A USP (Universidade de São Paulo) anunciou melhorias na avaliação das cotas raciais para seus cursos, após um estudante, Glauco Dalalio do Livramento, de 17 anos, ter recorrido à Justiça para assegurar sua vaga na faculdade de direito. Glauco foi aprovado no vestibular por meio das cotas raciais ao se autodeclarar pardo.

No entanto, durante uma avaliação por videoconferência, a comissão considerou que ele não se enquadrava nessa categoria. Glauco obteve uma liminar que garantiu a restauração de sua vaga. O reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti, disse que uma das medidas para melhorar a avaliação do sistema de cotas será entrevista presencial com todos os candidatos. A USP deverá pagar passagem para os alunos de fora de São Paulo.

Outro caso semelhante aconteceu em no Ceará. No início do ano, um estudante que se autodeclarou pardo foi desclassificado na avaliação de cotas da Universidade Estadual do Ceará (Uece) para o curso de medicina no vestibular de 2023.2. João Victor Uchôa Sales passou nas vagas destinadas às ações afirmativas, mas a Comissão de Heteroidentificação da instituição determinou que ele não se enquadrava como pardo. Posteriormente, João Victor prestou o vestibular para Ciências Biológicas na mesma universidade, sendo aprovado pela banca de avaliação.

João Victor Uchôa Sales. | Foto: Redes Sociais

A jovem Livian Malfará de Mesquita Dias, de 18 anos, perdeu a vaga para engenharia da computação na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) por não ser considerada parda pela Comissão de Verificação de Autodeclaração que a entrevistou presencialmente. Ao ser convocada, enviou os documentos pedidos, inclusive fotos do rosto e de corpo inteiro e viajou para Vitória (ES) para fazer a entrevista presencial, mas banca universidade considerou que ela não possuía características do fenótipo negro.

Livian Malfará de Mesquita Dias. | Foto: Redes Sociais

Importância da Lei de Cotas

A Lei de Cotas no Brasil refere-se à legislação que estabelece a reserva de vagas para determinados grupos sociais em diferentes contextos, como empregos e instituições de ensino. Existem diferentes leis de cotas no país, abordando questões específicas:

  • Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência (Lei nº 8.213/1991): Esta lei determina que empresas com 100 ou mais funcionários devem destinar uma porcentagem de suas vagas a pessoas com deficiência. A porcentagem varia de acordo com o tamanho da empresa.
  • Lei de Cotas Raciais nas Universidades (Lei nº 12.711/2012): Conhecida como a Lei de Cotas nas Universidades, estabelece a reserva de vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, levando em conta critérios raciais e sociais.
  • Lei de Cotas nas Empresas (Lei nº 12.990/2014): Esta lei reserva uma porcentagem de vagas em concursos públicos para negros e pardos, visando promover a igualdade racial no mercado de trabalho.

A Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei de Cotas Raciais nas Universidades, foi sancionada no Brasil em 2012 com o objetivo de promover a inclusão de estudantes negros, pardos e indígenas no ensino superior. Essa legislação estabelece a reserva de, no mínimo, 50% das vagas em instituições federais de ensino técnico e superior para estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Dentro da porcentagem reservada para estudantes de escolas públicas, metade das vagas é destinada a estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, seguindo a classificação utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A seleção dos candidatos é feita com base na autodeclaração de pertencimento ao grupo racial mencionado, sendo um critério adotado no ato da inscrição no processo seletivo.

Além das cotas raciais, a lei prevê a reserva de vagas para estudantes de baixa renda, levando em consideração critérios socioeconômicos. É importante notar que essa legislação se aplica especificamente às instituições federais de ensino técnico e superior no Brasil. Outras instituições de ensino e estados podem adotar políticas semelhantes, mas a implementação pode variar. A Lei de Cotas Raciais nas Universidades busca promover a diversidade e a igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior no país.

Carlos André – Professor, linguista e advogado

Carlos André, professor, linguista e advogado. | Foto: Divulgação

O professor, linguista e advogado Carlos André, que se identifica como um homem negro, compartilhou suas perspectivas sobre a impactante influência da legislação de cotas sociais nas universidades do país. Ao abordar a lógica da lei de cotas, ele destacou que, embora inicialmente proposta como uma medida social, ela resultou em uma transformação evidente na composição estudantil, especialmente nas instituições de ensino superior de alta qualidade.

Ele enfatizou que, antes da implementação da lei de cotas sociais, as universidades brasileiras não refletiam a diversidade social do país, com uma desigualdade notável entre classes financeiras. O linguista salientou que a lei de cotas, apesar de não ser exclusivamente racial, teve um impacto direto na representação negra nas instituições, devido à histórica marginalização desse grupo em centros universitários de prestígio.

“É fundamental observar que ela não é, como muitos pensam, uma lei de cotas raciais, mas sim uma lei de cotas sociais. Basta ler a lei para perceber isso. No entanto, o efeito natural desse programa acabou se tornando também um efeito de cotas raciais, devido às condições históricas dos negros no Brasil”, afirmou Carlos André.

Ao discutir a aplicação prática da lei de cotas, o professor expressou preocupações sobre a banca de retroidentificação, ressaltando a importância de revisitar casos concretos que evidenciam possíveis tendências de racismo estrutural. Ele enfatizou a relevância da percepção individual sobre a identidade racial e levantou dúvidas sobre a eficácia das bancas examinadoras na autodeclaração.

Quanto à composição das comissões que determinam a cor dos candidatos, o entrevistado destacou que, de acordo com a legislação, essas comissões devem incluir brasileiros da instituição, com a participação de negros, mas também podem envolver pessoas de outras raças. Ele observou que a lógica predominante é consensual, mas reconheceu a falta de dados sobre a composição racial das comissões.

Ao finalizar a entrevista, o professor enfatizou a importância do conhecimento como ferramenta para superar as polarizações políticas. Ele argumentou que uma educação técnica, alinhada aos princípios constitucionais, pode contribuir para uma sociedade mais equitativa. Além disso, ele ressaltou que as cotas devem ser vistas como uma medida temporária de reparação, alertando para a necessidade de o país se reorganizar estruturalmente para alcançar uma verdadeira prosperidade para todos os brasileiros.

Cláudio Pedrosa – Psicólogo e Integrante do Comitê de Igualdade Racial do TJGO

Cláudio Pedrosa, psicólogo e Integrante do Comitê de Igualdade Racial do TJGO. | Foto: Divulgação

Cláudio Pedrosa, Mestre em Psicologia Social; especialista em psicologia jurídica e Perito Forense da Equipe Interprofissional em Aparecida de Goiânia, e Integrante do Comitê de Igualdade Racial do TJGO. Ele, que se identifica como um homem negro e pardo, explica como é o processo de heteroidentificação das comissões universitárias. O profissional, que também integra bancas de avaliação, destacou sua perspectiva psicológica e institucional sobre a temática.

Ele explicou que sua participação em bancas de identificação ocorreu no Sul do Brasil, onde o processo de seleção é conduzido via movimento social e participantes, sendo a composição da banca revelada apenas durante o processo. Cláudio enfatizou que a banca é composta por pessoas previamente sensibilizadas para a questão racial.

Sobre a composição das bancas, o psicólogo esclareceu que há uma orientação para contemplar diversidade e equidade de gênero, incluindo participantes de grupos diversos. Ele ressaltou que o número de integrantes pode variar de acordo com a universidade, mas a diversidade é um critério fundamental.

Na discussão sobre as cotas, o profissional abordou a complexidade do processo seletivo, destacando que, além dos critérios de renda, a questão da declaração é crucial. Ele explicou que a composição da banca é feita por pessoas sensibilizadas para o tema, passando por um período de preparação antes de avaliar candidatos. Apesar dos cursos preparatórios, o psicólogo reconheceu a possibilidade de divergências na identificação étnica.

“A banca é demais de uma pessoa, não é uma pessoa responsável pela identificação, é uma banca. E aí o critério também varia, porque o processo coletivo no Brasil tem muita autonomia, mas a banca vai estar ciente de qual é o critério. É votação, é consenso, não havendo consenso, como que a gente faz? Então a gente vai reprovar se não tiver um número X de concordantes ou vai seguir adiante”, explicou Cláudio Pedrosa.

Ao abordar as marcas de pertencimento a grupos étnicos, o psicólogo destacou a importância de compreender as nuances da cultura brasileira. Ele enfatizou que as bancas são compostas por diversos membros para identificar as marcas culturais que podem não ser visíveis para todos e destacou a importância de considerar a diversidade cultural no contexto das ações afirmativas.

Igor Oliveira – Presidente da Comissão de Heteroidentificação da UFG

Igor Oliveira, presidente da Comissão de Heteroidentificação da UFG. | Foto: Divulgação

Igor Oliveira, presidente da Comissão de Heteroidentificação da UFG, que se identifica como um homem negro, destaca os avanços com a aplicação da lei de cotas, que é a lei 2.711 de 2012. Ele explica que houve muitos avanços em relação ao ingresso, ao acesso de pessoas que são pertencentes a grupos historicamente minorizados a um direito humano que é fundamental, que é o direito à educação. Segundo ele, o corpo dissente das universidades estão passando por uma transformação.

“Ele passa a ser composto também por pessoas negras, por pessoas indígenas, por pessoas com deficiências. A partir da lei de 2015, foi incluído no texto da lei de cotas também a reserva de vagas para pessoas com deficiências. Pessoas que são oriundas de escola pública, que dificilmente acessavam a universidade antes da aplicação da lei de quotas, passaram até essa oportunidade, até esse acesso garantido. Pessoas de baixa renda. Então, assim, a gente observa que teve esse avanço,

Ele destaca, no entanto, que ainda precisamos avançar e garantir que mais pessoas negras e de baixa renda consigam acessar esses espaços, integrando o corpo do centro da universidade. No cenário acadêmico brasileiro, a Universidade Federal de Goiás (UFG) destaca-se por sua abordagem rigorosa no processo de heteroidentificação relacionado à reserva de vagas para pessoas negras em concursos públicos.

Igor compartilhou detalhes sobre os normativos que regem esse procedimento. Segundo ele, dois documentos normativos fundamentais orientam o procedimento de heteroidentificação na UFG: a Instrução Normativa nº 23, de 2023, e a Portaria Normativa nº 1049, de 2019. Ambos normatizam a implementação da reserva de bancas para candidatos negros, conforme previsto pela Lei nº 12.990.

O procedimento, conforme explicado, concentra-se nas características fenotípicas dos candidatos. Critérios como textura do cabelo, traços faciais e cor de pele são observados de maneira exclusiva. A avaliação genotípica ou a apresentação de documentos como certidão de nascimento não são consideradas, destacando a ênfase nas características visíveis. A autodeclaração, embora não seja desconsiderada, é utilizada como ponto de partida para o processo de heteroidentificação.

A Comissão de Heteroidentificação tem como objetivo validar essa autodeclaração e garantir que as vagas reservadas sejam ocupadas por aqueles que verdadeiramente se enquadram na política de inclusão.O profissional ressaltou a importância de compreender a autodeclaração como um primeiro passo, sendo a heteroidentificação um mecanismo adicional para assegurar a eficácia da reserva de vagas. Essa abordagem minuciosa demonstra o comprometimento da UFG em garantir a implementação justa e efetiva de suas políticas de inclusão.