Ao atacar evangélicos, esquerda pavimenta a manutenção da direita no poder
19 janeiro 2020 às 00h00
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Imbuído do discurso do Estado laico, esquerdistas se esquecem de que o segmento religioso que mais cresce no País tem direito de estar na arena política
A disputa político-partidária costuma ser pendular. Grupos de matizes ideológicas diferentes tendem, em uma democracia saudável, se revezar no poder. No Brasil, esse movimento ficou claro desde a redemocratização. Desde 1989 foram eleitos presidentes de direita, centro esquerda e de esquerda. Em países estáveis, essa alternância de poder oxigena as práticas e as ideias – mas, curiosamente, a impressão que se tem é que os melhores sempre são os que estão na oposição.
O grupo que ascendeu ao poder com o bolsonarismo certamente é o de mais acentuado viés direitista na história brasileira recente. Em um sincretismo típico das coisas que se desenvolvem por aqui, a mistura entre conservadorismo e liberalismo fez emergir um ideário que é liberal não convicto na área econômica e conservador nos costumes.
Nesse ponto, as convicções religiosas ganham musculatura e influenciam boa parte da cúpula governamental. Com todas as suas contradições, Jair Bolsonaro é o presidente que mais representa os anseios dos brasileiros evangélicos desde a proclamação da República.
Ainda que católico, ao menos declaradamente, Bolsonaro conseguiu personificar as preocupações do eleitor protestante – e também da parte mais conservadora dos seguidores da igreja romana –, especialmente pentecostais e neopentecostais: a preservação da família, a luta contra o aborto, a rejeição ao casamento igualitário e à descriminalização das drogas e a meritocracia na área econômica. Pautas de cunho liberal, mas que, no Brasil e em outros países, foram adotadas pela esquerda e que, estranhamente, são rejeitadas por nichos cada vez maiores daqueles que se dizem liberais no País.
Não à toa é nesse segmento que Bolsonaro continua mantendo sua maior base de apoio – e, por isso mesmo, o presidente faz cada vez mais aceno a ele. Segundo a pesquisa Datafolha do final do ano passado, 36% dos evangélicos consideram o governo bom ou ótimo. O número salta para 46% entre os pentecostais e neopentecostais. Na população em geral, a aprovação do governo é de 30% – 29% entre os católicos.
A esquerda, por sua vez, ao demonizar esses grupos religiosos, pavimenta o caminho para que a direita – em seus matizes – domine o ambiente político para os próximos anos. Por trás do discurso de estado laico, os chamados progressistas tentam desligitimizar a participação deles na seara política. Para boa parte dos esquerdistas, lugar de crente é na igreja. Uma visão ultrapassada.
Há, nessa tentativa, um erro de conceito e um viés autoritário. Estado laico não é estado ateu. Ao contrário, é aquele permite e protege toda manifestação religiosa. Por outro lado, não cabe limitar um direito civil (organizar-se e participar de eleições para defender seus pontos de vista) a qualquer segmento da sociedade – isso é coisa de estados ditatoriais.
Desde que se mantenham na arena democrática, a disputa de votos, os evangélicos têm o mesmo direito de católicos, espíritas, ateus, empresários, operários, defensores e contrários ao aborto, homossexuais e qualquer outro grupo de se organizarem, disputarem eleições e, caso eleitos, votarem projetos conforme suas convicções. No caso da democracia representativa, quem tem mais voto, vence. Obviamente, não cabe aos evangélicos, no poder, impor suas vontades aos demais grupos.
Ao contrário do que a gritaria geral faz parecer, na verdade os evangélicos estão sub-representados no Congresso Nacional. Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a Câmara dos Deputados tem 84 evangélicos, ou 16% do total. No Senado, são 7 representantes, ou 8% do total. Em artigo no site Poder 360, a deputada Geovana de Sá (PSDB) contabiliza 112 deputados (15%) e 16 senadores (19%). Qualquer que seja a conta correta, é um porcentual abaixo da proporção de brasileiros que se dizem evangélicos. Segundo o último Datafolha, 31% dos brasileiros professam o cristianismo protestante.
As pesquisas mostram como a esquerda abre caminho para o domínio da direita ao decidir pela ruptura e não pela aproximação com os evangélicos (há, claro, exceções) que, por seu lado, cada vez mais rejeitam essa mesma esquerda. A tendência é que os protestantes sejam mais de 50% da população brasileiro em 2032. Em 1994, de acordo com o Datafolha, eram apenas 14% (75% eram católicos).
Não levar em conta esse simples dado demográfico é, no mínimo, má estratégia eleitoral. E não há que se falar em não ceder às necessidades das urnas em nome da manutenção de ideais. A história recente não deixa a esquerda mentir: Lula capitulou diante do que a própria esquerda chama de neoliberalismo ao manter os ganhos abusivos dos bancos, abrir as comportas do dinheiro público aos campeões nacionais (por meio da bolsa empresário do BNDES) e inundou a indústria automotiva com incentivos.
Em sua defesa, frise-se que não havia alternativa. Ou Lula assinava a Carta ao Povo Brasileiro ou dificilmente subiria a rampa do Planalto inebriado com o Domaine de la Romanée-Conti.
Desde Pero Vaz de Caminha
Voltando à questão religiosa, não é nenhuma novidade a influência da igreja nas questões de Estado. Antes mesmo da carta enviada por Pero Vaz de Caminha ao rei Dom Manoel, em que relatava a descoberta da terra nova, o Brasil já havia sediado a primeira missa, celebrada uma semana antes pelo bispo Henrique de Coimbra.
Somente na Constituição de 1891, já na República, é que houve a separação formal entre igreja e Estado brasileiros. Vinte anos depois, nasciam as primeiras igrejas pentecostais no País: a Congregação Cristã, em 1910, e a Assembleia de Deus, em 1911.
Na década de 1930, a igreja católica atuou fortemente, por meio da Liga Eleitoral Católica, para influenciar a Carta Magna de 1934. Naquele período, ganharam força os Círculos Operários Católicos e a Juventude Operária Católica, uma tentativa de evitar a disseminação do ideário comunista na massa trabalhadora brasileira.
Certa guinada à esquerda foi percebida desde a década de 1950. No congresso da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952, Dom Hélder Câmara já falava na opção pelos pobres dentro da igreja. Isso não impediu que a igreja romana apoiasse o golpe que depôs João Goulart e deu início à ditatura cívico-militar, novamente com a intenção de afastar o fantasma comunista.
Percebe-se, então, que a igreja esteve ao lado das duas ditaduras republicanas brasileiras: a de Getúlio Vargas e a dos militares. Com o recrudescimento do regime de 64, contudo, houve uma guinada nos rumos. O próprio Dom Hélder teve papel importante na denúncia das barbáries ocorridas nos porões do poder.
Na virada para os anos 1970, nasceu um forte movimento político na igreja católica. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) passaram a focar nos problemas sociais locais (como falta de infraestrutura) e nacionais (desemprego e desigualdade). Eram cerca de 80 mil CEBs em todo o País. Ali, a semente de esquerda germinou e a ala progressista da igreja católica teve influência até mesmo na fundação do Partido dos Trabalhadores, com o qual manteve uma estreita ligação por anos.
Durante todo esse tempo, os evangélicos meio que ficaram à margem do processo. A separação entre o sagrado e o secular estava presente. Mas as coisas começaram a mudar na década de 1980, quando líderes do segmento (como o bispo Edir Macedo) passaram a estimular uma presença mais forte dos protestantes, especialmente os neopentecostais, na política.
Em 1989, eles já apoiavam Fernando Collor de Mello. Em 1994, ficaram ao lado de Fernando Henrique Cardoso. Mais do que afinidade com ambos, o que havia era uma luta contra Lula e o PT. Agora, com Bolsonaro, os evangélicos encontraram um presidente que realmente reverberam sua forma de enxergar o mundo.
Pode ser que, em 2022, nem seja o capitão o homem que vai capitalizar os votos dos mais de 60 milhões de protestantes brasileiros. Mas, certamente, será alguém com perfil similar. Sem atrair ao menos uma boa parte dos evangélicos, a esquerda dificilmente retomará o poder no Brasil.