O Brasil se ouve em Paris: as vozes reencontradas de duas Marias

07 outubro 2025 às 18h15

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Em meio à Temporada Brasil-França, que celebra dois séculos de relações diplomáticas entre os países, Paris se torna palco de um reencontro histórico: o das vozes de Maria Joaquina Lapinha e Maria D’Apparecida, duas cantoras líricas negras brasileiras que, separadas por um séculos, compartilharam o mesmo destino, o de ter o talento reconhecido fora do Brasil e o silêncio imposto dentro dele.
No espetáculo Marias do Brasil, apresentado no Théâtre du Châtelet sob direção de Ligiana Costa e regência de Ricardo Bernardes, passado e presente se cruzam como águas atlânticas que ligam as histórias dessas mulheres. O concerto, descrito pela musicóloga Ana Cursino Guariglia em seu artigo “Brasil Antigo – Novo Brasil” propõe uma escuta dupla: a do Brasil colonial e a do Brasil contemporâneo, um país ainda em busca de reparar as ausências e os apagamentos de sua própria história musical.

Joaquina Lapinha, cantora do século XVIII, foi a primeira mulher negra a se apresentar no Teatro São Carlos, em Lisboa, num tempo em que o “defeito de cor” era citado até em críticas musicais. Interpretou obras de José Maurício Nunes Garcia, outro gênio afrodescendente que enfrentou o mesmo preconceito.

Maria D’Apparecida, mezzo-soprano do século XX, trilhou caminho semelhante. Primeira cantora negra a interpretar Carmen, de Bizet, em terras francesas, encantou plateias da Europa e retornou ao Brasil acompanhada pela Ópera de Paris. Ironicamente, para cantar no mesmo teatro que antes a rejeitara. Sua trajetória terminou de forma comovente: morreu sozinha em Paris, em 2017, aos 91 anos, sem o reconhecimento que merecia em vida.
Marias do Brasil é mais do que um concerto. É um gesto simbólico de reparação, um resgate ancorado nas pesquisas da cantora e musicóloga Rosana Orsini Brescia e da jornalista Mazé Torquato Chotil, que vêm reconstruindo as biografias e repertórios dessas artistas negligenciadas pela história.
Entre as peças apresentadas, há modinhas e árias coloniais, obras de Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Cândido Inácio da Silva e Marcos Portugal, interpretadas pelos solistas Luanda Siqueira e Bruno de Sá, acompanhados pelo grupo Americantiga, referência na redescoberta da música barroca brasileira.
Há uma beleza política e estética em ver essas vozes novamente na capital francesa, lugar onde tantas vezes artistas brasileiros encontraram acolhida para poder existir. As águas que um dia levaram Lapinha e D’Apparecida à Europa agora devolvem suas histórias ao mundo, num movimento de maré cultural que nos convida a repensar quem, afinal, canta a história do Brasil.
Para mergulhar nesse universo, sugerimos o vídeo no qual a cantora brasileira Maria d’Apparecida interpreta “Tamba Tajá” de Wlademar Henrique, acompanhada pelo pianista francês Jack Diéval.
Observe, neste raro vídeo de 1966, a presença magnética da cantora brasileira Maria d’Apparecida, em um programa francês da série Paris Carrefour du Monde.
Logo nos primeiros segundos, note o gesto corporal contido, a postura elegante e a aura de sobriedade que contrastam com a força da canção. Ela canta em português, mas é em Paris que sua voz é ouvida, e isso, por si só, já é um gesto de resistência e afirmação.
Perceba também a dicção precisa e a maneira como ela articula as palavras, revelando uma formação lírica sólida. Ao ouvir sua voz neste registro, entendemos por quê: o timbre é quente, grave e, ao mesmo tempo, refinado.
Observe como o pianista Jack Diéval a acompanha com delicadeza. Ele constrói uma moldura sonora. Fique atento à atmosfera da gravação: o cenário é simples, em preto e branco, e justamente por isso, tudo se concentra na performance, na voz, no gesto, no olhar.
Por fim, observe, na interpretação de “Tamba Tajá”, uma canção de aura mítica, inspirada na cultura amazônica. Maria d’Apparecida canta como se evocasse memórias ancestrais. É mais do que uma execução musical: é um ato de presença, uma artista negra brasileira ocupando um espaço que lhe fora historicamente negado, e, o fazendo com arte, dignidade e beleza.