Não se pode escrever a história da esquerda brasileira sem as memórias de seus militantes. Heitor Ferreira Lima, Elias Chaves Neto, Leôncio Basbaum, Apolonio de Carvalho, entre outros, escreveram livros impagáveis sobre o que é viver no partido comunista. Sim, a palavra certa é viver. O comunista é diferente dos outros militantes. A palavra militante quase pode ser trocada por militar ou monge. Ser comunista é uma profissão de fé, ainda que os comunas sejam, na maior parte das vezes, ateus.

As memórias de José Fernandes Sobrinho (1927-1994) — “Vivências no Agreste” (169 páginas) — não tratam apenas de sua longa e exemplar militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Aliás, embora soubesse praticamente tudo sobre a atuação do partido em Goiás, escreve pouco sobre o assunto. Porém, quando se dispõe a verificar o tema, sempre acrescenta alguma informação útil. Por exemplo: “No V Congresso (do PCB), foi eleito o primeiro lavrador sem-terra à suplência do Comitê Central”. A interessante informação é, no entanto, lacunar: Zé Sobrinho não fornece o nome desse sem-terra.

A história da esquerda goiana precisa ser escrita. Zé Sobrinho era uma fonte privilegiada, que morreu antes que jornalistas e historiadores produzissem livros sobre a atuação dos partidos comunistas em Goiás (PCB e do PC do B). Certo, ele concedeu algumas entrevistas, mas não foram devidamente aproveitadas.

Por isso, seu livro, ainda que lacunar, até episódico, tem importância na construção da história das esquerdas.

Homens rudes

Em 1945, caiu o governo do ditador Getúlio Vargas. Iniciou-se o processo de redemocratização. Em Uruaçu — cidade fundada pela família Fernandes — foram criados o Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN).

As excelentes memórias de Zé Sobrinho Fernandes, um dos líderes do PCB em Goiás | Foto: Divulgação

Na legalidade, o Partido Comunista Brasileiro, sob a batuta de Luiz Carlos Prestes, tinha simpatizantes em Uruaçu, mas, nota Zé Sobrinho, “não conseguiu número suficiente para fundar o seu diretório. O partido foi organizado no distrito de Porangatu pelos senhores Sinval Fermente de Carvalho, Ângelo Rosa de Moura, Thomé Rodrigues de Araújo e Eudóxio Pinheiro. Em Uruaçu foi organizado apenas um comitê pró-candidaturas do partido. Esse comitê, segundo Thomé Rodrigues, foi presidido por Domingos Vicente da Costa Campos e tinha como membros Olívio Francisco de Carvalho, Jesuíno Lira, Jaques Fernandes de Carvalho e Antônio Alves Batista”.

Nas eleições, em Uruaçu (norte de Goiás), os comunistas ficaram em terceiro lugar, perdendo apenas para PSD e UDN.

Zé Sobrinho tornou-se, ou descobriu-se, comunista aos 23 anos, em 1950, quando morava em Uruaçu.

Escreve ele: “No meu aprendizado político, acham-se quatro influências: a ditadura do Estado Novo (1937-1945); o pensamento católico, a democracia burguesa e o Partido Comunista. Como tantas influências, seu impacto não foi linear. Elas se atropelavam dentro da minha cabeça, empurrando-se e jogando-se umas contra as outras, à procura de espaço”. A dúvida sugere que, no fundo, Zé Sobrinho nunca foi um comunista dogmático ou esquemático (sou testemunha de que convivia muito bem, de maneira respeitosa, com não comunistas; era, acima de tudo, um gentlaman).

“Quando comecei a me julgar um comunista, estávamos em 1950, na grande reviravolta do partido, ocorrida com o Manifesto de Agosto. (…) O recuo do Partido Comunista, a partir de seu IV Congresso, foi parte de minha formação política”, confessa Zé Sobrinho.

Ao escrever sobre o partido comunista, Zé Sobrinho alerta: “É um registro subjetivo, sem nenhuma preocupação com alinhamentos de datas e fatos”.

Na década de 50, o partido em Goiás organiza o Congresso Regional de Lavradores. “Para dar um impulso na luta contra a grilagem e pela reforma agrária. Diversos panfletos foram distribuídos, e as cidades, sob a direção do nosso CZ (comitê de zona), receberam novas pichações.”

Em maio de 1953, no Cine São Patrício, em Ceres, o congresso reuniu 200 delegados. Goiânia mandou o vereador comunista Sebastião de Barros Abreu. “Esta foi exatamente uma das coisas que mais me influenciou, pois aqueles discursos proferidos por homens rudes falavam da humanidade, da humilhação dos trabalhadores agrícolas da fazenda cafeeira, vendidos como objetos; mas também da falta de confiança e do temor que aqueles homens e nós sentíamos ao armar o nosso primeiro protesto em Goiás contra a opressão que sentíamos em nossa própria pele. Não se tratava apenas do fato de nos sentirmos assustados em protestar politicamente, mas que a maioria de nós achava difícil falar em público”, conta Zé Sobrinho. O leitor há de perceber, na crueza da informação, certo lirismo — resultado de uma mente altamente perceptiva.

Geraldo Tibúrcio: militante da esquerda em Goiás | Foto: Reprodução

Ao término do congresso, decidiu-se pela realização de um comício em praça pública. Relata Zé Sobrinho: “Elegemos uma delegação composta por João Soares de Oliveira, Geraldo Tibúrcio, José Fernandes Sobrinho e mais um elemento da UJC (União da Juventude Comunista). Houve uma forte alteração entre a delegação e o delegado de polícia, o coronel Holmes Frazão, que não quis conceder o alvará por nós solicitado e ainda prendeu o lavrador João Soares e o jovem ujotista”.

Devido ao incidente, o congresso terminou no quilômetro 179 da Rodovia Bernardo Sayão, na posse de Raimundo de Souza Coelho. A primeira resolução do congresso: “Lutar pela reforma agrária, confiscação das grandes propriedades agrícolas, com todos os bens móveis e imóveis”. Uma das resoluções é curiosa: o congresso decidira ajudar o jornal “A Voz Camponesa” e solidarizar-se com o jornal “A Terra Livre”, “que era o órgão dos lavradores de todo o Brasil, cujo diretor era o jornalista goiano Declieux Crispim Sobrinho. Com o aguçamento das lutas no campo, conseguimos organizar o nosso próprio jornalzinho, o ‘Ranca Toco’, cujos diretores foram Geraldo Tibúrcio e João Soares de Oliveira”, escreve Zé Sobrinho.

Entre 1948 e 1954, segundo Zé Sobrinho, o PCB teve uma atuação marcante na organização dos movimentos de massa em Goiás. Nem a crise interna nacional prejudicou o trabalho dos comunistas goianos. “Foi sob a influência e disciplina do IV Congresso que organizamos, em Goiás, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (Ultag), que se transformou, depois, em Fetag. A Ultag nasceu sob a influência do Congresso dos Lavradores de Ceres.”

Partido a reboque

Uma crítica de Zé Sobrinho ao monolitismo do PCB: “Entre 7 e 11 de novembro de 1954, realiza-se o IV Congresso do Partido Comunista Brasileiro. Segundo informação de nosso delegado, não houve o livre debate das teses, um procedimento pouco democrático. A indicação do delegado foi manipulada pela direção, não havendo praticamente discussões das teses de base. Foram aprovados os informes de Prestes, (Diógenes) Arruda e (João) Amazonas. O programa e os estatutos do Partido Comunista Brasileiro”.

Para Zé Sobrinho, “o programa do IV Congresso não refletiu a realidade brasileira. Foi mais uma confirmação, com pequenas diferenças, do Manifesto de Agosto. Tudo isso ocorreu na medida em que o comitê central jamais ouviu e debateu as teses das bases. Isso vem acontecendo ao longo de nossa história, originando, desta falta de audiência, as defecções que têm havido em nossas fileiras”.

A crítica continua: “Sem ligar muito para as bases, ouvindo apenas os comitês estaduais e poucos comitês de zona, em 1955 o Partido Comunista Brasileiro lançou um manifesto, alterando a sua linha política e alertando os brasileiros sobre a possibilidade de uma ditadura militar fascista. Novamente, as bases não foram ouvidas para dar maiores subsídios. A posição política foi correta, mas a falta de respeito às normas estatutárias e de aplicação do centralismo democrático levou o Partido Comunista a perder as suas características e a servir de linha auxiliar do PSD e do PTB”. Como se vê, um balanço crítico de um homem que dedicou sua vida à esquerda, não se afastando um milímetro de seus princípios éticos.

Em 1955, o PCB declara apoio à candidatura presidencial de Juscelino Kubitschek, do PSD. A implosão do PCB precipita em 1956, quando o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, espécie de matriz do partido brasileiro, confirma e repudia as atrocidades cometidas por Ióssif Stálin. Começava a era de Nikita Khruschov — a da desestalinização.

Mais tarde, em 1962, os comunistas racharam definitivamente. De um lado, ficou o Partido Comunista do Brasil, que manteve o culto a Stálin e, em seguida, a Mao Tsé-tung (da China) e a Enver Hoxha (da Albânia). De outro, o PCB permaneceu apoiando a União Soviética.

Zé Sobrinho explora pouco a influência da revisão soviética em Goiás. Mas não foge do debate: “Foi convocada uma conferência estadual, que foi realizada no município de Hidrolândia, com assistência do comitê central. Nesta conferência, estiveram presentes delegados de quase todo o Estado, inclusive de nossa região. No final da conferência, pediram afastamento do Partido os seguintes elementos do CE: Alberto Xavier de Almeida, Moacir Belchior e José Morais; e mais alguns elementos do organismo intermediário: Wilson Meireles, Haroldo de Brito Guimarães [jornalista brilhante] e Manoel Alves da Costa”.

Uma informação interessantíssima não ganha destaque no livro: “O comitê central (do Partido Comunista Brasileiro) não deu apoio à luta dos posseiros da região de Trombas e Formoso”. A informação, revelada por um líder histórico do PCB (portanto, uma voz autorizada), merecia ter sido ampliada.

Zé Sobrinho acrescenta: “Em 1958, o Partido dá uma grande reviravolta, com a publicação do texto de Luiz Carlos Prestes, no qual o comitê central faz sua autocrítica. As bases começaram a se organizar em nossa região, graças aos esforços dos camaradas Juca Ferreira e Abraão Isaque Neto. O prestígio do Abraão e a presença física de Juca Ferreira ajudaram em muito a reconstrução do nosso Partido em Goiás”.

A lamentar: Zé Sobrinho nada mais diz sobre as desavenças entre a direção nacional e suas bases em Goiás. Possivelmente, não teve tempo para discutir mais profundamente a questão.

O memorialista nota que, depois de 1958, o PCB assumiu uma posição mais crítica. “As bases multiplicaram o Partido com uma nova visão crítica do governo JK e deixou sua linha auxiliar.”

No V Congresso do PCB, em 1960, o semanário “Novos Rumos” abre espaço às ideias dos militantes. O comitê de zona do qual Zé Sobrinho fazia parte chama a atenção do partido para a luta no campo. “Abria a perspectiva de unidade de todas as organizações no campo, dentro de um amplo Congresso pela reforma agrária.” O livro “PCB (1922-1982) — Memória Fotográfica” registra a posição do partido: “A resolução política aprovada nesse congresso afirma que a etapa atual da revolução brasileira tem caráter nacional e democrático, exigindo, para a sua consecução, a organização e a consolidação de uma frente única nacionalista e democrática. Considera que é viável um caminho pacífico para a revolução brasileira”.

Núcleos de Córregos

José Porfírio: líder camponês que se tornou deputado do PTB e era ligado ao PCB | Foto: Reprodução

“O trabalho de organização de lavradores”, diz Zé Sobrinho, “tinha por base a criação de pequenos conselhos, chamados núcleos de córregos. Isto porque a maioria dos lavradores, em Goiás, habita às margens de riachos, córregos e ribeirões. No Formoso, depois que se criou uma porção de Núcleos de Córregos, foi que se formou a associação de lavradores. Depois de criada a diretoria, que tinha como presidente o lavrador José Porfírio, diversas lideranças, desejosas de se organizarem em suas localidades, vinham à procura da nossa associação a fim de trocar ideias. Daí, surgiram as associações da Serrinha, de Cristalino, da Praia Grande, de Viadão”.

Em Trombas, observa Zé Sobrinho, o partido percebeu que “não se pode tirar realidade do bolso do colete”. “No campo, é preciso ir às roças e não pode ser como se fosse um passeio, não. Tem-se que discutir com os companheiros e, mesmo depois de uma resolução aprovada, ainda se tem, em muitos casos, de ajudá-los (os camponeses) a colocá-la em prática.” Por mais que fosse engajado, Zé Sobrinho, como ser dialético, não perde a capacidade crítica.

Na década de 50, o PCB abre os olhos para Trombas e Formoso, onde posseiros e grileiros brigavam por terra. Uma comissão do partido — da qual participaram Geraldo Aureliano, João Soares e Vicente — esteve na região. Geraldo Tibúrcio acompanhou a comissão. Ele buscava dados para jornais populares (“Terra Livre”, “Voz Camponesa” e “Frente Popular”).

Sem negar o valor da experiência do PCB na região, Zé Sobrinho faz uma crítica: “Naquela época, não sabíamos como organizar uma associação de lavradores. Houve diversas tentativas infrutíferas de vários companheiros que iam lá como beija-flores, agitavam muito e, depois, voltavam sem deixar nada de concreto, a não ser alguns pontos de apoio. O nosso comitê de zona, numa reunião, deliberou convidar os companheiros Geraldo Marques, José Ribeiro e Pedro Bugre para irem morar lá, adquirir posse, ligar a produção no local, fazer o trabalho miúdo. E foi assim que foi fundada a primeira associação de lavradores posseiros, que elegeu como seu primeiro presidente o posseiro José Porfírio de Souza”.

Os advogados José Godói Garcia (o poeta) e Sebastião de Barros Abreu (autor de um livro sobre a Revolta de Trombas) deram o apoio jurídico.

Organizados, os posseiros reagiram aos ataques dos grileiros. Estes tinham o apoio da Justiça e, na maior parte das vezes, da polícia. O movimento de Trombas e Formoso cresceu tanto que, em 1960, o seu principal líder, José Porfírio, foi eleito deputado estadual. Pelo PTB de João Goulart.

José Fernandes Sobrinho (autor do livro “Vivências no Agreste”), Adolfo Francisco de Carvalho e Rodolfo Francisco de Carvalho: irmãos | Foto: Reprodução

O inimigo rigoroso mas cordial dos burgueses

Intelectual autodidata, Zé Sobrinho morreu em 31 de janeiro de 1994 sem conseguir pôr seu livro de memórias nas livrarias. Três anos depois, por esforço de parentes, “Vivências no Agreste” chega ao mercado, numa pequena edição de mil exemplares.

O leitor não deve esperar um livro de grande vigor analítico. Zé Sobrinho faz uma espécie de sociologia miúda ou micro história. A base é a memória. Quando falta a precisão dos dados, Zé Sobrinho preenche os espaços com vida, mas sem fazer literatura. Às vezes, examina a realidade com base em dados. Nota-se, sempre, a vitalidade de sua honestidade pessoal e intelectual.

É com delicadeza — às vezes, o tom é crítico, sem adjetivos — que se refere à oligarquia dos Fernandes, que dominaram Uruaçu durante anos. Filho dessa oligarquia, nutre amor por ela. Sem perder a capacidade de notar os motivos de sua “decadência”.

“Vivências no Agreste” indica uma saudável paixão pela história. Há, também, uma certa nostalgia. Acima de tudo, apresenta-se o humanista (os comunistas podem ser, às vezes, humanistas). Pode-se dizer que, nas entrelinhas das análises de Zé Sobrinho, aparece uma certa ingenuidade sadia.

Há histórias muito boas — como a do escravo Mané Girau, a do juiz José Cortez de Lucena e a do padre Daniel.

Zé Sobrinho era uma figura ímpar. Não tinha inimigos — nem de classe. Os burgueses, quando muito, consideravam-no um “inimigo cordial”. No mais das vezes, era um diplomata e, acima de tudo, um gentleman (ele detestaria o uso desta palavra, sobretudo em inglês). Zé Sobrinho era uma figura exemplar. Como militante e homem.

Uma dica para o leitor que não tem grande interesse pela história da oligarquia Fernandes: no final do livro (entre as páginas 155 e 168) está a parte mais interessante. É mais universal. Mas a história dos Franciscos da Silva e dos Fernandes de Carvalho é empolgante e, nas mãos de um bom escritor, daria um romance de primeira.

Zé Sobrinho, em sua fase adulta, viveu para o Partido Comunista. Quando a União Soviética foi extinta e, em seguida, o PCB mudou de nome (para PPS), o seu mundo quase ruiu. Acabou filiando-se ao Partido Comunista do Brasil (PC do B). O sonho de Zé Sobrinho: “Ele acreditava que o socialismo nasceria de novo na União Soviética”, diz Ana Francisco de Carvalho, a Sinhana, sua irmã.

Sobre sua vida afetiva sabe-se pouco. Era um homem discreto. Sinhana contou ao Jornal Opção que ele amou Maria Tavares, com quem conviveu pelo menos durante 12 anos. “Ela herdou uma pensão”, conta Sinhana. “A família não colocou qualquer obstáculo. Ela o fez feliz.” Os dois não moravam juntos. Diferentemente de alguns comunistas, que amam a Humanidade, mas não os indivíduos isoladamente, Zé Sobrinho amava cada um de seus amigos e companheiros. Morreu comunista, como queria, mas jamais deixou de ser humanista em tempo integral. Não apreciava, por exemplo, fazer o mal como “meio” para chegar a algum “fim”, supostamente positivo. Ao estilo de Norberto Bobbio, o filósofo italiano, sabia que os meios podem contaminar ou corromper os fins.

O padre (sem culpa) que tinha quatro concubinas

À parte o exame dos fatos históricos “relevantes”, Zé Sobrinho conta “pequenas” histórias interessantes em “Vivências no Agreste”. A do escravo Mané Jirau é, talvez, a melhor. Ao relatá-la, Zé Sobrinho indica que, se quisesse, poderia ter se tornado um prosador de qualidade.

O relato de Zé Sobrinho: “Um de nossos antepassados barbudos (da família Fernandes), que possuía muitos escravos e adorava cavalos, tinha um cavalo de estimação de nome Alabama e destinara um escravo para zelar por ele. Uma noite, altas horas, o velho levantou, foi até a estrebaria e não encontrou o cavalo. Dirigiu-se à senzala e também não encontrou Mané Jirau — o negro encarregado de zelar pelo cavalo. Indignado, saiu caminhando à procura do escravo, ruminando ódio pelos caminhos da noite. À distância, escuta o tropel do cavalo, equitando em marcha alta no caminho estreito. Manoel Jirau estava contente, montado no melhor cavalo, arreado com o melhor socadinho, polaina e espora de prata. Acima de tudo, tinha passado um pedaço da noite com Miquilina, negra de seios duros e coxas roliças. Sem atinar que podia encontrar àquela hora o velho amo, brada em voz alta e em tom de quem manda: ‘Arreda pra lá. Deixa Alabama passar’. O velho ficou fulo de ódio. Mal amanheceu o dia, resolveu aplicar um corretivo em Mané Jirau. Amarrou o negro no pelourinho quase pendurado, deixando só as pontas dos pés firmes em terra. Munido de um rebenque, repetia, depois de cada chicotada: ‘Arreda pra lá. Deixa Alabama passá’”.

A história do juiz José Cortez de Lucena é exemplar. Ele escreveu na cadeia de Uruaçu: “Brasileiro! O lema é fechar cadeias e abrir escolas. Nesta cidade, numa cadeia pública, funciona uma escola primária”.

O padre Daniel é um personagem da realidade, mas parece ficção. Em cada paróquia, ele tinha uma concubina (eram quatro ao todo). A um bispo, que tentava levá-lo para o caminho “certo”, Daniel disse: “O celibato pode ser até muito bom para o clero francês ou espanhol. Mas para o nosso clero brasileiro sertanejo, goiano, não. O próprio Santo Agostinho diz que o melhor é não atentar contra a natureza”.

O bispo irritou-se. Leitor de Santo Agostinho, exigiu: de qual livro o padre Daniel havia “arrancado” aquela heresia? “Tenho-as anotadas (as passagens) em algum lugar”, replicou o padre teimoso. Ele ainda acrescentou: “Os padres celibatários perdem a percepção e a sensibilidade. Padre algum pode remir pecados sem haver ele próprio caído em tentação. A alma não deve ser humilhada por jejuns sexuais. Deve ser quebrantada pelo pecado do sexo, e voltar a um estado de graça”. Bela teoria, não? Santo Agostinho também não era, pelo menos até certo período, nada santo em assuntos sexuais.

O resistente Daniel, um precursor de Leonardo Boff, alfabetizou-se aos 26 anos. Com 32 anos, tornou-se padre. Cair em tentação não era um sacrilégio, e sim gesto de humanidade — acreditava, talvez com razão.

Zé Sobrinho era um grande contador de histórias. Pena que, com aquele seu sorriso maroto, gostoso, não tenha escrito outros livros. As histórias miúdas de “Vivências no Agreste” revelam um prosador de mão cheia e a grandeza do indivíduo.

O revolucionário merece uma biografia

Sabe-se que Zé Sobrinho foi fonte para outros autores — até para o escritor Carmo Bernardes (que sabia tudo sobre a natureza). A historiadora e escritora Janaína Amado (foi professora da Universidade Federal de Goiás, UFG, e da Universidade de Brasília, UnB), que planejou escrever uma história da Revolta de Trombas, o consultava com frequência. Jornalistas, quando tinham dúvidas sobre a história recente de Goiás, jamais deixavam de consultá-lo.

Sobretudo, conviver com Zé Sobrinho era um prazer. Era um agregador de pessoas bem-intencionadas. Por seu intermédio, muitos deixaram de “aceitar” que comunistas comiam criancinhas.

Ele, na verdade, era tremendamente solidário e ajudava todos os que o procuravam. Era tão comunista quanto franciscano. Merece uma biografia. Os historiadores Ademir Luiz (UEG) e Nasr Chaul (UFG) e o cientista político Pedro Célio Alves Borges (UFG) têm gabarito para fazê-la. Ou então deveriam indicar a história para algum mestrando ou doutorando da Universidade Federal de Goiás, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás ou da Universidade Estadual de Goiás.

Por intermédio do homem Zé Sobrinho, uma vida dedicada à solidariedade e à revolução, o pesquisador poderá contar a história da esquerda goiana. E, daí, da sociedade de Goiás por um longo período. 

Livro organizado por Itaney Campos

O livro de Zé Sobrinho foi organizado pelo desembargador e escritor Itaney Campos. O desenho da capa é de Zecesar. O prefácio é do poeta Aidenor Aires.