Raul Seixas aos 80: o maluco que sabia demais

24 junho 2025 às 10h00

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Se estivesse vivo, Raul Seixas completaria 80 anos nesta semana. Seixas é daquelas que não passam em branco, não apenas por se tratar do “Maluco Beleza”, mas porque sua obra continua a incomodar, provocar e emocionar. E isso, convenhamos, é um feito raro.
Raul foi mais que um cantor de rock. Foi um pensador popular, talvez o mais desconcertante que o Brasil produziu. Sua voz rouca, letras delirantes e postura anárquica disfarçavam um intelectual autodidata, profundamente interessado em filosofia, esoterismo, literatura e história das religiões. Poucos sabem que lia Aleister Crowley e Krishnamurti com a mesma fome com que ouvia Elvis Presley, Luiz Gonzaga ou Little Richard. E dessa mistura improvável — misticismo, baião e rock’n’roll — nasceu uma das linguagens mais originais da música brasileira.
Raul Seixas falava sério brincando e brincava falando sério. Em canções como Metamorfose Ambulante, Gita ou Ouro de Tolo, ele dava forma a angústias existenciais com um vocabulário simples, direto e impactante. Transformava o caos em poesia popular. E talvez por isso tenha incomodado tanto. Era rebelde sem pose, niilista de chinelo, messias de esquina.

O Brasil dos anos 1970 e 80, pleno de autoritarismo e “caretice”, não estava preparado para a Sociedade Alternativa que ele e Paulo Coelho idealizavam. Foram presos e exilados. Raul Seixas resistia com humor ácido, como em Mosca na Sopa ou Aluga-se, sempre cutucando os poderes, as convenções, a “pasmaceira” geral.
Mas sua transgressão vinha da lucidez, não do delírio. Quando dizia “faz o que tu queres, há de ser tudo da lei”, não estava incitando o caos, e sim propondo responsabilidade individual, autonomia e liberdade como pilares de uma nova ética, conceitos que vigoram até hoje, especialmente entre os jovens que descobrem suas canções como quem encontra um manual secreto de insubmissão.
A série “Raul Seixas: Eu Sou”, recém-lançada pelo Globoplay, traz à tona um lado mais íntimo do artista. Depoimentos de familiares, amigos e parceiros revelam o homem por trás do mito: tímido, afetuoso, cheio de medos, mas também encantado pela própria capacidade de fabular. Sua filha Vivian, ainda menina quando ele morreu, lembra com doçura do “Capitão Garfo”, personagem que Raul inventou para assustar e divertir a filha, um gesto que diz mais sobre sua humanidade do que mil reportagens biográficas.
Mesmo em declínio físico e marginalizado pela indústria, Raul jamais deixou de produzir. Seu último disco, A Panela do Diabo (1989), feito em parceria com Marcelo Nova, é um testamento de lucidez e resistência. Dois dias depois do lançamento, morreu de forma súbita. Estava debilitado, mas consciente, de si, do mundo e de sua obra.
Raul Seixas não teve medo de morrer. Teve medo de ser esquecido. Mas o tempo o desmentiu: nunca foi tão ouvido, tão citado, tão atual. Seu legado atravessa gerações porque não está ancorado apenas em acordes ou melodias, mas em ideias. Ele nos ensinou a rir da desgraça, a questionar os dogmas e, talvez o mais difícil, a pensar com a própria cabeça.
Raul é daqueles artistas que não cabem em rótulos. Cabem em baús, como o que ele próprio mantinha desde criança, cheio de chicletes mascados, desenhos, cadernos e memórias. Um gesto de arquivamento afetivo que já apontava para a ideia de permanência.
O Brasil ainda precisa de Raul. Não o Raul-mito, ídolo plastificado de camiseta em feiras alternativas, mas o Raul-homem, o criador de perguntas incômodas. Talvez por isso seja tão simbólico que, aos 80, ele volte à cena em uma série documental e em álbuns tributo. Porque o “maluco beleza”, como a “mosca na sopa”, nunca desaparece: volta sempre para lembrar que ainda há muito o que sacudir.

Ouça “Ouro de Tolo”, uma das obras emblemáticas de sua carreira e da história do rock brasileiro.
Observe que essa canção tem um acompanhamento simples: voz, violão e discreto arranjo. Raul Seixas quis que a letra fosse protagonista, como num monólogo musicado. Não há refrão tradicional. Há um fluxo contínuo de pensamento, quase um discurso falado com base harmônica repetitiva. É uma crítica feroz ao conformismo da classe média brasileira dos anos 1970, que aceitava a “vida arrumada” como fórmula de felicidade.
Fique atento a ironia aos valores da época: carro do ano, televisão, apartamento na planta, enquanto afirma: “Eu devia estar contente / Porque tenho um emprego / Sou um dito cidadão respeitável…”
“Ouro de Tolo” nós ajuda a entender Raul Seixas como pensador libertário, um artista que desafiou o status quo com filosofia popular, humor ácido e rebeldia refinada. Seu gênio está no fato de falar com o povo, sem jamais subestimá-lo.