Crônica da volta

30 março 2020 às 10h33
COMPARTILHAR
Por Alisson Azevedo
Mantive esta coluna no jornal Opção entre 2011 e 2015, com regularidade quase espartana.
Parei porque deixei de ver graça e propósito na minha própria escrita. Numa palavra, parei
porque perdi a mão.
Generoso, o jornal manteve minha coluna na nuvem, o que, se por um lado me embalava o
ego, desafiava meu senso de responsabilidade por tantas crônicas que escrevi e que preferiria
não ter escrito. Ou, por outra, por tantas crônicas que poderia escrever e… Agora preferia não
fazê-lo.
Felizmente, crônica não faz falta. Trata-se de um gênero menor da literatura, cultivado por um
escritor menor ainda. Não, não é falsa modéstia nem autoestima em baixa, como diz uma
amiga. Sou um escritor menor na medida em que escrevo pouco, tanto em quantidade como
em extensão: só escrevo crônicas, parcas e curtas.
E nestes dias não está fácil ser cronista. Otto Lara Resende cunhou para si uma definição que
vale pra todo cronista que se preze, ainda que, como eu, não tenha a verve nem a genialidade
do mineiro. Otto se dizia um “especialista em generalidades”.
Mas num mundo de especialistas em tudo, e em que quase tudo são generalidades banais,
qual será mesmo o lugar do cronista?
Foi nessas datadas reflexões existenciais que em 2015 eu me perdi. Quando veio o
golpeachment de 16 – aquele impeachment com cara de golpe, ou golpe com cara de
impeachment –, trabalhava em Brasília e tive muita vontade de voltar a escrever, agora na
pele de um cronista engajado e de esquerda. Mas, embora de esquerda, nunca consegui
acreditar em literatura engajada.
Depois veio o Temer, com a dona Marcela em casa e os agrobrothers da Friboi na garagem, e
eu quase escrevi um tratado sobre a deletéria influência de uma singular dupla sertaneja
goiana na política nacional: Wesley e Joesley.
Mas achei de péssimo gosto e tive medo que o Euler Belém – meu mestre e editor de quem
quase sempre discordo –, censurasse minha crônica por razões estéticas, o que aliás nunca fez
por razão alguma. Meu censor era eu mesmo. Ai, a praga da autocensura!
Depois desse episódio, e com a ascensão da vanguarda antiliterária bolsonariana, passei a
invejar vivamente a obscura categoria dos escribas de fake news verossímeis, de memes irados e de twits corrosivos. De novo planejei voltar a escrever, mas fui atropelado por um “golden shower” de carnaval.
Enquanto isso Lula foi preso, gritaram Lula Livre até na Globo e ele foi solto –, e continua
dividindo opiniões. (Prometi a mim mesmo ser isentão nesse assunto, e passar longe da gasta
palavra “polêmica”.)
Falando em isentão, Quando o juiz Sérgio Moro virou ministro do Bolsonaro minha mão coçou
de novo. Cogitei escrever um tratado de direito — e de direita — sobre a imparcialidade dos
magistrados ou sua discreta e pouco judiciosa militância política. Mas o ministro Gilmar
Mendes foi tão cirúrgico em suas críticas a Moro que tive vergonha de minhas veleidades de
jurista chinfrim. Gilmar é o gênio da raça!
Depois vieram os vazamentos do Intercept e tudo se acertou. Nunca mais, never more, o pra sempre sempre acaba. Tudo isso pra me convencer que esse negócio de cronista já era. Escrever fora para mim um arroubo de juventude. E como diz o Riobaldo, herói rosiano de “Grande sertão: veredas” –, “mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir”.
Mas nada melhor que o ócio pra reativar um negócio. A quarentena, o medo de morrer ou a
simples falta do que fazer reavivaram em mim a vontade de escrever.
A quarentena para mim é especialmente opressiva. Crônica e patologicamente avesso à
disciplina, preciso dos grilhões da rotina pra me atar à realidade e não cair no vagabundo
canto de sereia pirata numa cidade sem mar — e agora também sem bar.
Preciso acordar, ler o jornal, ir ao Pilates, ir ao trabalho…
Agora o Pilates está indefinidamente suspenso. O trabalho, pra mim, é tão remoto quanto o
foi, na minha mocidade, a musa inacessível. Mas esse é assunto – o trabalho, não mais a musa
–, pra próxima crônica. Por hora sobra o jornal, que ecoa a pandemia e seus contrários, ambos
potencialmente letais.
Fico em casa, sem trégua ou visitas. Cego de nascença – como sabem sobejamente os raros
leitores da fase heróica desta coluna –, uso as mãos para tudo o que faço.
Inclusive para andar na rua e em ambientes maiores que a minha casa. Para nós cegos, a
bengala é a ponta do dedo indicador tocando o chão. Isso é literal, e em tempos de Covid-19
nos coloca em situação de vulnerabilidade. Existe até manifestação da ONU nesse sentido,
extensiva às pessoas com deficiência de modo geral.
Daí meu medo de morrer. Quer dizer, em tempos de pandemia o demasiado humano medo de morrer vira precaução, mas no meu caso e de meus colegas de cegueira esse medo é
potencializado pelo involuntariamente abusivo uso das mãos.
O medo agora paralisa os sensatos – e os que podem parar. Então vem a falta. Na quarentena,
a falta do que fazer é eufemismo para uma falta que é bem maior e demasiado humana. Ela
vive quase sempre oculta e agora vem à tona, elevada ao paroxismo: a falta do convívio, do
trabalho, da autoridade eficaz, do toque, da igreja, do boteco – mais a ameaça do fim do
mundo, pelo menos esse que conhecemos –, tudo isso amplifica aquela sensação de
incompletude com a qual, uns mais, outros menos, todos nascemos, e que sempre foi tão
minha companheira.
Por isso volto a escrever neste espaço: para com esta fugaz coluna tentar em vão preencher
uma impreenchível lacuna: a da falta de sempre. A da falta que ora nos imobiliza, mas que também é a falta que nos move em direção à vida. E apesar dos negacionistas de sempre, eu fecho com Vinicius: “a vida tem sempre razão”.