Neste sábado, 27 de maio, Henry Kissinger completa 100 anos. Para além da polêmica que o coloca em algum lugar entre visionário e criminoso de guerra, Kissinger nos ensina quais as características de um grande líder: senso de realidade, visão do futuro e coragem para implementar essa visão. De acordo com ele, uma das principais tarefas de um líder (talvez a fundamental) é levar a sociedade de onde está para onde nunca esteve, já que o status quo é sempre ultrapassado.

Ator essencial da diplomacia mundial durante a Guerra Fria, o ganhador do Prêmio Nobel da Paz iniciou as aproximações com Moscou e Pequim na década de 1970, com uma visão pragmática do mundo, uma espécie de “Realpolitik” americana. Mas, Kissinger também ocupou páginas obscuras da história, como articulador do apoio dos Estados Unidos ao golpe de 1973 no Chile, ou a invasão do Timor Leste em 1975, e, claro, o Vietnã.

Existem aqueles que até se impressionam com o fato de ter saído impune diante de suas políticas. Uma investigação publicada no site do The Intercept afirma, com base em documentos de arquivo do Pentágono e testemunhos de sobreviventes, que a campanha de bombardeio dos EUA no Camboja entre 1969 e 1973 pela qual Kissinger foi responsável foi amplamente subestimada, tendo causado muito mais mortes de civis do que previamente admitido.

Em um dos seus livros, detalha alguns líderes extraordinários. Em sua análise, Franklin D. Roosevelt via longe o suficiente para preparar um EUA isolacionista para o que percebia como uma guerra inevitável contra as potências do Eixo. Charles de Gaulle fez a França acreditar no futuro. John F. Kennedy inspirou uma geração. Otto von Bismarck operou a unificação da Alemanha. A habilidade dos líderes retratados por Kissinger vem da mistura de tenacidade com uma formação escolar humanista. Se estivesse analisando o Brasil, provavelmente classificaria como estadistas extraordinários: Vargas, JK, Geisel, FHC e Lula.

A importância de Kissinger é tamanha que o periódico The Economist conversou com ele por mais de oito horas. Entre os diversos assuntos tratados, esse visionário coloca que a IA se tornará fator crucial na segurança em cinco anos. Ele compara seu poder de disrupção à invenção da imprensa, que espalhou ideias que colaboraram para causas de guerras devastadoras nos séculos 16 e 17.

“(Nós vivemos) em um mundo de destrutividade sem precedentes”, alerta. Apesar da doutrina de que um humano deve estar no controle, armamentos automáticos e irrefreáveis podem ser criados. “Se olhamos para a história militar, podemos afirmar que nunca foi possível destruir todos os nossos oponentes em razão de limitações de geografia e precisão. (Agora) não há nenhuma limitação. Qualquer adversário está 100% vulnerável.” Nesse sentido, ele defende a
necessidade de discussões mais amplas sobre a tecnologia – e limitação da IA – da mesma maneira que negociações de controle de armas limitaram a ameaça das bombas nucleares.

O fato é que os seres humanos são paradoxais, mas os ensinamentos continuam valendo: pragmatismo, agregar pessoas com valores compartilhados e ligar todas as ações a objetivos domésticos. Só que nada é assim tão simples. Um dos problemas, para Kissinger, é que os princípios morais frequentemente se sobrepõem aos demais interesses — mesmo quando não eles não produzem os efeitos desejáveis. Aí devemos lançar mão de outro ensinamento do mestre: deve-se evitar levar a animosidade ao extremo.

Mas isso não significa que o excelente líder fique à reboque de coalizões. Atualmente elogia-se aqueles que conseguem dosar distribuição de cargos e verbas para aliados com o avanço de uma agenda legislativa negociada, relativamente distante de suas preferências pessoais. Mas, na visão de Kissinger é preciso criar discórdia. “Eles queriam que seus povos seguissem o caminho que eles lideravam, mas não buscavam nem esperavam um consenso; controvérsia foi o subproduto inevitável das transformações que eles buscavam”, escreve Kissinger.

No mundo de Kissinger, o melhor líder seria aquele capaz de captar a vontade do povo e negociá-la. E, eles saberiam também o momento de ignorar os cidadãos que – na visão dele – são pouco informados sobre as consequências de decisões políticas a médio e longo prazo.