Shostakovich: o compositor que escreveu entre sombras e aplausos

08 julho 2025 às 09h22

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Era 1936. Joseph Stalin assistia calado a uma apresentação da ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, de Dmitri Shostakovich. Saiu do teatro sem dizer uma palavra. No dia seguinte, o Pravda, jornal oficial do regime soviético, publicou o infame editorial:
“Confusão em vez de música”.
Estava selado o destino do jovem compositor que, aos 29 anos, conheceu não apenas a glória de uma obra ovacionada, mas o abismo da perseguição política.
Dmitri Dmitriyevich Shostakovich viveu entre a ousadia e o medo. Sua música é um testemunho pungente da complexidade do século XX, e, em 2025, quando se completam 50 anos de sua morte, o mundo volta os ouvidos para esse criador que nunca se calou completamente, mesmo quando obrigado a silenciar.
Filho de um engenheiro nascido no exílio e de uma pianista amadora, Shostakovich aprendeu as primeiras notas ao piano com a mãe. Aos 13 anos, foi admitido no Conservatório de Petrogrado (atual São Petersburgo), onde logo se destacaria por seu ouvido prodigioso e sua habilidade inusitada para ironizar musicalmente até mesmo as formas mais canônicas. Aos 19, sua Primeira Sinfonia estreava sob regência de Malko, impressionando críticos na União Soviética, Europa e Estados Unidos. Era o nascimento de uma das vozes mais originais e inquietas do século.

Mas sua trajetória não se fez em linha reta. Oscilou entre prêmios estatais e ameaças veladas, entre aplausos internacionais e censuras internas. Seu relacionamento com o regime soviético foi de tensão permanente. Denunciado por “formalismo” em 1948 e forçado a fazer autocríticas públicas, Shostakovich seguia compondo: ora obras celebratórias encomendadas pelo Estado, ora obras secretas, densas e codificadas, guardadas na “gaveta da escrivaninha”.
A pergunta que persegue estudiosos até hoje — ele era colaboracionista ou contestador? — talvez isso diga mais sobre nós mesmos do que sobre ele. Como julgar quem viveu sob constante ameaça, que via amigos desaparecerem durante a noite, e que dormia vestido, à porta do elevador, para não acordar os filhos caso a prisão chegasse?
Sua música, por sua vez, responde com outras perguntas. Ouça a Quinta Sinfonia (1937), suposta “resposta criativa à crítica justa”. É possível ouvir, por trás do heroísmo aparente, um grito disfarçado? E o que dizer do Oitavo Quarteto de Cordas, escrito em apenas três dias em 1960, dedicado “às vítimas do fascismo e da guerra”, mas que o próprio compositor admitiu ser seu “epitáfio musical”?
Suas sinfonias , 15 ao todo, e seus 15 quartetos de cordas são monumentos de um espírito dilacerado. Shostakovich foi mestre em transfigurar dor em beleza, sarcasmo em forma, silêncio em som.

E há também o Shostakovich pianista, intérprete de si mesmo, dono de um toque preciso, quase sem rubato, como quem confessa sem drama o que já é por si drama demais. Era, segundo os que o ouviram, comovente por sua contenção, como alguém que diz muito, economizando gestos.
Poucos sabem que Shostakovich foi árbitro de futebol, obcecado por relógios sincronizados, apaixonado por jogos de paciência e leitor assíduo de Tchekhov e Gogol. Era tímido, hesitante, por vezes cômico sem querer. Um homem frágil, mas de vigor invencível quando escrevia.
Hoje, no cinquentenário de sua morte, suas obras são apresentadas nas salas de concerto do mundo. Em julho, a OSESP interpreta as sinfonias nº 4 e nº 14 sob regência do maestro Vasily Petrenko. Uma programação que revela duas faces do compositor: a violência e o lirismo, o desespero e a delicadeza, sempre entrelaçados.
Como bem definiu o musicólogo Richard Taruskin, a música de Shostakovich é:
“o diário secreto de uma nação”.
Mas é também o espelho de um tempo que insiste em voltar. Ouvir Shostakovich hoje é, portanto, mais que um gesto de memória: é um ato de vigilância e humanidade.
Para mergulhar no universo do compositor, sugerimos a audição do Quarteto de Cordas nº 8 em dó menor, op. 110, de Dmitri Shostakovich, interpretado por Janine Jansen, Sarah McElravy, Julian Rachlin e Mischa Maisky. Uma verdadeira aula de expressividade, intimismo e compreensão profunda da linguagem do compositor. Ao ouvi-la, vale observar: este quarteto não é apenas música, é confissão, é testamento, é sobrevivência. E nessa interpretação, temos quatro artistas que compreendem não só o texto, mas a subcamada emocional que Shostakovich escreveu nas entrelinhas. Porque com Shostakovich, até o silêncio sempre foi música em estado de urgência.