Fazendo amigos e conquistando as pessoas em Escópia com La Madastra II

27 setembro 2025 às 13h58

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Minha mochila, La Madrasta II, teve comigo uma palestra muito confortante sobre a atividade de carregá-la nas costas na terceira idade. Observou que os europeus, com tempo de estrada muito mais avançado do que eu, mochilam pelo Velho Continente com enorme desenvoltura.
Como exemplo, citou o casal do País de Gales que sacolejou comigo no micro-ônibus com duas mochilas Deuter 60 litros, bem maiores do que ela, mas menos asseadas, pelos 171 km que ligam Ohrid a Escópia, capital da Macedônia do Norte.

Só reclamou que eu não preciso atirá-la ao chão sujo de pontas de cigarro. Em troca, prometeu se comportar com mais cortesia no rompimento de aclives acentuados. Eu não acredito em nada do que La Madrasta II diz por saber que tem enorme histórico de sentimentos dissimulados. Embora seja uma genuína Lowe Alpine, marca inglesa, pode ser considerada a Capitu das mochilas.
Não era para demorar 3h50 o trajeto entre as duas cidades, pois boa parte do percurso foi percorrido em autoestrada nova em folha e muito bem construída. O que impede a progressão franca da viagem é o próprio micro-ônibus. Bastante velho, relativamente limpo, de suspensão precisando de manutenção boa, ele dá uma suada expressiva para terminar as subidas.

Elas são muitas por conta do relevo montanhoso da Macedônia. Nas decidas, certamente por conhecer bem o equipamento, o motorista dirige com o pé no freio, o que agradeci com penhor. Alta velocidade não é comigo.
Na beira da estrada, vira e mexe, aparecem antigos casarões de janelas altas, com paredes descascadas, para conferir alguma coisa de medieval à paisagem belíssima. Bem ao lado das casas, os apiários estão no final da produção do ano. Quando chegar o rigoroso inverno balcânico, o ciclo da polinização será encerrado para retornar quatro meses depois na inauguração da primavera.
Também às margens da rodovia, caminhões bem velhos da Era Soviética, construídos em cooperação com a indústria mecânica alemã e fabricados na Sérvia trazem na carroceria de madeira uma variação grande de coloridos frutos e legumes.

Depois de uma hora de viagem, em um vilarejo chamado Ivani Dol, o motorista fez parada e buscou duas senhoras muçulmanas. Houve um certo conflito de interesses, uma vez que elas queriam ocupar os dois assentos da frente e o motorista não permitiu. Contrariadas, sentaram-se no fundo do micro-ônibus, espécie de poleiro do veículo.
Os dois lugares frontais foram destinados a um amarra-cachorro do motorista, recém embarcado, que não demorou 15 minutos para tirar um cochilo. Imaginei que o ajudante fosse tomar alguma providência ao receber a prancheta com a relação dos passageiros, mas não fez rigorosamente nada para minha completa decepção. Se estevisse sob meu comando, teria tomado uma carraspana em forma de incentivo.
A rodovia passa pelo Parque Nacional de Movrovo, a maior das sete reservas ambientais da Macedônia do Norte, com 73 mil hectares (ha), sendo 4,4 mil de estrita proteção, criado em 1949. Ao todo, guarda em seu território 37 pequenos assentamentos urbanos.
No inverno as densas florestas ficam cobertas de neve e devem ser bonitas de chorar. Sinal de que o ditador Josip Broz Tito (1945-1980), além da repressão própria dos regimes comunistas da Cortina de Ferro, tinha consciência ambiental.
A gestão do parque foi reestrurada entre 2007 e 2013 a partir das diretrizes de programa da União Europeia, com especial atenção ao emprego de tecnologia italiana de coleta, tratamento e destinação de resíduos sólidos (lixo).

Escópia tem cerca de 1 milhão de habitantes. Maior aglomerado urbano do país, concentra a maior parte dos serviços públicos e negócios privados. Impressiona bastante as dezenas de esculturas ao ar livre em escala monumental. As estátuas esculpidas em bronze fazem parte do Projeto Escópia 2010.
A iniciativa dos governos central e municipal teve por finalidade dar uma repaginada no centro da cidade e, além das esculturas plantadas em diversos pontos com muito exagero, restaurou a fachada de vários edifícios, inclusive privados. No lugar da antiga arquitetura comunista, cujo estilo é conhecido como brutalismo, caracterizado por linhas retas e despojadas, foram realizadas coberturas em barroco e neoclássico.
Não é preciso andar muito para encontrar um macedônio que contesta a providência e as razões são razoáveis. Exatamente como ocorre nas obras públicas do Brasil, a princípio o Projeto Escópia 2010 foi orçado em 80 milhões de euros. No entanto, já foram torrados 560 milhões e ainda há obras em andamento sem nenhum sinal de máquinas ou operários na construção.
O montante é troco de padaria quando comparado com o item corrupção do Custo Brasil. Por outro lado, trata-se de uma dinheirama para um país que tem um PIB de 17 bilhões de euros e uma taxa de 22% da população vivendo na linha da pobreza. Há muita acusação da imprensa local sobre escândalos de corrupção que envolvem o projeto, bem como acerca do interesse público do resultado apresentado à sociedade.

No mais, Escópia é linda, tem um bom serviço de limpeza e um equipamento urbano eficiente com boa rede de serviços. Para se ter noção, a Macedônia do Norte é muito segura e apresenta uma taxa de 1,14% de homicídios por 100 mil habitantes. Em 2023, foram registradas em todo o país exatamente 412 mortes violentas. O índice de criminalidade é mais acentuado no ambiente das elites locais e derivam da prática de desvio de finalidade do dinheiro do pagador de impostos.
O ponto alto do centro histórico é o vibrante Antigo Bazar. Nele estão concentrados antiquários, lojas de especiarias, restaurantes muito qualificados e simples, mesquitas e muitas joalheiras, tradição do comércio de rua e instalações religiosas herdadas do Império Otomano.

No centro da cidade destaca-se a Ponte de Pedra construída a mando do sultão Mohamed II, o Conquistador, entre 1451 e 1469 sobre base romana. Com 214 metros de vão, a ponte liga as duas margens do Rio Vadar e quando a noite cai é valorizado o viço da obra de engenharia devido às luzes que penetram nas águas do caudaloso manancial.
Na melhor linha de como fazer amigos e conquistar as pessoas, conheci em duas horas um monte de gente. Filip, o proprietário do apartamento em que estou hospedado, fez uma gentileza grande ao buscar de carro eu e Britz Lopes na rodoviária bem bagunçada.
Viktorija Goceva, 21 anos, dona de um negócio de produção e comercialização de mel chamado Mak Pcelarnici me deu uma aula de apicultura. Um senhor bem hipongo e anarquista, proprietário de uma loja magnífica de artigos das primeira e segunda guerras mundiais, me autorizou a fotografar o estabelecimento, mas não quis o seu nome revelado na reportagem e não perguntei a razão. Combinamos um café.
No fim da tarde, após o almoço tardio, um casal de turcos muçulmanos me abordou na rua para saber a minha nacionalidade e acabou que batemos longo papo. Por pura displicência, deixei de anotar os seus nomes e o contato do pessoal. Valeu muito o primeiro dia por aqui e amanhã tem mais.
Marcio Fernandes, jornalista, é colaborador do Jornal Opção.