O Ministério Público, por intermédio do promotor de justiça Juliano de Barros, cobra que a Construtora Consciente refaça o Estudo de Impacto de Vizinhança. O primeiro EIV contém assinaturas supostamente falsificadas

Ilézio Inácio Ferreira (rindo), dono da Construtora Consciente, e o promotor de justiça Juliano de Barros: o Ministério Público Estadual exige que seja feito um novo Estudo de Impacto de Vizinhança e um Estudo de Impacto de Trânsito | Fotos: Divulgação
Ilézio Inácio Ferreira (rindo), dono da Construtora Consciente, e o promotor de justiça Juliano de Barros: o Ministério Público Estadual exige que seja feito um novo Estudo de Impacto de Vizinhança e um Estudo de Impacto de Trânsito | Fotos: Divulgação

Num discurso feito na Câmara dos Comuns, em 11 de setembro de 1947, Winston Churchill — o primeiro-ministro da Inglaterra que foi decisivo para os Aliados derrotarem o nazismo da Alemanha de Adolf Hitler — assinalou: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. O político britânico poderia ter acrescentado que a democracia, um valor universal, não pode ser vista como etapa para nada — porque é um fim — e tampouco pode ser vista pelos cidadãos como algo decorativo, proforma.

A democracia é como um edifício, que precisa de uma base sólida para sustentar-se de pé. Seu alicerce é a convivência legalista, portanto respeitosa, entre os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Em países recém-saídos de ditaduras, como o Brasil, há a tendência de um poder tentar sobrepor-se ao outro, por isso fala-se tanto em “absolutismo presidencial”. Ante um Executivo com poderes hipertrofiados, às vezes forçando as leis, para justificá-los, é fundamental que Legislativo e Judiciário se mantenham autônomos e sólidos. O Legislativo, dado certo fisiologismo, no geral tem se comportado mal, não raro como apêndice do Executivo. O Judiciário, porém, tem se apresentado de maneira independente, com uma firmeza surpreendente no país do “toma-lá-dá-cá” ou do “é dando que se recebe”.

O que faz um país pulsar como um ser vivo não é apenas a relação qualitativa entre os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Sem uma sociedade ativa, com forte poder de pressão — por intermédio de alguns instrumentos, como a Imprensa e as ações nas ruas —, nenhuma nação pode ser qualificada de desenvolvida. A noção de desenvolvimento não pode ser buscada tão-somente nos valores do Produto Interno Bruto. A China tem o segundo maior PIB do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, mas não é tão desenvolvida quanto o Japão, a Alemanha, a França e a Inglaterra — terceiro, quarto, quinto e sexto maiores PIBs globais.

Por dois motivos, ao menos. Primeiro, a China tem 1,3 bilhão de habitantes, mas o mercado de consumo (entendido de maneira ampla) do país inclui no máximo 500 milhões. A maioria, portanto, vive à margem, alimentando-se muito mal e com escasso acesso a educação de qualidade. A Finlândia, país menor do que Goiás e com um PIB de 250 bilhões de dólares — o da China passa de 8 trilhões de dólares —, é, em termos de desenvolvimento, muito superior ao da terra do filósofo Confúcio e do escritor Mo Yan (prêmio Nobel de Literatura). O que diferencia a Finlândia da China? A sociedade da primeira é sólida, com um poder de pressão extraordinário, e, por isso, exige educação de alta qualidade. Na China o que se tem é um Estado hipertrofiado e uma sociedade tentando renascer ou respirar.

A sociedade civil tem um poder que às vezes nem imagina que tem. Mas este poder só existe quando é manifesto. Muitas vezes, além das movimentações das ruas, a opinião da sociedade é expressa pela Imprensa, que, se atenta, pode corresponder aos anseios dos cidadãos. A Imprensa leva, muitas vezes, os poderes a agir, numa influência benéfica, porque retira os representantes, digamos, sociais de uma espécie de zona de conforto. Observe-se que a queda de Fernando Collor e as denúncias do mensalão e do petrolão foram possíveis, em larga medida, devido a uma Imprensa ativa, infensa ao controle dos que estão no poder.

Mas não se pode hipertrofiar os poderes da Imprensa, porque não deve ser colocada acima da sociedade, para não transformá-la numa justiceira, aquela que “resolve tudo”. Por isso é seminal perceber que há o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual (além da Polícia Federal, que tem se comportado de maneira exemplar).

Um Ministério Público isento, representando a sociedade de forma objetiva e legalista, acima das pressões dos poderosos, é um dos fatos mais importantes da redemocratização do país, especialmente depois da Constituição de 1988. Só critica a ação do Ministério Público com extrema dureza — sem ressaltar que todas as instituições têm problemas pontuais, às vezes mais de alguns de seus integrantes do que das instituições em si — aquele que não respeita as leis e rejeita a legalidade democrática.

Nexus Shopping & Business

Como a construção do Nexus Shopping & Business (veja uma projeção) ainda não começou e, como há uma série de ilegalidades, é provável que o empreendimento enfrente alguns problemas com a Justiça e sua edificação seja dificultada | reprodução
Como a construção do Nexus Shopping & Business (veja uma projeção) ainda não começou e, como há uma série de ilegalidades, é provável que o empreendimento enfrente alguns problemas com a Justiça e sua edificação seja dificultada | reprodução

Dois empresários competentes e empreendedores, Ilézio Inácio Ferreira, dono da Construtora Consciente, e José Batista Júnior (Júnior Friboi), proprietário da JFG Empreendimentos, decidiram construir um megaempreendimento, o Nexus Shopping & Business — misto de torres corporativas, salas comerciais, hotel e shopping —, entre as avenidas 85 e D, no Setor Marista, em Goiânia. Trata-se de um arrojado investimento de 550 milhões de reais. De fato, se posto em funcionamento, é um elemento do crescimento econômico, porém não necessariamente do desenvolvimento.

Crescimento econômico e desenvolvimento são vitais para qualquer sociedade. Entretanto, o crescimento não pode subordinar inteiramente o desenvolvimento. Se o projeto de uma construtora civil vai prejudicar os interesses coletivos — por exemplo, dificultando o trânsito em determinada região da cidade —, beneficiando tão-somente duas empresas, deve ser repensado. Uma obra da magnitude do Nexus (Henry Miller por certo ficaria assustado com a nomenclatura) beneficia não exatamente a sociedade, e sim Ilézio Inácio Ferreira e Júnior Friboi. Se beneficiasse a sociedade de modo amplo — melhorando o trânsito na região ou se se propusesse a criar um parque ambiental (ainda que pequeno) — seria crescimento com desenvolvimento.

Estudo de Impacto de Vizinhança

Obras gigantescas como o Nexus Shopping & Business, que muda e, até, desorganiza a rotina de um bairro — às vezes criando problemas para outros bairros, como congestionamentos —, para serem construídas, precisam de um Estudo de Impacto de Vizinhança. A Construtora Consciente encomendou um EIV à Construtora Milão.

Repórteres do Jornal Opção Online examinaram o EIV do Nexus Shopping & Business atentamente e perceberam alguns problemas e, por isso, decidiram consultar os vizinhos do “futuro” empreendimento. Após suspeitar de algumas assinaturas dos moradores ou de pessoas que trabalham em imóveis no Setor Marista — há indícios de que foram feitas por uma única pessoa —, a repórter Sarah Teófilo, numa investigação exaustiva, descobriu fatos assustadores. Pessoas que teriam sido pesquisadas, com seus nomes anotados pela Construtora Milão, jamais foram entrevistadas. Suas assinaturas possivelmente foram falsificadas.

Para tornar a informação mais precisa, o jornal recorreu ao perito criminal Juscélio Luiz, especializado em documentoscopia. O perito concluiu, num exame preliminar, que há mesmo possibilidade de falsificação — o que é crime. Depois de um exame detalhado, Juscélio Luiz concluiu que a probabilidade de as assinaturas teriam sido feitas pela mesma pessoa é de pelo menos 70%. A impressão cristalizada é a de que a pesquisa foi feita numa sala refrigerada da Construtora Milão. Impressão, insistamos, ainda que cristalizada.

Os indícios de que o Estudo de Impacto de Vizinhança foi fraudado — não se sabe exatamente por quem, embora a Construtora Milão seja a suspeita imediata — são grandes. A denúncia publicada pelo Jornal Opção alcançou alta repercussão na sociedade civil — arquitetos e urbanistas se posicionaram nas redes sociais —, na Câmara Municipal de Goiânia e no Ministério Público Estadual.

O Ministério Público, por intermédio do promotor de justiça Juliano de Barros Araújo, vai cobrar da Construtora Consciente — que, na Câmara Municipal, admitiu falhas no trabalho da Construtora Milão — que faça novo Estudo de Impacto de Vizinhança.

O promotor Juliano de Barros Araújo, que conhece os problemas urbanos de Goiânia como poucos e é de uma seriedade exemplar, sublinha que o EIV feito pela Construtora Milão, a pedido da Construtora Consciente, é “frágil”. Portanto, como anotou reportagem de Alexandre Parrode, é “insuficiente para mensurar as consequências reais da construção na região”. O EIV “não apresenta um diagnóstico, nem um prognóstico efetivo do impacto”, frisou o promotor de justiça.

Juliano de Barros Araújo ressaltou que o EIV encomendado pela Construtora Consciente “não identificou totalmente quem são os pesquisados”. Nesta semana, o promotor deve convocar integrantes da Prefeitura de Goiânia e da empresa de Ilézio Inácio Ferreira para reforçar a recomendação de que é preciso fazer “correções no Estudo”. O promotor de justiça deveria sugerir, também, que o Estudo de Impacto de Vizinhança seja feito pela Prefeitura de Goiânia ou, quem sabe, pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo ou pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura. Há uma máxima célebre que diz: “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Tudo indica que Pompéia, mulher do dirigente romano Júlio César, era honesta, mas não parecia. Portanto, como acreditar num Estudo de Impacto de Vizinhança encomendado pela Consciente? Se for feito pela Consciente, mesmo que seja decente, sempre ficará a dúvida.

O representante do Ministério Público vai sugerir a antecipação do Estudo de Impacto de Trânsito (EIT). Recentemente, durante o lançamento do empreendimento, a Avenida D ficou engarrafada durante vários minutos. Se o Nexus Shopping & Business for mesmo construído, quando estiver funcionando a todo vapor, os engarrafamentos serão maiores — o que tornará inútil a trincheira construída pelo ex-prefeito Iris Rezende por vários milhões de reais.

A partir do que foi escrito acima, o leitor certamente está, neste momento, fazendo a pergunta certa: o Nexus Shopping & Business será construído de qualquer maneira, independentemente de se concluir que o local — residencial e apropriado para empreendimentos comerciais de menor porte — não é adequado para uma obra de tal dimensão? Se Ilézio Inácio Ferreira não atender às recomendações do Ministério Público, com as quais teoricamente concorda, o alvará de construção do Nexus Shopping & Business pode ser cassado. Daí a obra pode não sair do papel. A função da Imprensa e do Ministério Público não é, evidentemente, torpedear negócios privados, mas, se há ilegalidades flagrantes, elas precisam ser corrigidas — até para servir de exemplo para outros empreendedores.

Parte da Imprensa — a outra parte, talvez devido à crise econômica, está mais preocupada em colher anúncios —, o Ministério Público de Goiás e a Câmara Municipal de Goiânia agiram e estão agindo, denunciando e exigindo a correção das falhas. Resta à sociedade (há uma ação popular contra a construção do Nexus devido às assinaturas supostamente falsificadas) — com seu imenso poder de pressão, às vezes apenas adormecido — e à Prefeitura de Goiânia decidirem o que querem para Goiânia. Querem uma cidade na qual a lei é a das construtoras ou uma cidade na qual as leis são aquelas que todos seguem e respeitam? Goiânia tem ou não tem donos? Os donos são seus habitantes — todos eles — ou construtores como Ilézio Inácio Ferreira?

A democracia, deveriam saber Ilézio Inácio Ferreira e Júnior Friboi, possivelmente admiradores do notável Winston Churchill (se não forem, deveriam ler “Churchill”, a estupenda biografia escrita por Roy Jenkins), não é, em definitivo, uma peça decorativa. No meio do caminho, apesar dos tijolos de algumas construtoras, há uma sociedade viva, uma Imprensa ativa, vereadores engajados em melhorar a cidade e promotores sérios como Juliano de Barros Araújo.