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Samanta Schweblin é uma escritora argentina. Ela é a autora de um dos melhores livros contemporâneos que li nos últimos tempos, “Kentukis”. Mais uma autora latino-americana que acho incrível e que merece entrar no rol dos grandes nomes da atualidade.

Inicialmente, foi uma leitura que achei que não iria gostar, mas logo no começo, ao nos apresentar um grande plot twist, fui fisgada e quase não consegui largar.

Uma distopia tecnológica com desfechos surpreendentes, a autora conseguiu criar um enredo muito diferente do que já li.

Ao mesmo tempo em que eu pensava o quão bizarro seria a ideia de um kentuki, à medida que as histórias iam se desenrolando, eu vislumbrava a provável possibilidade de algo assim vir a existir, e os vários paralelos que podemos fazer com as redes sociais e os diversos reality que temos por aí.

O kentuki seria uma espécie de bicho de estimação, algo parecido com uma pelúcia com câmera acoplada. Mas diferente das outras utopias, a inteligência por trás dele é humana, não artificial.

No livro, você compraria o bichinho, que teria acesso a sua rotina, privacidade, dia a dia, o que você disponibilizasse para ele ver. O kentuki não tem como se comunicar com o “amo”, exceto por alguns gestos e sons limitados. Para não o perder, bastaria não deixar descarregar a bateria da pelúcia. Se assim o fizesse, a conexão entre vocês cairia e não poderia ser reativada.

Por sua vez, do outro lado, a outra pessoa iria adquirir a conexão, a possibilidade de ser esse kentuki.

A princípio, parece uma coisa muito louca, muito distante e irreal, mas ao fazermos um paralelo com as redes sociais, percebemos várias semelhanças: o voyerismo que vivemos, o ver, olhar, saber…

Ao mesmo tempo que tão bizarro, tão provável de existir.

Daqueles livros que nos fazem refletir profundamente sobre a sociedade atual, o mais interessante a observar na história, é que mais perturbador que ser visto ou ser filmado, era que o kentuki desistisse de você, considerando que sua vida não interessava a pessoa que a guiava.

A autora possui uma narrativa super cinematográfica, que nos prende. Conseguimos visualizar cada cena que ela nos descreve. A autora é roteirista, por isso essa narrativa com ares cinematográficas. Outro ponto muito interessante, é a falta de um protagonista, o que torna esse livro ainda mais diferente.

Gostei demais da escrita e da inventividade de Samanta, e ela entra fácil no rol daqueles autores que quero ler tudo, até a lista de compras.

Ela não escreveu uma história óbvia. E nos mostra que, através do filtro do anonimato, existe uma espécie de vida através do outro, onde tudo parece ser permitido. Assim, é um livro não para falar da tecnologia em si, mas de nós, nós em relação a essa tecnologia.

Sentir o gosto de uma vida que não é a sua, me fez associar muito às redes sociais. O filtro do anonimato que concede à ideia de “liberdade” ou “terra sem lei”.

Um detalhe marcante e bastante relevante nessa narrativa é a humanização desse kentuki, ao tornar esse “bicho de pelúcia” único, sem nenhum igual, exclusivo de cada dono.

A forma como ela constrói essa narrativa, como se fossem contos dentro de um romance, onde não existe um protagonista, a não ser os kentukis. Além disso, a própria quebra de expectativas que temos com as histórias: logo na primeira, temos uma narrativa que seria óbvio o desfecho, mas acontece tudo, menos o que esperamos.

Assim ela segue nesse estilo de narrativa, como uma espécie de apresentação do que é um kentuki, como ele funciona. Dessa forma, ela vai de uma história “menor” até um desfecho surpreendente (não que na verdade todos não o sejam). Um livro que é tudo, menos óbvio.

Como disse, para desfazer o vínculo dos kentukis, era simplesmente não o carregar ou quebra-lo. Pois assim, não haveria ninguém ali do outro lado; mas o que é interessante na narrativa, é observar os ritos humanos, nossa necessidade de executar, mesmo com algo inanimado, um certo final, enterro ou despedida de algo que imputamos humanidade.

Como precisamos disso para manter nossa essência ou sanidade. Nossa ideia de existência e pertencimento, de não deixar os “mortos” sem sepultamento.

Nessa distopia mais próxima da nossa realidade do que nossa vã ingenuidade nos permite enxergar, é possível perceber que, assim como na vida real, os kentukis ou “amos”, existem de diferentes maneiras.

Tem aqueles que utilizam para se sentirem menos sozinhos, fazer amizades ou mesmo procurar quem possui os mesmos gostos que você, do mesmo jeito que tem os que usam a rede para espalhar ódio, mentiras, fake news, e assediar pessoas.

Assim como na vida real, aqui não temos ao certo as regras dos contatos sociais.