Onde estão as pianistas? Entre heranças, conquistas e desigualdades que persistem
09 dezembro 2025 às 17h20

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O recente artigo de Camila Fresca, publicado na Revista Concerto, reacende uma discussão que, embora recorrente, permanece longe de ser resolvida: a desigualdade de gênero no universo do piano. O estranhamento sugerido pela pergunta “onde estão as pianistas?” evidencia um paradoxo histórico e simbólico. Afinal, poucas imagens são tão arraigadas no imaginário burguês quanto a da jovem bem-educada ao piano, símbolo de refinamento, sensibilidade e status social.
Se o piano foi, por séculos, um dos principais instrumentos associados às mulheres, não só permitido, mas incentivado, como explicar que, em 2025, menos de 23% dos pianistas profissionais do mundo sejam mulheres, segundo levantamento, da base de dados mais completa e confiável sobre competições pianísticas do mundo, Alink-Argerich Foundation (AAF)?
A resposta está justamente no que Camila Fresca expõe com precisão: o espaço simbólico do piano, apesar de feminino, nunca foi verdadeiramente igualitário. Ele foi permitido, mas não distribuído em condições equânimes para o desenvolvimento profissional.

No Brasil, da educação burguesa que formou Chiquinha Gonzaga ao surgimento de uma linhagem brilhante de pianistas como Guiomar Novaes, Magda Tagliaferro, Antonieta Rudge, Cristina Ortiz, Belkiss Spencieri, Glacy Antunes, Ana Flávia Frazão e tantas outras, o piano serviu como plataforma de emancipação, mas também de contenção. Era aceitável que meninas tocassem piano; o que não era socialmente esperado era que fizessem do piano uma carreira.
Mesmo em 2025, a estrutura social ainda está longe de oferecer condições plenas para a mulher artista. A dupla jornada segue como carga silenciosa e esmagadora; a maternidade, embora fonte de potência humana, continua a ser socialmente penalizada; e a carreira artística, que exige presença contínua, tempo irrestrito e dedicação integral, permanece estruturada sobre padrões masculinos de competição e disponibilidade, que raramente contemplam as complexidades da vida das mulheres. Assim, apesar dos avanços, o campo musical segue reproduzindo desigualdades que afastam, limitam e silenciam tantas pianistas ao longo do percurso.
A consequência é clara: embora as salas de aula de piano estejam equilibradas entre meninos e meninas, as mulheres começam a desaparecer ao longo do percurso em direção à profissionalização, e depois nos palcos, nas gravações, nos concursos, nas residências artísticas e nos programas de desenvolvimento de carreira.
O exemplo de Leeds (Leeds International Piano Competition), citado por Fresca, é paradigmático. Em seis décadas, apenas duas mulheres conquistaram o primeiro lugar. Não se trata de falta de talento, mas de camadas de vieses que se acumulam: visibilidade menor, incentivos desiguais, expectativas sociais assimétricas, e, como sabemos um histórico de redes profissionais predominantemente masculinas.

A iniciativa, da diretora executiva Fiona Sinclair, de transformar Leeds em um laboratório de equidade, da audição às cegas ao treinamento do júri sobre vieses, produz efeitos concretos. Pela primeira vez, os números iniciais (31% de candidatas mulheres) corresponderam aos números das aprovadas. E, ao final, duas mulheres estavam entre os vencedores.
Trata-se de um avanço, mas também de um diagnóstico: quando o sistema se torna neutro, as mulheres aparecem. Ou seja, quando o viés é suspendido e não quando se espera que as mulheres simplesmente “superem” as barreiras, a equidade se aproxima.
No Brasil, iniciativas como as de Lilian Barretto, que dedica parte do Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro ao “feminino no piano”, são fundamentais. Mas ainda são exceções. Nossas instituições, orquestras, conservatórios e práticas curatoriais permanecem marcadas pela baixa presença feminina em posições de autoridade e prestígio: maestras, solistas convidadas, compositoras programadas, pianistas de concerto.
A pergunta de Fresca nos toca diretamente: não estaríamos, ao concentrar o debate sobre equidade apenas em composição e regência, negligenciando outras áreas igualmente desiguais, como a das instrumentistas de concerto?
Atualmente, a desigualdade de gênero no piano não decorre de falta de formação, vocação ou excelência artística. Ela decorre de uma sociedade que ainda distribui tempo, oportunidades e expectativas de maneira profundamente desigual. Para muitas pianistas, a construção da carreira ocorre entre intervalos da vida doméstica, uma lógica que raramente se aplica aos homens.
Ser pianista, com a disciplina diária que o instrumento exige, torna-se um ato de resistência. Mesmo assim, encontramos mulheres que, apesar das exigências extenuantes, reconfiguram práticas, constroem coletivos, rompem silêncios e ocupam espaços de modo transformador. Mas não podemos romantizar esse movimento: ele não deveria depender de força individual, mas de estruturas que acolham de forma justa.
A pergunta “onde estão as pianistas?” é, portanto, menos uma busca geográfica do que um chamado ético. Para que elas estejam onde merecem, nos palcos, nos festivais, nos prêmios, nos concursos, nas gravações e nas instituições, não basta celebrar trajetórias individuais. É preciso: repensar critérios de seleção; revisar metodologias de concursos; promover políticas de acolhimento e apoio à maternidade; descentralizar redes profissionais; garantir equidade e representatividade em bancas, comissões e programações.
A força do artigo de Camila Fresca está em explicitar um fenômeno que muitos preferem não ver. Sim, o piano foi “o instrumento das moças”, mas isso nunca significou igualdade. Sim, mulheres sempre estudaram piano, mas poucas puderam, e ainda poucas podem viver dele em condições dignas.
A pergunta que fica para o findar de 2025 não é mais “onde estão as pianistas?”, mas: O que estamos dispostos a mudar para que elas permaneçam? Porque o talento sempre esteve ali. O que falta é o mundo conseguir absorve-lo.
Para celebrar as mulheres pianistas, ouviremos a grande Guiomar Novaes, interpretando no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em setembro de 1970, o Concerto n.º 20 em ré menor, K. 466, de Mozart, com a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) sob a regência do maestro estadunidense Irwin Hoffman (1924 – 2018). Disponível no (IPB) Instituto Piano Brasileiro.
Observe nessa interpretação o som inconfundível de Guiomar. O toque tão comentado por críticos e colegas ao longo do século XX, está plenamente ali: um Mozart de luz interna, não de brilho exterior.
Fique atento especialmente a exposição solo do primeiro movimento: Guiomar não “explica” Mozart, ela o vivencia. Seu fraseado é feito de arcos longos, quase respiratórios. A articulação é limpa, mas jamais seca; o agógico é natural, orgânico, sempre subordinado ao sentido poético da linha. Sua relação com a orquestra evidencia um diálogo maduro, colaborativo, sem disputas. Guiomar não luta pela superfície sonora: ela se encaixa, se integra, se dissolve no todo. É uma interpretação na qual o piano não domina, convive.
