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Sem pretensão alguma de ser uma escritora – o vislumbre de ler e comentar o que já foi escrito me apetece mais -, gosto muito de livros, situações e pessoas que me inspiram a escrever ou ao menos pensar e ajudar esse ofício bonito da pena. Mas prefiro gastar as palavras lendo-as.

E livros sobre processo criativo, formas de pensar, de ver e interpretar, me fazem acreditar na construção de uma visão mais ampla de mundo. E alguns livros me inspiraram demais, e cumpriram aquela função da literatura que Kafka tanto defendeu: a de incomodar e sacudir o mundo em que vivemos, e lemos.

Assim, uma das coisas que mais gosto e acho bonito em clubes de literatura, é a possibilidade de lermos e conhecer livros que não seriam lidos, se não fossem uma indicação do clube, e acho que já escrevi sobre isso algumas vezes.

Quero falar sobre dois que despertaram demais esse senso criativo. O primeiro foi o “parque das ruínas”, de Marília Garcia. Um hibrido entre poesia, ensaio e crítica, possui uma poética reflexiva sobre o ato da escrita, processos criativos e observar o mundo por suas várias óticas possíveis.

Gosto como alguns livros não se prendem a gêneros literários, pois esse pode ser poesia, ensaio, crítica. Assim como a vida, nela cabe tudo, até os entre gêneros textuais.

Lido em março, no Clube Palavrear de Literatura Contemporânea, “parque das ruínas” foi uma indicação do também escritor Julián Fuks.

Gosto como autores brincam com as palavras, fazendo correlatos com a própria vida acontecendo, como no caso do título de Marília, que remete ao Parque das Ruínas, um espaço cultural no Rio de Janeiro, onde ficam as ruínas do antigo casarão da mecenas Laurinda Santos Lobo. O local que oferece uma vista ampla da cidade e fica ao lado de outro museu, a Chácara do Céu. E os dois lugares funcionou como uma metáfora para a relação entre memória, perda e reconstrução, temas centrais na obra da autora.

O livro ficou muito bom, e foi bacana ver como através da poesia, mas nesse misto com o ensaio, Marília nos conta sobre todo o processo criativo, processo de escrita, que permeia a obra de um artista durante a preparação e criação de sua obra.

Como ela nos conta como chegou a Chácara do Céu para ver uma exposição de Debret, e ao se deparar com o Parque faz a reflexão que escreveu em um de seus poemas: como “passar do céu” para as “ruínas”, uma metáfora bonita para a força e o significado individual das palavras.

“(…)
(se a gente começa a escrever       anotar
e nomear o que acontece
será que consegue fazer as  coisas
existirem de outro modo?)
(…)”

Esse trecho faz parte do poema em que Marília diz ter feito o seguinte exercício: todos os dias tirar uma foto do mesmo lugar, na mesma hora e a partir dela, fazer um diário. Achei bonito demais essa observância de mundo, a busca por, todos os dias, procurar ver o lugar.

Especialmente nesse trecho, achei de uma lindeza para exercitar essa escrita que por vezes fica aqui, esquecida. Como, por vezes, a inspiração está em olhar ao redor, nas vivências e observâncias de mundo.

No entanto, Marília nos lança a pergunta retórica: mas como ver o que está ali?

Você só vê o que sabe. Por isso, ás vezes, precisamos de distanciamento: dos textos, dos livros, só para enxergar melhor o que, no fundo, sabemos.

O segundo livro, e que também adoro, gerou controvérsias entre os participantes do Clube Contemporâneo: “O escolhido foi você”, da Miranda July, é da mesma autora do livro “de quatro”, que está super no “hype” literário do momento.

Ele foi lido em 2022, uma indicação da excelente escritora Júlia Dantas.

Esse é um livro que me emociona muito, por nos mostrar que a vida é feita de pessoas. Que no final, são elas que transformam nosso caminho.

Como uma solução para o seu bloqueio criativo, a escritora e cineasta Miranda July resolveu recorrer e responder a um jornalzinho de anúncios. Sem saber direito o que procurava, ela decidiu se encontrar com os anunciantes dos mais estranhos itens à venda.

A transcrição de dez entrevistas com pessoas comuns, mas também peculiares, resultou nesse livro. Ao mesmo tempo, temos reflexões delicadas da artista, como processo criativo, bloqueio, relatos íntimos.

Gosto da humanidade com que Miranda escreveu esse livro, a qual ela mesma se apresenta e se despe na frente do leitor.

Acho muito interessante essa busca por inspiração e a forma como ela conduz seus entrevistados, pois ela própria foi motivada pela curiosidade de entender como é uma rotina sem as distrações virtuais que levam a procrastinação.

Em busca desse desbloqueio, Miranda foi em busca de enxergar o mundo, explorar o cotidiano, buscando a criatividade em lugares inusitados.

Assim, encontrou histórias de vidas ricas e complexas. A importância de se abrir para o inesperado como forma de desbloquear a criatividade, tudo isso em meio a questionamentos sobre a vida e a arte.

Em um trecho particularmente especial, Miranda diz:

“A maior parte da vida está offline e acredito que sempre estará (…)”

Só conseguimos real e verdadeiramente observar a vida, totalmente offline.

Os dois livros tem por comum, a inspiração na própria vida, acontecendo. Eu, que tenho um apego pelo extraordinário que é o cotidiano, a vida acontecendo ali, rotineiramente, vi beleza demais nessa busca de inspiração na vida diária. A importância de encontrar significado nas ações cotidianas.

 “Quase doeu me lembrar de que Joe e Carolyn eram partes do mundo, cercados por um número infinito de histórias simultâneas (…).”

Bonito demais, como esses olhares dos outros, nos inspiram a olhar e despertar, a gente.