Cemitérios podem trazer memória, celebração e arte
02 novembro 2023 às 13h38
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“A vida é sempre o bem maior e toda vida deve ser valorizada. Toda pessoa tem uma história que representa algo muito importante. A pessoa só morre quando cai no esquecimento. Se a gente olha alguma foto, vídeo, música e lembra dela, ela não morreu, ela está com a gente. Quase todos nós somos eternos”, disse Paulo Vieira, empreendedor goiano que criou uma empresa para eternizar memórias de pessoas que já se foram. Por meio de um QR Code instalado em uma lápide, qualquer pessoa com um celular consegue acessar a biografia e conhecer a história de quem está ali.
Já Denise Gomes, também moradora da Capital, canta em cemitérios há 21 anos, com repertórios que vão desde Queen até Marília Mendonça. Ela lembra que começou em 2006, durante o velório da avó. Após cantar pela primeira vez, os presentes se impressionaram com sua voz e pediram para ela repetir a apresentação nas outras salas. A partir daí, começou a cantar em velórios e cemitérios, fazendo disso sua profissão. Para a cantora, a música é uma ferramenta importante no conforto da perda. “Antes eu tinha medo de chegar perto de um corpo, hoje eu canto olhando para ele, porque eu sinto a presença da pessoa. A vida não termina na morte. O corpo morre, mas o espírito segue vivo”, explicou.
A professora Maria Elizia Borges pesquisa arte funerária há mais de 10 anos e diz que parcela significativa das pessoas ainda não percebe a importância dos cemitérios, desenvolvendo uma série de tabus quanto a sua utilização e significação. A pesquisadora visitou cemitérios de norte a sul do país e estudou a arquitetura dos jazigos, que escondem história, arte e muitos mistérios. “O interesse da humanidade ocidental de investir em túmulos tem origem católica. Já no Egito há essa mitificação da pessoa através do túmulo. No transcorrer da história, cada período trata o morto de uma maneira, mas sempre como memória e identidade do local”, explicou a professora da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Neste feriado, quarta-feira, 2, o Jornal Opção busca mostrar estudos e iniciativas que mostram que o dia dos finados não precisa ser só dor e sofrimento. A data também pode ser marcada por memória, restauração e celebração.
Cemitérios trazem história e arte
Para a professora Maria Elizia Borges, os cemitérios são “locais de fruição estética expandidos da cidade” e, portanto, guardam uma rica expressão artística e cultural dos vivos. Doutora em arte funerária, ela conta que visitou cemitérios em todo o Brasil, mas que o foco de seus estudos são os cemitérios secularizados. Em Goiânia, há o Cemitério Parque que é considerado moderno.
“O que distingue é a entrada sofisticada do cemitério, as salas de velório, o paisagismo. Os túmulos são todos iguais, mas o entorno é diferente, como as flores e as árvores, por exemplo”, explicou a professora. Com estrutura ampla, moderna e arejada, o espaço é privado. Sob gestão da Prefeitura de Goiânia, estão quatro cemitérios municipais: Cemitério Parque, Santana, Vale da Paz e Jardim da Saudade.
Em Goiás, Elizia tem se dedicado à pesquisa dos riscadores de pedra, artesãos que, no passado, eternizaram símbolos populares da religião cristã em lápides e monumentos. Ela destaca que existem notáveis diferenças estilísticas entre os cemitérios do estado. O cemitério da cidade de Goiás, por exemplo, é de grande importância devido à sua caracterização colonial, que se destaca pela sua singularidade e diferenciação em relação ao estilo moderno do Cemitério Santana, localizado em Goiânia.
O Cemitério Santana é notável pelo seu estilo art déco, que evoca elementos clássicos e linguagens artísticas anteriores, proporcionando um contraste marcante com o cemitério colonial de Goiás. Segundo Elizia, a arquitetura dos cemitérios goianos é marcada por traços religiosos, como imagens de santos e símbolos do catolicismo.
Uma característica muito comum observada na pesquisa é que em muitos cemitérios do Estado há escrito “Cemitério São Miguel”. “É uma imagem de um santo que ao que me parece é muito cultivado aqui no Estado de Goiás”, comentou a professora.
Cada cemitério pode ser um museu a céu aberto, pois possibilita reconstituir a história das famílias tradicionais, a mobilidade social e sua mentalidade, fruto da importância política e da grandeza econômica das cidades.
“Precisou alguns cemitérios do século XIX atingir um estado de saturação e/ou serem desativados para serem vistos como “museu a céu aberto” e consequentemente tornarem- se local de pesquisa. Esquecemos de considerar que a vantagem do cemitério secularizado é ser um local onde todas as regras de tradições eclesiásticas e acadêmic aas são suspensas, logo cabe a nós pesquisá-los despidos de preconceito”, explicou Elizia.
De acordo com a pesquisa, o período onde mais se investiu em cemitérios no Estado de Goiás foi no final do século XIX para início do século XX. Além do significado histórico, cultural e artístico, os túmulos também já foram usados para afirmação de poder. “No estudo, analisamos aqueles túmulos monumentais que também retratam o poder econômico de determinada família. Quer dizer que ao morrer “somos todos iguais” entre aspas, porque, na realidade o túmulo representa bem essa importância econômica da pessoa”, completou a pesquisadora.
No Cemitério Jardim das Palmeiras, em Goiânia, os túmulos podem ter jardins ornamentado, podendo também se apresentar sem estátuas ou adereços grandes que fogem ao padrão. Segundo a gerência do cemitério, o túmulo dos cantores sertanejos Leandro (da dulpa com Leonardo) e Cristiano Araújo são os mais visitados.
A arte funerária é intrinsecamente ligada às representações do luto, as quais se fundamentam nos discursos religiosos, morais e econômicos do grupo social a que servem. Portanto, a análise da arte funerária requer a aplicação de critérios específicos e uma abordagem complexa que envolve a interdisciplinaridade, explicou Elizia. Esse enfoque é apontado pelos estudos apresentados em associações dedicadas à pesquisa cemiterial.
Essas associações, que se dedicam ao estudo de cemitérios e seus elementos, reconhecem a necessidade de abordar a arte funerária com uma perspectiva que leve em consideração não apenas a estética e a técnica, mas também os significados culturais, religiosos, morais e econômicos que estão por trás de cada peça. Essa abordagem interdisciplinar permite uma compreensão mais profunda e abrangente da importância da arte funerária na sociedade e na história.
Além dos significados abordados na pesquisa, muitos cemitérios ao redor do mundo têm sido utilizados para serviços de turismo. Na Argentina, o Cemitério da Recoleta é um dos pontos turísticos mais famosos de Buenos Aires. Conhecido como museu a céu aberto, tem mausoléus de mármore, esculturas marcantes e muitas lendas curiosas.
Na França, em Paris, há o cemitério Pére Lachaise, criado por Napoleão Bonaparte e conhecido como o cemitério das celebridades. Primeiro jardim público da cidade, o cemitério, que é laico, recebe 2 milhões de turistas por ano. Os monumentos funerários abrigam filósofos como Auguste Comte, pintores como Modigliani, figuras da música que vão de Chopin a Jim Morrison. Também há cantoras, como Maria Callas, alas de alas destinadas para heróis militares e políticos. Para Maria Elizia Borges, no entanto, Goiás parece distante de transformar seus cemitérios em locais turísticos.
“Cabe ao historiador da arte ajustar o olhar mediante este repertório que apresenta uma sobrecarga de signos diversos, com dados culturais que se entrecruzam, constituindo assim um acervo material de resistência, pois somente aqui as camadas populares podem expressar seus sentimentos diante o infortúnio da morte”, concluiu Maria Elizia.
QR Code em túmulos eterniza memórias
A empresa Qr Code Memórias, idealizada pelo empreendedor goiano Paulo Vieira, é uma espécie moderna dos obituários dos jornais, publicados para registrar a biografia das pessoas. Por meio de um QR Code instalado em uma lápide, qualquer pessoa com um celular consegue acessar a biografia e conhecer a história de quem está ali.
“Após descobrir que minha mãe estava com Alzheimer, tive receio de também desenvolver no futuro a doença. Isso despertou em mim o desejo de registrar minhas memórias para meus filhos, amigos e familiares”, contou sobre quando e como teve a iniciativa. O projeto de Paulo, no entanto, deixou de ser pessoal há cerca de dois anos. Em sua empresa de restauração de fotos, recebia muitos pedidos de familiares interessados em recuperar imagens de entes queridos. Foi quando ele percebeu que os feitos de uma pessoa são importantes para aquelas com as quais se relacionou ao longo da vida.
Segundo ele, no QR Code Memórias, uma pesquisa pode registrar sua história compartilhando seu legado com as atuais e próximas gerações. As informações podem ser acessadas mediante senha. Quando o desejo é deixá-las públicas, o QR Code Memórias pode ser afixiado em sua lápide, divulgado nas lembrancinhas, ou ter o acesso liberado na página.
Ao acessar o Qr Code, a pessoa é direcionada para uma página virtual onde está a biografia de um dos responsáveis pela formação da Capital. “Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1915). Um dos líderes da Revolução de 1930, em Goiás, interventor federal no estado (1930-1933) e governador de 1935 a 1937, foi responsável direto pela mudança da capital de Goiás para Goiânia”, diz a biografia (clique aqui para acessá-la na íntegra).
Para ele, até na morte conseguimos tirar um lado positivo. “Cada pessoa, independente de quem seja, tem um legado que pode ser deixado. O objetivo é fazer com que essas e as próximas gerações conheçam quem foram os pais, avós, bisavós, entre outras pessoas. Muitas vezes, com a correria do dia a dia, as pessoas acabam não conversando entre si e não têm a oportunidade de compartilhar suas histórias de vida”.
O empreendedor contou a história de um caso que o comoveu. Um senhor, de 94 anos, havia morrido e deixado dois filhos. Os irmãos, dois médicos, entraram em contato com Paulo para fazer a biografia do pai e, posteriormente, agradeceram porque descobriram coisas da vida do pai que nem eles mesmos sabiam.
“A vida é sempre o bem maior e toda vida deve ser valorizada. Toda pessoa tem uma história que representa algo muito importante. A pessoa só morre quando cai no esquecimento. Se a gente olha alguma foto, vídeo, música e lembra dela, ela não morreu, ela está com a gente. Quase todos nós somos eternos”, concluiu Paulo Vieira.
A nova versão dos obituários, ao contrário da maior parte da imprensa brasileira, preza pelo respeito à memória daqueles que já se foram. A biografia traz fotos, vídeos e memórias felizes da pessoa morta, evitando tocar em assuntos polêmicos e não confirmados, especialmente em casos de tragédia. Uma das biografias divulgadas pela família no site foi a da menina Luana Marcelo, morta no ano passado aos 12 anos.
Cemitérios também trazem música
Denise Gomes, goianiense que canta em cemitérios há 21 anos, explica que o trabalho mudou completamente a forma que ela enxergava a morte. Antes, ela explica que tinha medo de olhar para o corpo no caixão e evitava chegar perto e se aproximar. Atualmente, ela já consegue cantar olhando para a pessoa morta e ainda sentir a presença dela.
Ela explica como a música é uma ferramenta importante para lidar com a dor. “Faço o meu trabalho para as pessoas que precisam do acalento da música no momento da dor, da perda. Mas não é fácil, tem que ter firmeza, porque as pessoas ficam muito vulneráveis naquele momento”, explicou ela. Além de cantar, Denise também toca teclado, violão e bateria.
No repertório, os mais pedidos são os clássicos “Estrelinha” da cantora Maria Mendonça, “Não aprendi dizer adeus” do sertanejo Leonardo e “Nossa Senhora”, de Roberto Carlos. Apesar das músicas religiosas serem as mais pedidas, muitos pedem outros gêneros musicais, especialmente músicas em inglês, como “Abba” e “Love of my Life”, da banda Queen.
Além dessas, outros nomes muito pedidos são Tim Maia e Raul Seixas. Ela conta que já cantou em velórios de familiares de famosos, como os cantores Jorge e Mateus, Leonardo e Cristiano Araújo, mas que também oferece o serviço para quem não possui condição financeira.
“Antes eu tinha medo de chegar perto de um corpo, hoje eu canto olhando para ele, porque eu sinto a presença da pessoa. A vida não termina na morte. O corpo morre, mas o espírito segue vivo”, finalizou.
O que significa a morte?
Para alguns significa o fim e para muitos um recomeço. Religioso em suas raízes, o Brasil possui maioria da população cristã, com 51% se declarando católica e 26%, evangélica, apontou o último levantamento do Datafolha. Além disso, há 2% de adventistas, outra linha do cristianismo, e 2% se declarando espíritas. Os umbandistas somaram 1% e 5% declararam outras religiões. Ainda tem aqueles que dizem não possuir uma fé específica, totalizando 12%. O significado da morte no Brasil e no mundo sempre esteve muito atrelado à religião.
Seja religioso ou não, ninguém está preparado para morrer ou para perder alguém que ama. Nos últimos três anos, foram mais de 700 vidas perdidas na pandemia da Covid-19. Com o fim da doença, o que ficou foi a saudade e o vazio da perda. Quem não perdeu pai, mãe, filho, avô, avó, mãe, esposa, familiar, amigo, deve ter observado algum conhecido sofrer com o luto.
As mortes trágicas e repentinas, para muitos, são as mais difíceis de lidar. A escritora Gloria Perez, durante o documentário “Pacto Brutal”, explicou que nunca conseguiu e nunca conseguirá se conformar com a perda da filha. Ela conta que o dia em que Daniela Perez foi assassinada começou como um dia comum. E mesmo após saber da notícia, que acabou com seu mundo, o dia continuava correndo da mesma forma. E é assim o luto, como se a vida acabasse para alguns, mas continuasse para outros. “O que mais me impressiona é que aquele dia começou de forma comum. Por que esses dias que mudam sua vida, que jogam a sua vida num precipício e te põem de cabeça para baixo não têm um sinal?”, disse Gloria. Daniela foi assassinada em 1992 por Guilherme de Pádua, crime que chocou o país.
O livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, de Ana Claudia Quintana Arantes, traz uma nova perspectiva sobre a morte. A médica, especialista em cuiados paleativos, vai além do tabu e traz uma visão de cuidado, respeito e memória da pessoa que está prestes a morrer. Em toda a sua vida profissional, a médica enfrentou dificuldades para ser compreendida, para convencer que o paciente merece atenção mesmo quando não há mais chances de cura. Após toda a luta, agora os Cuidados Paliativos têm status de política pública, recebendo do Estado a atenção que ela sempre sonhou.
Em 2012, Ana Claudia Quintana Arantes deu uma palestra ao TED que rapidamente viralizou, ultrapassando a marca de 1,7 milhão de visualizações. A última fala do vídeo, “A morte é um dia que vale a pena viver”, se tornou o título do livro , lançado em 2016.