A jornalista e escritora Milly Lacombe não estará na abertura da 11ª edição da Festa Litero Musical (Flim), em São José dos Campos. O motivo? Uma fala polêmica sobre o conceito de família tradicional, retirada de contexto, viralizada nas redes sociais e transformada em combustível para ataques da extrema-direita. O cancelamento de sua participação reacende um debate urgente: até onde vai a liberdade de expressão em tempos de intolerância?

Milly Lacombe, uma das vozes mais marcantes do jornalismo esportivo e da literatura brasileira contemporânea, foi desconvidada da Flim após declarações feitas em julho no podcast “Louva a Deusa”. No episódio, ela criticou o modelo da família tradicional brasileira, chamando-o de “núcleo produtor de neurose” e “base do fascismo”. Trechos da entrevista foram recortados e disseminados nas redes, gerando uma onda de ameaças que tornaram sua presença no evento um risco à segurança.

“Não poder participar de uma feira literária é uma derrota para todos que lutam por um mundo da livre expressão”, lamentou Milly em vídeo publicado nas redes sociais.

Nascida no Rio de Janeiro, Milly Lacombe foi uma das primeiras mulheres a comentar futebol na televisão brasileira, com passagens por SporTV, Globo, Record e Revista Trip. Hoje, escreve para o UOL e se dedica também à literatura e ao roteiro. É autora de seis livros, entre eles Segredos de uma Lésbica para Homens e O Ano em Que Morri em Nova York, obras que exploram identidade, afeto e resistência.

Na TV, colaborou como roteirista em programas como Amor & Sexo e diversas produções do GNT. Sua escrita é marcada por uma sensibilidade afiada e uma postura crítica diante das estruturas sociais que marginalizam corpos dissidentes.

O trecho polêmico, segundo Milly, foi manipulado e descontextualizado. Ela afirma que sua fala abordava a importância de acolher crianças LGBTQIAP+ e repensar o papel da família como espaço de afeto e inclusão, não como um modelo rígido que exclui e silencia.

“Eu cresci numa família muito tradicional e entendi cedo que era uma criança LGBT+. Sei o que essa sociedade faz com quem não se encaixa nesse molde. Minha crítica é a essa estrutura que exclui, não ao afeto familiar”, explicou.

A repercussão foi tamanha que a AFAC, organizadora da FLIM, decidiu cancelar sua participação “em comum acordo com a convidada”, alegando preocupação com a integridade dos envolvidos. A decisão, embora compreensível sob o ponto de vista da segurança, levanta uma questão inquietante: estamos cedendo espaço à intolerância?

A mesa de abertura da Flim, que teria Milly ao lado dos escritores Xico Sá e Cuti, prometia ser um encontro potente sobre identidade, alteridade e resistência. O tema era “Nós e o Outro”. Ironicamente, o mesmo que acabou sendo silenciado.

“Entramos nessa luta por justiça social, não por vitória imediata. Seguimos em busca de um mundo mais justo, mais igualitário”, disse Milly, encerrando seu vídeo com esperança.

O episódio não é apenas sobre uma jornalista desconvidada. É sobre o espaço da literatura como território de ideias, sobre o papel dos eventos culturais em tempos de polarização, e sobre o risco de normalizarmos o silenciamento de vozes dissidentes.

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