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O que difere um texto famoso sobre Raul Seixas deste aqui? Pergunta mestra, fundamental. A vida de quem o escreve, em primeira instância. Apesar das investidas psicanalíticas que isso implica, espero não fazer a leitura biográfica do nosso marca-passo.

Aí pensei: vou começar dizendo quantos discos autorais e com canções inéditas o Raul tem. Reduzindo, será mesmo inevitável fazer aquela pesquisa que aprendi na academia? Dizem que a I.A serve exatamente pra isso. Fui lá e vi que a tarefa seria coisa de especialista, cruzando dados e tais. Simplesmente porque o Raul na década de 1970 e 1980 lançou disco todo ano praticamente e em uns anos lançou mais de um ou um álbum e um single, e depois tem aqueles compilados com algumas inéditas.

Conheço razoavelmente bem as músicas dele. As duas pessoas que mais sabiam de Raul eram meu irmão, Pablo Lenine, que tocava lindamente tudo e o amigo Marcos Roberto (também professor de filosofia, ilustrador, videomaker e revolucionário anarquista – líder máximo) que citava passagens obscuras de todo o Raul, com as menos conhecidas sendo a cereja do bolo. E ele fingia que aquelas frases eram dele, mas mal fingido, pois soltava um risinho sacana (sabedor que éramos raulseixistas também) nas nossas calorosas discussões no pátio da faculdade.

Anos atrás levei o meu amigo Manoel Gustavo de Estreiro-MA até São Vicente-PA para passar as férias com a mãe dele, e fomos numa viagem de umas 3 horas escutando rap, mais especificamente Racionais e foi uma aula, com tópicos, organização e apresentação dos “sobreviventes”. E então eu disse: vou preparar para na próxima fazer o mesmo com o Raul. Nunca fiz. Minha hipótese estava certa, daria imenso trabalho. Viajei mais de mil quilômetros para Goiânia-GO revisitando sua discografia depois do encerramento do semestre da disciplina “Tópicos Especiais em Sociologia: Literatura e Sociedade”, na UFT (Universidade Federal do Tocantins), no bico do papagaio (como é conhecida a região).

A razão pela qual achava que seria difícil é o fato de que é muito sucesso, era um artista muito popular.  “Eu que sou astrológo e vocês precisam acreditar em mim.” Mas e “[s]e o rádio não toca a música que você quer ouvir?”, e “agora é necessário gritar e cantar Rock”? Mesmo sendo a luz das estrelas? Em qual dos sete níveis de entendimento que segundo os monges tibetanos está o tudo e o nada? Sendo a cegueira da visão, pois se é o início, o fim e o meio.  “Quem não tem colírio usa óculos escuros”?, e “de que lado estão certos cabeludos?”, o narrador e o próprio autor Raul “[p]ra aprender o jogo dos ratos, transou com deus e com o lobisomen”. 

A pergunta clássica do Abujamrra, se prefere uma vida ou uma obra, o baiano maluco beleza, Raul Seixas diria que a vida dele é uma obra. E é verdade. Viveu “como uma metamorfose ambulante, sem uma velha opinião formada sobre tudo”. Alguma pausa aqui. Pois o sarro que ele tira com a realidade brasileira é constante e combinado, a existência é entrelaçada, com “a soluçao é alugar o Brasil”, pois sendo “brasileiro nato, se não morro, mato essa desnutrição”, “abra-te sesámo para Ali-babá e os quarenta ladrões”. Mesmo sem decidir entre “a verdade do universo e a prestação que vai vencer”. As perguntas sobre e de um rapaz latino-americano que não tem cheiro nem sabor, e Raul, que também sabe se lamentar, só serve para os livros e para quem não sabe ler

Desculpem-me os fãs de Belchior, os alternativos que não conhecem “a lei” da sociedade alternativa, até porque gosto e valorizo, mas sinceramente, o que o cearense tem de canções boas é uma nota de rodapé na obra do Raul. Inclusive o título do disco clássico dele, “Alucinação”, é, tecnicamente errado, pois seria “Delírio”. – Diriam que o Belchior não está interessado em nenhuma tÍoria… que amar e mudar as coisas lhe interessam mais – E blá. Errrado, pois alucinação é um estado patológico, com uma psique doente, já o delírio é uma operação simbólica de completude em coisas sonhadas. Isso devo colocar numa roda de leitores de Freud. Nota machadiana: estou perseguindo, inconscientemente e agora consciente, essa ideia desde o capítulo “O delírio”, do Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

Um texto sobre Raul Seixas, seria bom que fosse dividido em volumes/tópicos como aquele box ainda no começo dos anos 1990 do Chico Buarque, que teve uma baita curadoria, e organizou sua obra em “O cronista”, “O amante”, “O político”, “O trovador”, “O malandro”… A obra do Raul podia ser crítica social, românticas, baladas-serestas, filosofias-existenciais, citações, roqueirices, baião, misticismos/esoterismo… O que me saltou aos ouvidos foi a peculiaridade de cada disco, com clássicos-sucesso, uma média, na quantidade de 5 músicas. Raul deu vida artística e fama a todos os seus parceiros musicais. Paulo Coelho é o mais famoso deles. A ABL se rendeu a ele e ele se rendeu a ela. Raul é ele mesmo uma própria entidade, está além do bem e do mal. E, talvez por isso, não cuidaram dele, como ele merecia, e também, por sua rebeldia.

Tanto falava a língua das ruas, como o rap a partir de 1990, que sabia “que nunca se vence uma guerra lutando sozinho”, que meu pai, que valoriza os livros e é entusiasta da revolução social, é professor, e meu tio, que valorizava a docência e era um entusiasta da pinga de corote, alcoolismo que o matou, os dois grandes raulseixistas. Numa dessas proezas acadêmicas, escrevi um memorial e da minha trajetória inicial as primeiras referências em meios às histórias, políticas e música: Raul Seixas antes de todos, com sua crueza, talento e expertise. Depois, pra mim, viriam tantos outros.

Raul “não tem nada a ver”, segundo ele próprio, “com a linha evolutiva da música popular brasileira, a única linha que eu conheço é linha de empinar uma bandeira”. Isso porque “eu morri e nem sei qual foi aquele mês”, no metrô linha 743, é lá que eu também vou reclamar.