A infância que canta em nós

14 outubro 2025 às 12h01

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Há músicas que crescem conosco, e, mesmo depois de adultos, basta ouvir seus primeiros acordes para voltarmos à infância. No Brasil, a música popular sempre teve um diálogo afetivo e inteligente com o universo das crianças. Desde A Arca de Noé de Vinicius e Toquinho até Adriana Partimpim, passando por Os Saltimbancos e o Sítio do Picapau Amarelo de Gilberto Gil, há uma tradição de compor com respeito, poesia e fantasia, ingredientes que moldam a sensibilidade de gerações.
Na década de 70, nasceram dois marcos da nossa memória sonora infantil: Vila Sésamo e Os Saltimbancos. O primeiro trouxe, pela TV Cultura e TV Globo, um novo jeito de ensinar: colorido, musical e afetuoso. Marcos e Paulo Sérgio Valle criaram canções que ensinavam letras e números com swing e bom humor. Era uma escola em ritmo de samba.

Já Os Saltimbancos, adaptado por Chico Buarque a partir da fábula Os Músicos de Bremen, foi um gesto poético e político. Os quatro bichos, jumento, galinha, cachorro e gata, fugindo da exploração e sonhando ser músicos, representavam também um Brasil em busca de voz.

Com Nara Leão, Miúcha, o MPB4 e um coro infantil formado por filhos de artistas, o espetáculo encantou crianças e adultos, provando que arte para pequenos não precisa ser pequena. Suas canções, Bicharia, História de uma Gata, Todos Juntos, seguem vivas, como lições de liberdade e coletividade.
Nos anos oitenta, Vinicius de Moraes e Toquinho instigaram à imaginação infantil. A Arca de Noé transformou poemas escritos para os filhos de Vinicius em um dos álbuns mais lindos da MPB. Gravado por artistas como Elis Regina, Chico Buarque, Moraes Moreira e Fafá de Belém, o disco ensinou que a poesia pode ser brinquedo e reflexão, que a infância também é feita de lirismo e beleza. Em 2024, a obra ganhou vida nova como animação brasileira, provando sua força atemporal.

E quem nunca se emocionou com Aquarela, de Toquinho? A canção que começa com um simples desenho de lápis no papel e termina refletindo sobre o tempo e a vida é talvez o hino de mais de uma infância brasileira no qual todos nós nos vemos ali.
“Num papel colorido qualquer, eu desenho o sol amarelo…”
Gilberto Gil retomou a magia da infância com sua canção para o Sítio do Picapau Amarelo nos anos setenta. A versão de 1994 ganhou uma ambientação do campo, com alguns sons de passarinho logo na introdução. Para a versão de 2001, a Rede Globo usou a versão lançada em 1994. A gravação de 2002 recebeu uma influência direta dos ritmos eletrônicos. Porém, a mais conhecida das versões, é a música de 1994, tocada na série apresentada pela TV Globo em 2001. Gil transformou o universo de Monteiro Lobato em ritmo e poesia, com ecos do reggae, da Bahia e do folclore brasileiro.
Na canção, Emília, Visconde e Narizinho convivem com as sonoridades do Brasil real, o batuque, o coco, o balanço, e, o resultado, é pura imaginação musical.

No início dos anos 2000, Adriana Calcanhotto assumiu seu apelido de infância e se reinventou como Adriana Partimpim. O projeto mostrou que música infantil pode ser sofisticada, divertida e experimental ao mesmo tempo, com arranjos delicados e letras que tratam a criança como um ser pensante. Na mesma linha, o Pato Fu criou o premiado álbum Música de Brinquedo, tocado apenas com instrumentos infantis, devolvendo à infância o lugar da invenção e da alegria.

O que une essas obras é algo maior que o entretenimento: é a crença de que a música forma o ouvido e o coração. Quando uma criança cresce ouvindo Vinicius, Chico, Gil ou Adriana, ela aprende que a arte é diálogo, que o som é afeto e que brincar também é pensar. Por isso, nesta Semana das Crianças, vale revisitar esses discos, ouvir junto, cantar junto e redescobrir o poder de imaginar com música.
Porque, afinal, como diz a canção, é cantando que o Brasil segue ensinando a sonhar:

“Todos juntos somos fortes, somos flecha e somos arco…”
Vamos ouvir “História de uma Gata”, na voz de Nara Leão, um hino de delicadeza e coragem, lembrando a cada um de nós que crescer é descobrir o próprio miado no meio da bicharia. Fique atento! Nara interpreta a Gata com doçura e melancolia contida, uma sutileza muito própria dela. Observe como sua voz nunca é teatral demais: ela conta a história com a serenidade de quem viveu a liberdade e a perda. Cada frase é medida, quase falada, e isso dá à canção um ar intimista, confessional e profundamente humano. Esse estilo, em contraste com a leveza infantil do coro, cria um equilíbrio perfeito entre a inocência e a consciência adulta, exatamente o espírito de Os Saltimbancos.