Ao usar o exemplo de uma fábrica no interior dos Estados Unidos, documentário reproduz em pequena escala o impacto do capitalismo estatal chinês no mundo

American Factory está disponível na Netflix | Foto: Divulgação

Bobby é um negro americano com pinta de ter lá seus 50, 55 anos de idade. Ou seja: está naquela altura de vida em que muitas pessoas começam a fazer o balanço do que realizou até então e do que ainda há pela frente. Suas palavras são um lamento: “A GM me proporcionou uma ótima vida. Isso acabou quando ela fechou as portas. Nunca mais vamos ganhar uma grana tão boa na vida. Aquilo ficou no passado”.

Por trás delas está o resumo do que American Factory, o documentário que venceu o Oscar 2020, quer revelar: a profunda transformação do capitalismo moderno. Ironia: transformação capitaneada por um país comunista, a China, que, com seu capitalismo de Estado, bagunça a compreensão dos modos de produção conforme os conhecíamos até a segunda metade do século 20.

O filme começa com cenas da ruína de um símbolo americano: com prejuízos insanáveis, a General Motors fecha sua fábrica em Dayton, cidade com 166 mil habitantes localizada no Estado de Ohio. Cerca de 10 mil pessoas vão para o olho da rua. O impacto econômico e social é grande, provocando um ar de desolação e o sentimento de sonhos encerrados.

Dois anos mais tarde, o pátio fabril é adquirido pela chinesa Fuyao. Ironia: uma empresa global de produção de vidros para o setor automotivo. Cerca de 1 mil trabalhadores, muitos ex-empregados da GM, são contratados. Alguns deles, chineses que atravessam o mundo para buscar o sonho americano. Nesse trajeto, deixam a família para trás.

Domínio sutil

O esforço da Fuyao é para ser sutil. A empresa incorpora as palavras Glass America no nome. O presidente da empresa, contrariando os diretores locais, impede a colocação de símbolos chineses na fábrica (“apenas americanos”, diz). Executivos norte-americanos são nomeados para tocar a operação.

De início, os trabalhadores norte-americanos ficam esperançosos. Mas a nova realidade logo lhes bate à porta. O salário, que era de 29 dólares por hora, cai para 14, com intervalo não remunerado de 30 minutos para almoço. A jornada será estendida para os fins de semana. Os funcionários norte-americanos serão supervisionados pelos chineses. “Eles são muito devagar”, justifica um dos executivos.

Em pouco tempo, o choque cultural fica mais que evidente. Os americanos reclamam das condições de trabalho e querem se sindicalizar. Os chineses trabalham horas a fio sem questionar nada e têm como único compromisso entregar resultados. “A vida é o trabalho”, resume o presidente da Fuyao.

Transformações

O que torna American Factory um documentário instigante é que o cenário exibido é um microcosmo do que ocorre globalmente. A Fuyao Glass America é como um aquário, que reproduz todo o oceano em um pequeno espaço controlado. O que ocorre em Dayton é apenas a versão em miniatura da economia mundial.

Há muitos anos a China tem sido a locomotiva do crescimento econômico do planeta. Com PIB saltando anualmente na casa de dois dígitos por décadas e uma população astronômica, os chineses extrapolaram os limites de influência ocupados pelos Tigres Asiáticos na virada dos anos 1970 para os anos 1980.

Outra mudança importante é que os chineses deixaram de ser apenas um grande consumidor de commodities e exportador de bugigangas para assumir a vanguarda do desenvolvimento tecnológico e da produção científica. O capitalismo estatal chinês está absolutamente conectado com a era digital.

Ainda que as empresas não estejam na boca das pessoas como gigantes como Apple e Microsoft (EUA) ou Samsung e LG (Coreia do Sul), elas dominam o ranking mundial dos chamados unicórnios – startups que valem mais de 1 bilhão de dólares.

No Brasil, a presença da Xiaomi e a Huawei começa a ficar maior. Porém, mais que aparelhos eletrônicos, especialmente celulares, a Huawei está por trás da infraestrutura tecnológica de empresas de telecomunicações e da internet das coisas. Não à toa os Estados Unidos pressiona o governo brasileiro a impedir a participação da Huawei no leilão do 5G no Brasil, área em que os chineses estão bastante adiantados.

Linha de montagem

Essa transformação macro é demostrada didaticamente na Fuyao Glass America. No fundo, ela reproduz na linha de montagem algumas características da uberização. Direitos trabalhistas e associativismo praticamente não existem. Nesse novo modelo, o trabalhador ainda não encontrou seu papel.

A automatização substitui a mão de obra e pulveriza os postos de trabalho no chão da fábrica, a remuneração cai vertiginosamente e o associativismo é substituído pelo “cada um por si”, chamado eufemisticamente, na novilíngua neoliberal, de “negociação individual”, como se houvesse paridade de forças entre empregado e empregador.

American Factory é o primeiro resultado da Higher Ground, produtora do casal Barack e Michele Obama, e está disponível na Netflix. O filme foi feito também por um casal: os cineastas Steven Bognar e Julia Reichert.

Democracia em Vertigem, de Petra Costa, merece ser visto | Foto: Divulgação

Democracia em Vertigem

Infelizmente, a polarização política anuvia a produção, ao menos aqui no brasil. Por causa da presença de Democracia Invertida (que também merece ser visto), de Petra Costa, no Oscar, o debate acabou indo pelo caminho das torcidas organizadas da política.

Assim como a frase de Bobby, que abre esse texto, outro personagem de American Factory traduz em palavras o significado das mudanças econômicas para as pessoas de carne e osso. “Agora podemos ir a qualquer lugar, comprar tudo que quisermos”, diz Wong, jovem chinês que deixou mulher e filhos para trabalhar nos EUA. Questão de perspectiva.

O mérito de American Factory está em é retratar um mundo em que a única constância é a transformação.