Acolhimento para corpos marginalizados: conheça a cena do Ballroom em Goiânia
17 julho 2024 às 12h33
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Nos últimos anos, a cultura Ballroom se tornou mais conhecida do grande público através dos meios mais tradicionais da comunicação. Séries como Pose e Rupaul’s Drag Race trabalham elementos dessa cultura, na música temos Madonna e Beyoncé trazendo pontos dos famosos bailes para suas apresentações, e no Brasil, recentemente, a atuação do ator Reynaldo Gianecchini performando vogue (estilo de dança comum nos bailes) no musical “Priscilla, a rainha do deserto”, chamou a atenção dos internautas. O Jornal Opção conversou com membros da comunidade da Ballroom em Goiânia para entender a cena para além daquilo que é mostrado nas telas.
Em entrevista exclusiva, Flávys A’trois, mãe da casa A’trois, explica um pouco mais da cultura, que vai muito além dos bailes que ficaram famosos. “Uma cultura que começa ali com as suas raízes na década de quarenta, se ramifica na década de setenta e se populariza na década de noventa”, explicou. As origens mais distantes da cena estão ligadas às populações marginalizadas da sociedade norte-americana: negros, travestis, gays afeminados, lésbicas e pessoas soropositivo. A mãe da primeira casa do estado de Goiás conta que a Ballroom é sobre acolhimento e crescimento pessoal e profissional de todos esses corpos marginalizados.
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Flávys explica que dentro da cultura do Ballroom existem os bailes, momentos de celebração aberto a todos, e existem as casas, espaços permanentes para acolhimento e formação desses indivíduos socialmente excluídos. Nos bailes, acontecem as batalhas de vogue (modalidade de dança), que ficaram famosas pelas obras audiovisuais sobre o tema. Participam dos bailes pessoas vinculadas às casas e pessoas conhecidas como 007, que não participam de nenhuma house, mas se juntam aos bailes, seja pelas performances, pelo público ou pelas músicas.
Dentro das casas, os pais e as mães acolhem jovens (em sua maioria) com identidades de gênero e sexualidades não normativas ou em alguma outra situação de vulnerabilidade social, com o intuito de trabalhar a descoberta enquanto pessoa com identidade que foge à norma social, além de preparar esse indivíduo para uma vida profissional ativa.
Origens
A mãe da Casa A’trois explica que “aqui no Brasil, a cultura Ballroom ela se estrutura em 2015 e a gente entende de fato que não é só a prática das danças”. Em Goiânia, a cultura enquanto prática social e política de acolhimento de corpos marginalizados começa com a criação da A’trois, em 2017.
No intuito de consolidar a casa, Flávys e os outros dois fundadores da A’trois (Lucas Syuga e Gleyde Lopes) realizavam viagens para outras capitais. Após o retorno a Goiânia, o trio ministrava aulas e formações gratuitas sobre a Ballroom, seja sobre a construção dos bailes, na organização das casas ou na forma de auxiliar e cultivar a descoberta das identidades não normativas. “A gente sempre teve muita essa missão de ocupar os espaços públicos”, resumiu.
Em 2018, a House of A’trois é fundada. Flávys explica que o Ballroom é “esse movimento social que ao mesmo tempo que está nesse lugar de acolhimento, também está nesse lugar político”. Pessoas LGBTQIAPN+ com problemas após se assumirem, grupos com dificuldade de acesso à educação e à profissionalização e indivíduos soropositivos (entre outras figuras que fogem à norma) são o foco desses espaços.
“Hoje, a nossa casa tem pouco mais de vinte e seis pessoas, mas aqui em Goiânia a gente já tem outras várias casas acontecendo”, explicou. Independente dos caminhos profissionais que seus filhos, filhas e filhes decidam seguir, a mãe afirma: “eu uso do meu acesso para profissionalizar outras pessoas”. Na sequência, Flávys explica que cada membro da casa se envolve de formas diferentes e contribuem como podem. Ela diz: “tem filhas e filhos meus que no cotidiano trabalham de CLT, mas aí quando rola um baile está ali pra se mostrar de uma outra forma”.
Os bailes
Flávys explica que as performances que acontecem nos bailes são divididas em categorias, e os participantes devem impressionar os jurados seguindo determinados critérios. Algumas categorias são exclusivas para pessoas negras, outras têm foco na beleza do rosto, outras colocam a atenção no corpo, e assim vai. A ideia é que cada categoria realce um tipo específico de beleza dos corpos plurais que ocupam esses espaços. “São várias categorias para vários formatos de copos”, resumiu
A mother A’trois explica a origem de uma das categorias mais populares nos bailes, “face” (rosto). “Durante anos e décadas, nós pessoas pretas, fomos julgadas como pessoas feias e tudo mais. Então essa categoria [face] ela vem desse lugar pra gente exaltar os nossos traços”, exemplificou. “A cultura Ballroom ela está também em prol da questão dos direitos civis, mas para além disso também cuidar do corpo, do psicológico, do emocional e do bem-estar das pessoas ali dentro daquela cultura”, resumiu a mãe da Casa A’trois.
O crescimento da cultura é tendência inevitável. A participação da comunidade da Ballroom cresce e ocupa mais espaços políticos e sociais. Flávys compartilha parte dos avanços: “hoje em dia, aqui no estado de Goiás, a gente já está tendo vários projetos passando através dos editais municipais, estaduais e até editais nacionais”. Existe ainda toda uma articulação com casas de outras capitais, que por sua vez trazem influências da comunidade internacional.
Filha
Ao Jornal Opção, Ysa Cardoso, Professora Licenciada em Dança e uma das filhas de Flávys, compartilha um pouco da sua experiência dentro da A’trois. “Ballroom pra mim, primeiramente, é um espaço de celebração e acolhimento de vidas que são constantemente marginalizadas pela sociedade”, afirmou. Para ela, o cotidiano nas casas traz ferramentas de auto afirmação “rumo a consolidação da diversidade, da individualidade, da expressão artística, e sobretudo, também, da profissionalização desses corpos”.
Durante sua formação do ensino médio no IFG, Ysa encontrou Flávys em aulas de dança. “Sempre fui fã e admiradora dela, e isso me levou a querer saber mais de vogue e acompanhar sua trajetória artística”, explica a filha. “ Por frequentarmos alguns mesmos espaços e eventos artísticos consegui me aproximar mais dela e também fui conhecendo a cena goiana, e isso me transbordou”, resumiu.
Quando questionada sobre a relação com os membros da casa, a professora destaca a importância de cada um para sua trajetória pessoal e profissional. “Eu acredito muito naquilo que dizem que na verdade família se escolhe, e escolher e ter sido escolhida pela A’trois foi um ponto de mudança muito importante na minha vida”, sintetizou. Apesar dos conflitos com a família biológica, Ysa fala orgulhosa da família que encontrou na A’trois “que reflete amor em segurança, oportunidades, lazer, inspiração, confiança e força pra caminhar”.
Por fim, a professora reforça o papel político da Ballroom. Ysa reafirma o peso dos preconceitos sociais ligados às identidades de gênero e sexualidades não normativas, que muitas vezes representa barreiras no ambiente profissional, acadêmico e pessoal. Para ela, quando um membro da casa “ocupa um lugar que nos é negado sócio historicamente, de certa forma, virá um ganho para toda comunidade”.
007
Leandro Leon, conhecido como Gyndoll 007, é um dos participantes da cena da Ballroom que ainda não está vinculado a uma casa, mas é ativo nos bailes. Conheceu o contexto da Ballroom através de um reality show chamado “Legendary”, onde casas dos Estados Unidos competem em performances de Vogue (estilo de dança famoso dos bailes) por um prêmio de US$ 100 mil. Como muitos que chegam a cena do ballroom através de programas, Gyndoll explica como começou a participar das celebrações: “Tive um interesse enorme em conhecer mais dessa cultura e me envolver de certa forma com a cena local. Através de uma amiga drag chamada Lara Precious fui inserido nessa comunidade”.
Relembrando o contexto de surgimento do Ballroom na época da epidemia de AIDS nos Estados Unidos, Gyndoll reforça o caráter político da cena Ballroom. “Para mim, ter o privilégio de participar desse movimento num país que mais mata pessoas LGBT+ é sim político, e ajudar no crescimento dessa comunidade sempre vai ser um ato de resistência”, concluiu.