Carta pela democracia não passa de uma “carta de intenções”
11 agosto 2022 às 22h22
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Em um trecho da entrevista exclusiva que concedeu ao Jornal Opção e que será publicada na íntegra no próximo domingo, 14, a professora e cientista política Silvana Krause, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), relembrou um conceito importante para entender a sociopolítica no momento atual do Brasil e do mundo como um todo: não há democracia, há níveis – ou graus – de democracia.
Democracias em todo o mundo, até as mais maduras, estão em um modo de esgotamento. Não estão dando conta de responder a uma nova estrutura que estamos vivendo no século 21. Prefiro falar, como hoje é corrente na ciência política, em graus de democracia ou de retrocesso. O Brasil, nos últimos anos (…) foi o país da América Latina que mais retrocedeu em democracia.
Não há nada de novidade nisso. O Índice de Democracia (“Democracy Index”, no original em inglês) foi criado em 2006 pela revista The Economist e avalia periodicamente o estágio da democracia por todo o mundo, ou mais de 160 países. Por ele – e, claro, vários outros marcadores –, se vê que o mundo não é binário e a realidade se impõe por seus matizes: o mais próximo que uma nação consegue da plenitude democrática no planeta inteiro se encontra, insuspeitamente, nos países nórdicos da Europa – Suécia, Finlândia, Noruega, Islândia e Dinamarca. Já o pior da degradação autoritária se encontra em países da África, como a República Centro-Africana, ou da Ásia, como Coreia do Norte e Afeganistão.
O Brasil, segundo o índice, está em um quarto degrau, no nível de democracias imperfeitas. Imperfeita, mas ainda assim uma democracia. Algo bem diferente do que se vivia ao tempo em que Goffredo da Silva Telles Júnior, jurista e professor da Universidade de São Paulo (USP), leu a Carta aos Brasileiros, na Faculdade de Direito da USP. O ano era 1977 e vivia-se a ditadura militar com o AI-5 ainda em vigor. O País havia acabado de sair dos piores anos de autoritarismo e o que ali se promovia se consistia num ato de valorosa coragem.
Nesta quinta-feira, 11 de agosto, 45 anos depois de Goffredo Jr., novamente uma carta pela democracia foi lida, no mesmo palco. Mas a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito! aparece no contexto de uma democracia. E isso não é bom sinal.
Faz 37 anos que um presidente civil, José Sarney, tomou posse, deixando o período dos militares para trás. E, daqui a dois meses, a Constituição Federal mais democrática já elaborada por representantes do povo brasileiro faz 34 anos. Deveríamos, na escala do índice da Economist, estar galgando novos e mais altos patamares.
Não. A notícia é ruim. Nunca o ambiente democrático pós-ditadura esteve tão ameaçado, justamente porque nos últimos quatro anos ele foi corroído por quem deveria ajudar a aprimorá-lo: o presidente da República, um notório – vejam só – defensor do período de regime militar.
E tudo é sintomático a partir de como o próprio Jair Bolsonaro (PL) tratou o documento pela democracia. Em vez de assiná-lo – o que, em tese e pela lógica, deveria ter feito em primeiro lugar como um presidente da República democraticamente eleito –, atacou-o desde que surgiu como iniciativa. Para Jair, é uma “cartinha”.
Seguindo essa linha, mas por causa da “deixa” de Bolsonaro sobre o tema, também adjetivo o documento: não é uma carta pela democracia, mas uma carta de intenções.
O texto, bem trabalhado, fala que “o Brasil superou a ditadura militar”; que foi restabelecido “o estado democrático de direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais”; que “nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia”; que “não há mais espaço para retrocessos autoritários” e que “ditadura e tortura pertencem ao passado”.
Os trechos da carta destacados acima falam de situações ideais, as quais o Brasil infelizmente não chegou ainda a alcançar. Por exemplo – e a gente poderia falar de todas as aspas –, como o Brasil pode ter superado a ditadura militar se a República sempre esteve sob a tutela das forças militares desde seu nascedouro e, pós-1985, o que parece é que elas “deixaram” governos civis governarem, embora a voz política dos quartéis esteve sempre rondando, de modo velado, às vezes até evocada com alguma ousadia.
Mas, em 2018, ela voltou a se soltar de vez, por meio das redes sociais: a partir de tuítes do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em 2018, que pressionaram o Supremo Tribunal Federal (STF) durante o julgamento de um habeas-corpus para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Com a ascensão do governo Bolsonaro e o retorno de generais, coronéis e outras patentes a postos-chave em Brasília, só o futuro próximo dirá como o País está lidando de verdade com seu passado autoritário.
No momento, a carta pela democracia proporciona apenas um momento de união de quem ainda a preza. Não repete a cena de 1977, até porque soa como repetição e isso já tira um pouco seu brilho. Mas, ainda assim, a subscrição de mais de 1 milhão de brasileiras e brasileiros e sua leitura em público foram atos necessários para mostrar que pode ser, sim, “apenas” uma “carta de intenções” – expressão de que, em última instância, nem mesmo a Constituição escaparia –, mas pela qual há gente disposta a lutar.
Goffredo Jr. ficaria feliz com o que fizeram da memória de seu gesto. Ainda que sua efetividade continue como utopia.