Quarentena revela um goianiense que não é solidário nem no coronavírus
09 fevereiro 2020 às 00h00
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Desde que o governo federal anunciou que traria brasileiro da China para Anápolis, brasileiros de Wuhan têm sido tratados como os leprosos dos tempos bíblicos
No livro de Levítico, capítulos 13 e 14, Deus dá a Moisés as instruções para isolamento e purificação do leproso – a bem da verdade, “leproso” era não apenas aqueles que tinham hanseníase, mas uma série de doenças de pele. O doente era considerado impuro, ou seja: a moléstia tinha relação com o pecado. O ritual era bastante complexo, cheio de simbolismo e, por que não dizer, belo.
Para comprovar que não havia mais risco de contágio, sacerdote e doente tinham de sair do povoado. Afastados, o sacerdote pegava duas aves, cedro, um pano vermelho e hissopo, uma erva aromática. Uma ave era degolada e seu sangue banhava o restante do material. Com eles, o sacerdote aspergia o sangue sobre a pessoa e soltava a ave que ficou viva.
A cerimônia, porém, não parava por ai. O paciente, por assim dizer, poderia voltar para o povoado, mas cumpriria uma série de regras, que incluía inclusive sacrifício de animais, para só depois reconquistar o direito de entrar em sua tenda – estava, portanto, purificado.
Para os crentes, Moisés, o mesmo que recebeu de Deus as tábuas dos dez mandamentos, é o autor de Levítico. Para a tradição judaico-cristã, portanto, foi escrito por volta de 1.500 anos antes de Cristo.
Coronavírus
A lembrança decorre da reação à decisão do governo brasileiro, com respaldo do governador Ronaldo Caiado (DEM), de trazer os brasileiros que estão em Wuhan, China, epicentro do surto do novo coronavírus, para Anápolis. A estratégia é manter o grupo em isolamento, a chamada quarentena, na Base Aérea da Aeronáutica, no município.
Ali, seguirão um protocolo rígido, que inclui exames de monitoramento. Anápolis foi escolhida pela centralidade e pela facilidade de deslocamento para hospitais de referência, em Brasília. Pesou também a disposição do governador goiano, que, corretamente, demonstrou solidariedade aos brasileiros, que vivem momento de pânico na China. Médico que é, e político que é, Caiado certamente avaliou bem a medida.
O pânico não tem justificativa. As pessoas serão monitoradas, da triagem antes do embarque aos dias em que passarão em quarentena.
Se preciso, devido ao período de latência do vírus nCoV-2019, um novo integrante da família dos coronavírus, o tratamento será ministrado em ambiente controlado.
Portanto, se, por acaso, houver uma epidemia do vírus no Brasil, dificilmente o paciente zero sairá do grupo que está em Anápolis. Ao invés de repúdio, o que esses brasileiros precisam é de apoio e compaixão. Não é fácil lidar com tamanho susto em um país distante, com cultura tão diferente, onde não se é cidadão local, longe da família e de amigos.
A reação de boa parte das pessoas, contudo, não foi das mais receptivas. Muita gente quer distância desses brasileiros, mesmo com toda a evidência de que não há risco para ninguém. Em uma emissora de rádio, o ouvinte saiu-se com o tradicional “Está com dó, leve para casa” – não coincidentemente termo muito usado em relação a adolescentes em conflito com a lei.
Nas redes sociais – sempre nelas –, a balbúrdia (com perdão do uso, Weintraub) tem sido enorme. Gente esclarecida questiona o porquê de o governo federal estar gastando recursos públicos para resgatar pessoas que foram voluntariamente para a região, e que agora clamam por socorro. Dúvida banal, quando a resposta é muito simples: porque são brasileiros.
Informação
Regredimos, portanto, 3,5 mil anos. Um tempo em que não havia informação – parece, inclusive, que o excesso de informação típico de 2020 só alimenta a desinformação, devido à qualidade da primeira.
Os brasileiros de Wuhan são os novos leprosos dos tempos bíblicos, ou dos anos 1980, quando ficavam isolados em locais como a antiga Colônia Santa Marta, nos limites entre Goiânia e Senador Canedo.
Mas não é preciso viajar tanto no tempo para lembrar o que a soma de preconceito, desconhecimento e ignorância podem causar. Em 1987, Goiânia foi palco do acidente com o césio 137. Pessoas morreram, muitas foram contaminadas pela substância encontrada dentro de um equipamento radioterapêutico abandonado e posteriormente aberto em um ferro-velho no centro da capital goiana. No enterro de uma das vítimas, a menina Leide das Neves, houve quem atirasse pedras no caixão, no cemitério.
Nos meses seguintes, e até por alguns anos, o goianiense foi rejeitado no resto do País. Nem mesmo mercadorias produzidas em solo goiano eram adquiridas em outros Estados. Muita gente, quando viajava, não admitia que era de Goiás. Demorou um tempo para as coisas voltarem ao normal.
Tudo isso torna mais irônico ainda a rejeição aos brasileiros de Wuhan. O preconceito a que o goianiense fora submetido está sendo pago com mais preconceito. Pelo jeito, o goianiense não é solidário nem mesmo no coronavírus.
Governo federal maltrata jovens e velhos
Por falar em compaixão, episódios recentes revelam um governo que não tem coração para os jovens, tampouco para os velhos. A tortura do Enem submeteu milhares de adolescentes à tortura de saber se poderiam ou não confiar nos resultados. O exame organizado pelo ministro Abrahan Weintraub foi um desastre.
Mais preocupado com questões ideológicas que pedagógicas, o MEC potencializou a ansiedade que naturalmente atinge estudantes e toda a família deles. Weintraub, definitivamente, não passou em seu primeiro teste. Perto do que fez no Enem, sua atuação como Gene Kelly é digna de um Oscar.
Por outro lado, os idosos (e trabalhadores em geral) têm sofrido com a letargia do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). O tempo de espera tem sido tão grande que a solução pode chegar tarde demais para muita gente. Enquanto as pessoas esperam, o governo improvisa com o chamamento de militares e agências estão fechadas.
Aparentemente, ninguém teve a percepção óbvia de que haveria um aumento significativo da demanda com a aprovação da Reforma da Previdência.