Após 35 anos, um instrumento de reparação e de reconhecimento da contribuição da população negra para a construção da identidade nacional brasileira pode sair do papel. Esse é o objetivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) ao propor uma minuta de portaria, que visa regulamentar o procedimento de tombamento constitucional de documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. A proposta foi apresentada na última terça-feira, 1º, em reunião interministerial, que contou com a presença da ministra da Cultura, Margareth Menezes, e do presidente do Iphan, Leandro Grass.

A portaria busca criar um mecanismo de tombamento distinto desses bens – mais célere e simplificado do que o chamado “tombamento administrativo”, que é instruído pelo Decreto-Lei no 25, de 1937 – ao recuperar uma ideia que já estava presente no texto da Constituição Federal desde 1988. Mas que, devido a uma história de negligência e racismo institucional do Estado brasileiro, ainda não foi concretizada.

A reunião foi a primeira vez em que a minuta da portaria, elaborada pelo Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (DEPAM) do Iphan, foi apresentada a representantes de outros órgãos relacionados ao tema dos quilombos, como o Ministério da Cultura (MinC), o Ministério da Igualdade Racial (MIR), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Cultural Palmares (FCP). Segundo a coordenadora-geral de identificação e reconhecimento do Depam, Vanessa Maria Pereira, os próximos passos serão receber contribuições ao texto desses e de outros órgãos interessados – incluindo, ainda, o Ministério dos Direitos Humanos –, submeter a proposta a uma consulta pública aberta a toda a sociedade e, se tudo correr como planejado, ver a Portaria ser publicada no Diário Oficial da União no dia 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.

Para a coordenadora, a regulamentação do tombamento constitucional pode representar uma “janela de oportunidade” que o País tem para reparar um atraso de décadas e implantar uma agenda antirracista nos mecanismos de reconhecimento patrimonial brasileiro, indicativa de uma nova postura do Iphan e do Governo Federal já no seu primeiro ano de gestão. “Esse novo instrumento coloca esses territórios de resistência negra na narrativa da identidade nacional com o mesmo patamar de importância de outros bens tombados”, disse Vanessa.

Histórico de racismo patrimonial

A portaria se fundamenta no parágrafo 5o do Artigo 216 da Constituição Federal, segundo o qual “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. E, no entanto, como apontou a equipe do Depam na apresentação da minuta, apesar da determinação expressa na Carta Magna, a interpretação do texto pelo Estado brasileiro historicamente dificultou a efetivação do estatuto de patrimônio aos quilombos. Não por acaso, de 18 processos abertos para tombamento de quilombos desde a década de 1990, até hoje apenas um – o do Quilombo Ambrósio, em Ibiá (MG), foi deferido.

De acordo com o historiador e arquiteto Raul Maravalhas, da Coordenação-Geral de Identificação e Reconhecimento do Depam, por muito tempo, vigorou o entendimento oficial de que o tombamento de quilombos só seria aplicável a sítios onde fossem encontrados vestígios materiais de extintas ocupações quilombolas e a quilombos que houvessem existido apenas até a Lei Áurea, em 1988. Como se, após a abolição da escravidão, quilombos houvessem deixado de ser quilombos. Na prática, tratava-se de um “marco temporal” que deixava de fora quilombos ativos, que continuaram existindo como locais de manutenção e reprodução de modos de vida característicos, e também de resistência – se não mais à escravidão, mas a um Estado que permaneceu institucionalmente racista. “Esse entendimento não era satisfatório, prova disso é que continuaram a surgir novas discussões sobre o tema, mas sem resultados”, disse Maravalhas, referindo-se a grupos de trabalho e produções acadêmicas que, nas últimas décadas, buscaram “ressignificar o fenômeno quilombola como um fenômeno contemporâneo”.

O que a nova gestão do Iphan propõe, assim, é trazer esse olhar para o texto de uma portaria que reconhece o valor patrimonial tanto de sítios não mais ocupados por remanescentes de quilombos, mas com vestígios materiais dessa ocupação, quanto por sítios ainda ocupados, nos quais se veem práticas culturais vigentes dessas comunidades. “Entendemos que não é opção dos órgãos patrimoniais reconhecer ou não quilombos como patrimônio; é apenas fazer valer o que está escrito na Constituição”, pontuou Maravalhas.

E é essa mudança interpretativa, aliás, que pode ser a chave para destravar um reconhecimento devido há já bastante tempo. Tombamento Constitucional Segundo Vanessa Maria Pereira, a expectativa é que o novo instrumento seja uma alternativa para os 17 quilombos que ainda esperam o tombamento desde a década de 1990 – cujos processos chegaram a ser indeferidos pela última gestão do Iphan e só agora estão sendo reavaliados, como prioridade –, além de multiplicar o número de solicitações por outras comunidades pelo Brasil, que conta com 1,32 milhão de quilombolas residentes em 1.696 municípios, de acordo com o último Censo.

O motivo para isso, explica a procuradora federal do Iphan, Mariana Karan, que ofereceu consultoria jurídica à equipe do Depam na elaboração da minuta, é o fato de que o novo modelo dispensa a maior parte dos trâmites burocráticos envolvidos no procedimento tradicional de tombamento segundo o Decreto-Lei. “No caso do tombamento constitucional, não existe análise de valoração de um bem que já está reconhecido como patrimônio desde a Constituição. Não é preciso passar por um conselho consultivo.

Ao Iphan, cabe apenas um ato de natureza declaratória: verificar se alguns requisitos foram atendidos e fazer o reconhecimento automático da Constituição”, diz a procuradora. “Me sinto feliz em contribuir com a segurança jurídica para uma minuta que considero inovadora, ousada e que busca uma nova forma de tombar, mais direta e objetiva, mas com proteção tão forte quanto a do decreto-lei.”

Momento de reconstrução

Para o procurador federal e estudioso de políticas patrimoniais voltadas para as comunidades quilombolas Paulo Fernando Soares Pereira, que acompanhou a reunião de apresentação da minuta de portaria, a proposta se opõe a “uma tradição brasileira de prestigiar apenas o que tem viés europeu” nos processos de tombamento, como igrejas, casas de representantes da elite e outros bens “que decorrem de uma história ligada às branquitudes”. “Isso vem de um discurso que pressupõe que negros, e também indígenas, não teriam legado patrimonialidades à narrativa da construção da identidade nacional”, afirmou o procurador. “Em termos práticos, a portaria representa uma espécie de antirracismo patrimonial, que vai tirar a população negra do ‘quartinho de empregada’ e do ‘puxadinho’ ´patrimonial a que foi relegada”.

Para o coordenador-geral de regulação de territórios quilombolas do Incra, Oriel Rodrigues de Moraes, ele próprio representante da comunidade quilombola de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira (SP), a iniciativa atende a um anseio antigo dos remanescentes de quilombos. “Sabemos como é importante e é nosso sonho poder regularizar [o estatuto de patrimônio tombado] de forma mais rápida possível. Tenho certeza de que os quilombolas do Brasil parabenizam essa iniciativa – que é um dever constitucional, não é um favor.”

“Palmares e Iphan finalmente se encontraram”, disse, por sua vez, Edi Freitas, representante da Fundação Cultural Palmares presente à reunião, notando que a compreensão das duas entidades sobre o valor patrimonial dos quilombos está afinada.

Já para o secretário de políticas quilombolas do Ministério de Igualdade Racial, Ronaldo dos Santos, a ideia da portaria é recebida pelo órgão com um misto de aflição e alegria. “A Constituição Federal de 1988 nos trouxe desafios que, em 2023, a gente ainda não conseguiu sequer ajustar a estrutura de enfrentamento, não digo nem superar”, disse ele, pontuando que o governo atual tem a chance de definir um ponto de inflexão. “Isso nos dá certa aflição, mas também alegria de que estamos agora no tempo certo, no lugar certo, com a oportunidade de poder fazer.”

É a mesma visão verbalizada tanto pelo presidente do Iphan, Leandro Grass, para quem a iniciativa representa “um projeto estratégico alinhado às diretrizes do novo governo, no sentido de priorizar todas as agendas da população negra brasileira”. E também pela ministra da Cultura Margareth Menezes, para quem o atual governo está “estabelecendo um novo olhar para correções históricas e para o estabelecimento de relações mais justas”: “Vamos acreditar neste momento novo de reconstrução”, disse a ministra.