Bolsonaro, o presidente que abriu mão de governar, enfrenta sua pior semana

21 junho 2020 às 00h01

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Chefe da nação, que abdicou de liderar o País diante de uma pandemia mortal, perde importante porta-voz e vê a Justiça acuar o filho

O presidente Jair Bolsonaro teve um primeiro ano de mandato relativamente suave. Contou com apoio dos brasileiros identificados com a pauta moralista, com a expectativa dos agentes econômicos e com a ala ideológica. Conseguiu aprovar pautas importantes, como a Reforma da Previdência – ainda que o resultado tenha ficado aquém das expectativas em relação à economia, algumas categorias do funcionalismo tenham conseguido manter os privilégios e outras tenham saído prejudicadas (mas não se faz omelete sem quebrar ovos).
Mesmo com o resultado minguado do Produto Interno Bruto (PIB) e geração de empregos longe do que o Brasil precisa, o discurso de reconstrução de uma nação quebrada e assolada por corrupção foi suficiente. Assim, Bolsonaro teve tempo, em todo o ano de 2019, para fazer o que realmente gosta: enfrentar seus moinhos de vento.
Grande parte da população não viu nada demais na gestão ambiental (propositalmente) frouxa em relação ao desmatamento, no discurso virulento em relação à oposição, na negligência às minorias e no ataque à ciência produzida nas universidades brasileiras e à imprensa tradicional, entre outros pontos. Ao contrário, muita gente aplaudiu tudo isso. Afinal, Bolsonaro foi eleito exatamente por essas razões, o que é legitimamente democrático. E o mercado renovou suas expectativas para 2020.
Tinha um vírus no caminho
Eis que 2020 começa com uma novidade inesperada: um vírus, como origem na província chinesa de Wuhan, cobrou dos líderes mundiais que fossem gestores e líderes de verdade. Mulheres como a primeira-ministra Jacinda Arden, da Nova Zelândia, e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, são exemplos do que se quer dizer.
Então, o coronavírus revelou que Bolsonaro estava nu. Confrontado com a necessidade de conduzir o País, o presidente mostrou-se, de início, relapso. Com o andar da pandemia, encarnou Pilatos. Como o governador da Judeia, lavou as mãos.
Parte dos brasileiros descobriu, então, que discursos e bravatas não são suficientes para enfrentar um inimigo invisível, mas mortal. Sem liderança central, com duas trocas de ministro em plena pandemia (e com um titular provisório há mais de um mês), negando a gravidade e apostando em soluções milagrosas (como a controversa hidroxicloroquina, que, até hoje, não tem efeitos comprovados contra Covid-19), Bolsonaro é um não comandante sentado na cadeira presidencial.
Transferência de responsabilidade

coronavírus cabe apenas a governadores
e prefeitos
Eleito com 57,7 milhões de votos, Bolsonaro preferiu jogar toda a responsabilidade por milhares de mortes nas costas dos governadores, que, sem um comando central, agiram individualmente. A falta de uma ação conjunta, organizada e financiada pela União, tornou o enfrentamento da maior crise sanitária em 100 anos ainda mais difícil.
O presidente fez uma interpretação particular sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a competência concorrente de Estados, municípios e o Distrito Federal em relação às medidas contra o coronavírus. Porém, a proposta do ministro Edson Fachin, aprovada pelo plenário, mantém nas mãos do chefe do Executivo Federal a possibilidade de legislar sobre o tema, inclusive determinando quais são os serviços essenciais. Em momento algum o STF retirou as obrigações da União em relação à pandemia, inclusive porque o Sistema Único de Saúde (SUS) é tripartite. Ao contrário, o tribunal reafirmou que a responsabilidade é de todos os entes da federação.
Infelizmente, o discurso presidencial continua colando. Os guerrilheiros virtuais do bolsonarismo espalham a versão de que ele não pode fazer nada e que toda a conta a ser paga é dos governadores e prefeitos.
Fica a pergunta: se, em um caso desses, o presidente se declara inútil, para que, então, o Brasil precisa de um presidente? Para mandar jornalista calar a boca? Ou para cavalgar em meio a manifestações que pedem o fechamento do Congresso e do STF, além de uma tal “democracia com militares”? Aparentemente, os resilientes 30% que apoiam Bolsonaro cegamente contentam-se com muito pouco.
50 mil mortos
Com um presidente que abriu mão de governar, o Brasil chegou a 50 mil mortos e mais de 1 milhão de infectados pelo coronavírus. Na mesma semana, apoiadores de Bolsonaro foram presos e alvos de busca e apreensão. Na quinta-feira, 18, Fabrício Queiroz, amigo íntimo do clã, foi preso e Abraham Weintraub foi demitido do Ministério da Educação.
A prisão de Queiroz e a queda de Weintraub transitam em universos diferentes. No caso do primeiro, o noticiário político bem que poderia ser transferido para as páginas policiais. Ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, quando este era deputado no Rio de Janeiro, Queiroz tem muito a explicar para a Justiça. E, caso as explicações não sejam convincentes, a situação do filho 01 do presidente ficará extremamente delicada. O caminho para cassação do mandato estaria aberto, sem contar as possíveis implicações legais.

governo | Foto: Marcelo Camargo/ABr
A saída de Weintraub causa fissuras na chamada ala ideológica do governo – no caso específico, talvez seja mais correto falar em ala psiquiátrica. Nenhum ministro personificou tão bem alguns nichos do bolsonarismo como ele. Weintraub notabilizou-se pelo desprezo às universidades (especialmente às humanidades), pela falta de pudor em comprar discussões públicas que nada acrescentam à Educação do País e pelas patéticas aparições nas redes sociais (a canastríssima imitação de Gene Kelly é tristemente inesquecível).
Mas Weintraub verbalizava, no governo, o que muita gente pensa, mas tem receito de externar. A frase “Por mim, botava esses vagabundos na cadeia”, dita em uma reunião ministerial (reunião essa que demonstrou que não existe governo), ainda hoje ecoa como grito de guerra nas redes sociais e nas manifestações pró-Bolsonaro país afora.
O ex-ministro, portanto, era um porta-voz importante do bolsonarismo. Sem nenhuma realização em mais de um ano no MEC (exceto que se considere como “realização” a portaria que acabou com as cotas na pós-graduação), em relação ao discurso talvez Weintraub faça falta. Em troca pelos serviços prestados, Weintraub pode ganhar um bom cargo, com salário polpudo, no Banco Mundial.
Discurso para 2022
Ainda no meio do segundo ano de mandato, Bolsonaro já tem discurso para 2022. Terá na pandemia o álibi perfeito para o baixo crescimento econômico e para o desemprego. As mortes causadas pelo coronavírus serão debitadas na conta dos governadores e prefeitos. A falta de realizações será culpa do Congresso, do STF e da imprensa. Na miscelânea certamente pintará algo sobre uma “conspiração chinesa”.
A lista de desculpas está pronta e ganha mais itens a cada dia. E tem muita gente que assina embaixo.