Foram quatro anos de uma política armamentista beligerante. Desfazer esse processo é uma demanda urgente, mas que indica não ser fácil e exigir tempo. Entre as necessárias medidas a serem executadas pela Polícia Federal (PF) está o recadastramento das armas adquiridas a partir de maio de 2019, no início do governo Bolsonaro. Mas enquanto se tenta retomar o controle, os reflexos do acesso à compra e posse de armas é sentido de forma crescente nas páginas policiais. 

No começo da última semana o noticiário amanheceu com a manchete de um goiano dono de um arsenal de 46 armas e outras tantas munições. Investimento de R$ 700 mil que um CACs (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador) fez para adquirir pistolas, revolveres e rifles – a maioria de uso restrito. O homem, que não teve o nome divulgado, mas sabe-se tratar de um médico que atende em Goiânia, não poderia sequer aproximar-se de armas de fogo. Isso porque ele responde a pelo menos dois processos de violência doméstica. Uma demonstração de como o afrouxamento das regras de aquisição de armamentos representa falhas e descontrole sobre o acesso a armas. 

O perigo dessa situação está constatado no relatório do Instituto Sou da Paz, mostrando que em 2020, para cada duas mulheres assassinadas, uma foi morta a tiros. Esse estudo aponta ainda que aumento nos casos está relacionado à flexibilização para porte de arma. Ainda segundo o relatório, os feminicídios provocados por armas de fogo tiveram um aumento expressivo nos últimos três anos, justamente o período em que o acesso às armas foi facilitado.

O último Atlas da Violência afirma que “há consenso na literatura especializada do campo da segurança pública de que, quanto mais armas disponíveis e em circulação, maior a probabilidade de crimes”. O levantamento foi elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Ainda no começo da semana que se passou, Goiás voltou ao noticiário nacional. Mais uma vez a pauta foram os CACs. A operação da PF, batizada de Alvo Reverso, teve o foco de combater a caça ilegal de búfalos. Foram distribuídos cerca de 50 policiais federais em 10 equipes, que realizaram 10 mandados de busca e apreensão nos municípios de Monte Alegre de Goiás, Formosa, Brasília, Curitiba (PR), Ponta Grossa (PR) e Tibagi (PR). Em decorrência da operação, os suspeitos tiveram seus registros de CACs suspensos judicialmente e poderão responder pelos crimes de caça ilegal de animais silvestres, associação criminosa, porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e restrito, além de apologia criminosa e exercício arbitrário das próprias razões.

Apenas entre os CACs, cujo registro e acompanhamento cabe ao Exército, pelo Sistema de Gerenciamento de Armas (Sigma), havia, em meados do ano passado, cerca de 1 milhão de armas, o triplo do que existia no início do governo Bolsonaro. Outro milhão estava no Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal (Sinarm), no qual os registros aumentaram em quase 190%. A existência de dois bancos de dados, sem intercomunicação e controle unificado, é um problema, na visão do Instituto Igarapé, organização voltada para o tema da segurança.

Uma parcela da população defende a compra, posse e porte de armas. O principal argumento é a segurança para propriedade privada e para família. Entretanto, a  Constituição Federal de 1988, define que é dever do Estado dar proteção a todos da sociedade, sem distinção de cor, raça, opção sexual e especial notadamente condição social. Uma comunidade está mais segura quando seus direitos são garantidos, quando possui os meios de defesa de sua soberania pela lei e pelo Estado. O empenho dispensado para armar a população brasileira poderia ter sido colocado a favor de reforçar a segurança pública, ao invés de terceirizar essa responsabilidade para os amantes de armas de fogo.

Sob o argumento de que a posse de arma resulta em maior segurança para o bem privado, afrouxou-se as regras para acesso a armamento, mas essa não é uma opinião da maioria. Uma pesquisa da Quaest Consultoria feita em parceria com a Genial Investimentos, divulgada em fevereiro, revela a opinião da população brasileira sobre o tema. O estudo revela que a política de liberar armamento de forma desenfreada encampada por Jair Bolsonaro não encontra respaldo entre a sociedade – o que significa que os decretos baixados pelo presidente Lula para restringir o acesso às armas de fogo são apoiados pela maioria dos brasileiros. De acordo com a pesquisa, 75% dos entrevistados discordam que a compra e posse de armas deve ser facilitada, enquanto apenas 2% concordam. 

Fica muito claro que ficamos à mercê das imposições trazidas pelo presidente da República, a seu critério e sem participação popular. No governo passado tivemos a flexibilização de compra, posse e porte de armas. Imediatamente após tomar posse, o novo governo por força de decreto presidencial impôs a mitigação para tais direitos, ou seja, vivemos sob a égide do pensamento de uma única pessoa, embora sejamos mais de 214 milhões de brasileiros, e pasmem a nossa opinião deveria importar.