Por Marcelo Brice

– “Sou tão bom ator que finjo ser cantor e compositor – e todo mundo acredita.” – Assim falava Raulzito

Todo escritor, a meu ver, tenta paralisar o tempo, quando escreve. Essa é uma frase que não deve ser dita, pois muitos deles, os escritores, sairão ao ataque. Empunhando frases travestidas de originais, como se alguma coisa fosse depois de Platão. Uma conhecida teve um namorado com essa insígnia, e o pessoal dizia: "... Na casa do Pratão… blá, blá", deve ser porque ele era um alimento farto. Mas a questão prenhe de outras questões é que dirão que pelo contrário, eles lutam para acelerar o tempo, ou reformulá-lo, nada mais obscuro que paralisar o tempo.
É como as sensações boas, e um dos motivos pelas quais as pessoas se viciam. Querem com justiça repetir aquela sensação boa, originária – talvez por isso temos a mania de valorizar romanticamente a primeira vez que apareceu aquilo. E aí tentar segurar o tempo em suas mãos, poder fazer o tempo correr, mudar a estação, negá-lo ou reafirmá-lo, mas em última instância é paralisar o tempo no sentido de manipulá-lo na imag(inação), na memória.
Os velhos lembram tanto da infância, do tempo em que todos estavam vivos. E se esquecem do imediatamente recente, quando isso avança recebe o nome de Mal. O Oswald de Andrade apresentou a formulação de uma antropofagia de forma poderosa, em Manifesto, pertados e ironias. O Machado de Assis teve um estudo sobre como ele mimetizou e deu novos ares ao cenário da literatura brasileira com o seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. É sobre como o Machado pegou emprestado a ideia de um defunto que narra do “Diálogos dos mortos”, de Luciano de Samósata. O estudo é “O Calundu e a panaceia”, de Enylton José de Sá Rego. Apesar da redução, é lei de Lavoisier: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Certamente, estou sendo determinista, e meus colegas da universidade vão brigar comigo. Podia citar Marx, né, ou até Heidegger – à propósito.
Filosofando com’OS cavalos: pensando sobre a eternidade, o apagamento, a permanência, a fixação, o que fica; abstrações aparentemente individualistas mas na verdade transformadoras – não cheguei a nenhuma conclusão. Na verdade, só que o tempo não se esvai, pois pode significar “desaparecer”, mas faz mais sentido na acepção de “dissipação”. Como não se segura água nas mãos, pois ela escapa, pelas frestas entre os dedos, por isso o melhor a se fazer é molhar o rosto e beber um pouco da água que foi fracassadamente colocada como prisioneira.
Assisti “Flow”, no cinema. Apesar da conversação dos infantes, a experiência do filme é linda demais e, acho, que é sobre “a passagem do tempo” - quase falei “passagem da vida”; tema máximo da filosofia mais cabeçuda do século XX, filosofia de um alemão – sempre eles –, Heidegger.
Filme que vale todo o barui em cima, é muito bom, sofre a missão de, por figurar como uma animação com bichinhos, ser recomendado como filme infantil. (“A Viagem de Chihiro” é exemplo de um baita filme infantil que é de adulto). E vale como filme infantil por ter várias camadas – lugar comum do crítico; e se tratado em perspectiva de a “passagem do tempo”, tem o mote de estarmos navegando à esmo, sem destino, num barco que apereceu do nada, com parceiros de navegação que em situação de temperatura e pressão normais se devorariam, mas estão unidos e desconfortáveis, porém ajudando o coleguinha de navegação. Como disse minha Maria: “É sonho ou pesadelo!?”.
Cheio de aventura, venturas e desventuras, é preciso inteligência para seguir viagem, às vezes para numa “estação”, quase sempre fruto da inabilidade em navegar e da falta de recursos para administrar a viagem, mas nem todo mundo que sobe ou pode subir fica ou vai. É a vida.
No final, os navegantes salvos, momentaneamente, observam a baleia que encanta e amedronta e está encalhada numa parte seca que a “enchente” não alcançou, ao meu lado o infante Vicente pergunta: “Uai, a baleia morreu?” e o infante Martin, com a sapiência não revelada depois de ver o filme meia dúzia de vezes com os pais – a mãe é doutora em Biologia: “Morre não. Vai inundar tudo de novo, e aí ela revive.”
Na saída, desequilibrei e quase cai, amassando o Martin contra a parede, perguntado se estava tudo bem, estava e eu disse que sim: “Agora, temos que perguntar ao Martin.” Contei isso na psicoterapia e ele: “Na próxima vez o Martin tá mais crescido e aí você não o amassa.” Aproveitar o tempo.

Acontece com frequência, e deve ser coisa de preguiça ou do avançar dos anos: parar de tomar nota quando está no pré-sono, já envolto por aquele desejo irrealizado de sono, coisa de quem quis crer que dormiria e que a nota podia atrapalhar e atrapalharia, certamente, o que faz com que várias ideias maravilhosas e também algumas muito ruins fossem largadas, colocadas na passagem de uma esquina de avenida já de madrugada profundamente adentro, sem carros, erma e perigosa e sombria. Lá foram deixadas as ideias para um poema, livro, conto, ensaio, crônica, o quer que seja com a palavra. Numa entrevista antigamente recente do mestre do samba, Paulinho da Viola, ele contou sobre seu processo criativo, que por vezes tal música, tipo aquele clássico lindo, foi salva do abandono quando já estava deitado e então que ele decidiu levantar e anotar aquela ideia/levada/frase de uma música, não sei se ele disse ou pensei algo como: e as ideias que ele não anotou e se perderam?? Meu ”sósia” (eu sei que ele vai gostar) preferido do Paulinho da Viola é o amigo músico e bluesman dos bairros periféricos, Luciano Ninomia.
As pessoas que gerenciam um arsenal de situações devem pensar: é isso que eu devia fazer com a solução que imaginei sobre a dívida que fiz com meu amigo, com o banco e com a ferragista. Mas isso não é possível, pois solução não parece ser coisa de artista, e coisa de artista que é do pré-sono, por ser do universo dos sonhos, do onírico. O sonho que traga o Paulinho da Viola e o leve à anotação, e a mim quando eu uso coisinhas ou na época que a pessoa escreve uma tese de doutorado – o mais próximo de criador que a gente acreditou ser. Vou contar uma ideia que tive há anos e me acompanha. Serei confessional, de novo.
Talvez fosse 2020, num intervalo de aula de teoria sociológica, em meio a pandemia, online, coloquei um disco do Led Zeppelin, Physical Graffiti, e lembrei do meu irmão, Pablo Lenine, simplesmente porque ele adorava esse disco. As duas primeiras músicas resolvem um trecho da história da música, são simplesmente rockão de altíssima qualidade. Muito demais. “Custard Pie” e “The Rover”. Morava em Palmas-TO e fazia um calor insuperável. Notícia velha. Era à noite, depois de finalizar as aulas, tomei um chá quente no ar-condicionado no maior frio possível, pensei: o Pablo foi meu maior professor de música. Não anotei.
Nos mais de 10 anos de Tocantins, desenvolvi um gosto para atividades domésicas que envolviam água, claro com o calor anunciação do cramunhão em berço esplêndido, no caso lavar vasilhas, mexer com roupa, jogar água na área e no banheiro. Antes do almoço eu lavava vasilhas, escutava podcasts (hábito que a pandemia nos legou) e pensava na vida.
É uma tese razoável que a gente tenha sido tão bombardeado por tantos debates que estamos insensíveis. Ou a culpa é minha? Ou dos “kids preto”? Deles, nunca. Vamos à etimologia. “Kids” significa “criança” e os componentes das Forças especiais do exército brasileiro tem essa nomeção com a adição da cor do gorro. Mas são “crianças”, nenéins, e querem dar golpe e são chamados de “crianças”! Por essa e por outras, o exército é tão respeitado, na arte de pintar meio-fio. O que importa é que dos podcasts ia para música, numa miscelânia.
Sempre que colocava Led ou Beatles eu lembrava do Pablo. No pré-sono em diversas noites matutei que devia escrever um texto aproveitando o dia dos professores para homenagear os professores e meu irmão por ter sido o meu professor de música. Mas não anotei. Larguei essa ideia porque ele estava muito doente em decorrência da ataxia sc3 e ia parecer errado escrever coisas bonitas e poéticas de alguém vivo. Como se só os mortos merecessem coisas bonitas. Adequando à realidade, os mortos só mereceriam coisas boas.
Descrente da vida eterna, apregoo que a parte boa da vida é quando estamos vivos. Isso é com o intuito de dizer, que se fosse artista teria encontrado um jeito de formular a um vivo, mesmo que morimbundo, das coisas boas que ele fez em vida com a gente. Perdemos a chance de ser uma pessoa legal e expressar as coisas e eu de não anotar o que me vem e me achar artista. Pois não posso ter a audácia, me dar ao luxo, de abandonar uma ideia nas ruas noturnas, de fazer a minha alegria e a sua, acreditando no que fica e então volta, como uma fixação: “[n]ão sou eu quem me navega, quem me navega é o mar.” O certo é fazer homenagem aos vivos. No mínimo, já que “ainda estamos aqui”, mesmo que desmemoriados ou moribundos.

Puxa uma cadeira e vamos prosear enquanto decidimos o que vai pra onde, o que fica, o que descarta e nisso, como é difícil fazer um país, armamos uma biblioteca