Zelito Viana equivoca-se: o PT, e não o Brasil, “inventou” Bolsonaro
04 setembro 2022 às 00h00
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Uma boutade às vezes é apenas uma boutade — uma graça para tornar a vida mais leve.
Mas um dito do diretor de cinema Zelito Viana, numa entrevista ao jornal “O Globo”, não é nenhuma brincadeira: “A ditadura era ruim, mas do ponto de vista existencial estamos piores hoje”.
O trecho completo da fala de Zelito Viana, uma pessoa admirável, é: “Pela primeira vez em meus 84 anos, sinto vergonha em ser brasileiro. Claro que, na ditadura, eu não teria a liberdade de falar isso, mas nós tínhamos a esperança de que um dia aquilo iria acabar, lutávamos por isso. Hoje estamos diante de um projeto que foi eleito pelo voto. Não foi o Bolsonaro que inventou o Brasil, foi o contrário. A ditadura era institucionalmente ruim, mas do ponto de vista existencial estamos piores hoje”.
Mas “estamos” mesmo “piores hoje”? É provável que não. Nós (Zelito Viana, eu e tantos outros) que vivemos sob uma ditadura precisamos ter mais cuidado com as palavras. Porque na ditadura, sobretudo entre 1968 e 1975 — a rigor, durante os 21 anos sombrios, de 1964 a 1985 —, era muito pior.
Sob a ditadura, contabilizam-se mortes — algumas em combate, outras verdadeiros assassinatos, pois as pessoas estavam indefesas, à mercê do Estado — e a arte foi cerceada. Não se tinha democracia, ou seja, não havia liberdade. A imprensa esteve censurada por um longo tempo. Centenas de pessoas foram exiladas, outras foram cassadas e professores (e, inclusive, militares) foram aposentados compulsoriamente na fase mais brilhante de suas carreiras.
De fato, o presidente Jair Bolsonaro tem vocação autoritária, notadamente quando confronta as instituições, como o Supremo Tribunal Federal, quer dizer, o Poder Judiciário, um dos pilares da democracia. É provável que, se tivesse apoio das Forças Armadas — que não parecem golpistas, ainda que existam golpistas entre coronéis e generais —, daria um golpe de Estado. A palavra a reter é “provável”. Porque o Brasil, apesar de toda a verborragia autoritária de seu governante, permanece democrático. Há um país que “reage”, que não aceita retrocesso, o que mostra a maturidade de grande parte dos brasileiros (a maioria não está acometida por nenhuma “Bolsolite-22″).
A imprensa não está sob censura. Bolsonaro é criticado em jornais, sites e emissoras de rádio e televisão. O presidente reage, com suas grosserias habituais, como se quisesse assustar os jornalistas — como a intimorata Vera Magalhães —, mas a imprensa continua crítica, ativa. Há ameaças à TV Globo, como uma possível retirada da concessão, mas a rede da família Marinho não parece nada intimidada. Pelo contrário, seu arsenal crítico é poderoso e corrosivo.
O Supremo Tribunal Federal, com os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso — para citar apenas dois —, segue firme. Não desafiando Bolsonaro, e obrigando-o a cumprir a lei.
Por que se agiganta a presença do Judiciário, representado pelo STF? Porque se tem um Legislativo relativamente agachado ante o Poder Executivo. O Senado reage mais a Bolsonaro, como uma contenção aos seus excessos. Porém, a Câmara dos Deputados acolhe de maneira mais estreita os pleitos do presidente.
Faço, porém, uma ressalva: o Centrão, a “federação partidária” dominante na Câmara dos Deputados, exerce um papel duplo, de caráter contraditório. De fato, ampara o governo de Bolsonaro. Mas, ao mesmo tempo, contém o presidente nos limites da democracia. O espírito “democrático” de Bolsonaro só existe dada a pressão dos políticos do Centrão.
Há outra frase de Zelito Viana que, embora seja ótima, não é inteiramente verdadeira, inclusive do ponto de vista da lógica: “Não foi o Bolsonaro que inventou o Brasil, foi o contrário”.
O Brasil inventou Bolsonaro? A rigor, não. Por que culpar o todo, numa responsabilização generalizada, e não entender quem, de fato, é o pai (e mãe) de Bolsonaro?
A corrupção e a crise econômica gestadas pelos governos do PT, talvez seja possível concluir, “inventaram” Bolsonaro e uma direita que se tornou militante. O presidente, um político de direita — um deputado anódino no Congresso —, só se tornou forte, uma alternativa, por causa do fracasso do PT na gestão da crise econômica e na questão ética.
Então, culpar o Brasil, os brasileiros, pela “gestação” de Bolsonaro equivale a “perdoar” os erros da esquerda.
Sobre Lula da Silva, vale uma palavra. Costuma-se apresentá-lo como corrupto, como se fosse a única faceta do político que, tendo nascido em Pernambucano, se fez como trabalhador e político em São Paulo — o Estado, digamos, mais capitalista do país.
A corrupção pode ser um tópico da vida política de Lula da Silva, mas não consegue contar toda a sua história. O político (exceto ditadores, Stálin, Hitler e Mao Tsé-tung) tem de ser avaliado pela média — e não pelos extremos. Aquele, mesmo que seja pesquisador, que avaliar o petista-chefe apenas pelo extremo — tachando-o de “corrupto” — não será capaz de compreender sua grandeza política, que é um fato, goste-se ou não, ideologicamente, do ex-presidente. Com o tempo, com os nervos acalmados pela história, o garoto de Garanhuns e homem de São Paulo que ocupou um dos mais altos cargos do país poderá ser avaliado com mais amplitude.
Lula da Silva, o retirante, o operário, o líder sindical, o ex-presidente, o líder de um grande partido social-democrata — sim, de esquerda; porém, não comunista —, um político que mantém uma relação direta com as massas, é maior do que o Lula da Silva meramente “corrupto”, como querem alguns. E mais: sua preocupação social, com a inserção dos pobres na excludente sociedade brasileira, é genuína e ideológica — e seus rivais, incapazes de compreenderem isto, não conseguem combatê-lo.
Porém, para “despiorar” Lula da Silva, a esquerda, a intelectual e a das redes sociais, “precisa piorar” Bolsonaro. A fala de Zelito Viana, um diretor de cinema que admiro e respeito (vou ler sua autobiografia, “Os Filmes e Eu”), faz parte deste contexto. De fato, o Brasil não vai bem em muitas coisas — e crescimento econômico não gera, necessariamente, desenvolvimento (ao contrário do que parece pensar o ministro da Economia, Paulo Guedes — um gestor de rara insensibilidade) —, por exemplo na questão ambiental, no diálogo harmônico entre os poderes, mas a democracia atual (e a democracia nunca é perfeita, mas é sempre o que há de melhor, como disse Winston Churchill) é muito superior à ditadura. A rigor, não tem nem comparação.
Portanto, se se quiser, pode-se “piorar” Bolsonaro e “despiorar” Lula da Silva, mas sem desqualificar a democracia brasileira, que, mesmo sob ataque, vai bem, obrigado.
Para certa esquerda, Bolsonaro zerou a história, é o fim da história. O que não é fato. É mera opinião, se opinião é. Bolsonaro é uma parte, ínfima, da história do país — que passará, quiçá como uma febre. A direita atual talvez não sobreviva a uma possível debacle eleitoral do ex-integrante do baixo clero no Congresso.