

No fundo, Bolsonaro quer um partido para chamar de seu, o que o PSL era, mas está se rebelando.

Por não ter cultura e linguagem refinada, Bolsonaro parece um néscio — o que não é. Pelo contrário, é astuto — tanto que, dado o fato de ser o “dono” da caneta, a que contrata e exonera, está provando que realmente manda. Basta verificar que “enquadrou” os ministros da Justiça, Sergio Fernando Moro, e da Economia, Paulo Guedes. Os dois ensaiavam certa autonomia, mas foram contidos e, agora, sabem que seus subordinados imediatos devem “obediência”, em primeiro lugar, não a eles, e sim ao presidente.

No entanto, quando pressiona o PSL, acuando-o — no fundo, o partido vai continuar como aliado do presidente, porque, se não persistir, acaba —, Bolsonaro está mandando recados políticos e articulando para 2022.

A UDN era o partido das classes médias, aquele que canalizava seu moralismo — que precisa ser retumbante para conquistar adeptos —, e ao admitir que pode se filiar ao partido, se recriado (o novo nome deve ser Conservadores), Bolsonaro estaria dando um recado ao seu eleitorado e aliados.

Mais do que o povão, as classes médias bancaram a vitória de Bolsonaro em 2018. As classes médias, insatisfeitas com o último governo do PT, o de Dilma Rousseff — que contribuiu para reduzir seu poder de compra, o consumo, e gestou uma recessão poderosa —, decidiram votar no candidato que poderia derrotar o lulopetismo. Bolsonaro foi mais uma arma das classes médias do que propriamente um agente seminal da mudança.

Inteligente e astuto, Bolsonaro percebeu que, além de João Doria, está surgindo um político, Luciano Huck, que pode ter apelo tanto entre o povão — o que o governador de São Paulo não tem, ao menos no restante do país — quanto nas classes médias.

Luciano Huck-Mr. Globo é uma incógnita, do ponto de vista eleitoral, mas é conhecido em todo o Brasil. Dado seu programa de televisão, que se tornou uma espécie de bolsa família televisual, passou a ser observado com atenção pelos brasileiros, notadamente os pobres, mas também sabe dialogar com as classes média e alta. Há vários grupos trabalhando seu nome. Bolsonaro, que examina pesquisas e é capaz de leitura instintiva da realidade, parece perceber que Huck é mais perigoso do que Doria. Este é “muito” São Paulo e aquele é “bem” mais Brasil. Os dois, por sinal, estão sendo criticados pelo presidente.

De uma maneira que parece não elaborada, Bolsonaro intui que a imagem de partido fisiológico está “colando” no PSL. Se não consegue tomá-lo, para uma depuração, o melhor caminho é sair. O presidente, astutíssimo, sabe que está se preservando… Frise-se que, se criado, o Conservador ou Conservadores contribuirá, decerto, para enfraquecer o DEM do presidente da Câmara dos Deputados , Rodrigo Maia — possível aliado de João Doria em 2022.