Doutora em História pela USP analisa a trajetória da família Caiado e diz que, na história de Goiás, as mudanças são mais epidérmicas do que reais

Lena Castello Branco, doutora pela USP, diz que a história dos Caiado precisa ser mais nuançada | Foto: reprodução

Ademir Luiz da Silva e Eliézer Cardoso de Oliveira
Especial para o Jornal Opção

Todas famílias possuem suas histórias, mas pouquíssimas têm o privilégio de serem estudadas por uma historiadora como Lena Castello Branco Ferreira de Freitas, uma das mais destacadas intelectuais que atuam em Goiás. Autora de livros como “Saúde e Doença em Goiás”, “Arraial e Coronel” e do volume de contos “Novilha de Raça”, Lena Castello Branco produziu um amplo estudo sobre a família Caiado na obra em dois volumes “Poder e Paixão — A Saga dos Caiado”, no qual problematiza e coloca em perspectiva a trajetória do controverso clã que dominou a política goiana por décadas. Com a eleição do senador Ronaldo Caiado para governador no pleito de 2018, a doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP) e professora aposentada da Universidade Federal de Goiás (UFG) Lena Castello Branco é a pessoa mais indicada para analisar o significado dessa vitória nas urnas. É o tema principal desta entrevista, na qual a historiadora fala sobre sua atividade de cronista, preconceito na universidade e a catástrofe do Museu Nacional.

O que significa historicamente o retorno de um Caiado ao cargo de governador de Goiás?
A eleição de um Caiado para governador de Goiás representa a permanência de um grupo familiar, que se tem mantido na política estadual e nacional desde a segunda metade do século 19. Com exceção do consulado de Vargas-Ludovico (1930-1945) — quando foi relegada no ostracismo —a família Caiado esteve no primeiro plano da política em Goiás desde o patriarca Antônio José Caiado, seguindo-se seu filho Torquato, o neto Tóto Caiado, bisnetos e agora o trineto, Ronaldo Caiado. Essa presença ininterrupta não é fato isolado no país: os Andrada remontam aos irmãos José Bonifácio e Antônio Carlos, proeminentes no Império. E continuam na política em Minas Gerais — assim como os Melo Franco e os Maciel; os Cavalcanti e os Arraes, em Pernambuco; os Collor de Mello e os Calheiros, em Alagoas; os Cunha Lima e os Pessoa, na Paraíba; os Luz e os Bornhausen, em Santa Catarina; os Portela e os Paranaguá, no Piauí. Em Goiás temos os Alves de Castro, os Fleury, os Bueno, os Almeida, os Velasco, os Vilela. Nos Estados Unidos, paradigma da democracia liberal, os Roosevelt, os Bush, os Kennedy integram o cenário eleitoral por décadas. Será um mal? Talvez não, se levarmos em conta a complexidade da política, os rituais e laços que a vinculam à comunidade, o compromisso que se estabelece entre o eleitorado, seus representantes e o bem comum. Embora abonadas e economicamente poderosas, essas famílias não estão entre as mais ricas do Brasil, entre as quais se destacam banqueiros e empresários (comunicações e bebidas).

No aspecto familiar, qual o significado dessa vitória para a família Caiado?
Depois de afastados do poder pela força das armas (1930), os Caiado foram duramente relegados à condição de “carcomidos” e “decaídos”, assim como outros políticos em diferentes Estados. O ex-senador Antônio (Totó) Caiado foi levado preso (de trem) para o Rio de Janeiro, onde permaneceu detido “sob palavra” durante 17 meses. Retornou à Cidade de Goiás em abril de 1932, mas continuou sob vigilância, a despeito de não ser condenado em qualquer instância revolucionária. De outra parte, dificuldades se antepunham ao exercício de profissões liberais, pelo que os Caiado voltaram às lides agropastoris, como meio de sobrevivência. No interregno liberal de 1945 a 1964, uma nova geração da família projetou-se com a eleição para o Legislativo estadual e federal, com forte atuação no processo de mudança da capital federal para o Planalto Central — sendo o deputado federal Emival Caiado, líder do Bloco Parlamentar Mudancista no Congresso, autor da lei (que leva seu nome) na qual é fixada a data da inauguração de Brasília. Durante o regime militar e de acordo com as regras vigentes, o engenheiro Leonino Caiado foi eleito governador de Goiás (1971-1975) pela Assembleia Legislativa. Nos dias de hoje e em contexto histórico diverso, a eleição de Ronaldo Caiado dá-se pelo voto direto de expressiva maioria do eleitorado goiano — o que tem o sabor de uma redenção. De algum modo, é o perfil de líder rural que aproxima o novo governador de Goiás do seu eleitorado, com o qual se identifica pelos valores que perfilham juntos.

“Emival Caiado, como senador, foi importante para a instalação
de Brasília no território goiano” | Foto: arquivo

Parte considerável da historiografia goiana associa a atuação política da família Caiado a uma posição vinculada ao autoritarismo. Inclusive, após o ostracismo político depois da Revolução de 1930, Leonino Caiado assumiu o governo durante o regime militar. Ronaldo Caiado foi eleito com uma votação considerável, numa época de críticas ferrenhas às instituições democráticas. Como estudiosa da família, há alguma coerência nesta associação com os Caiado ao imaginário de força, virilidade e autoritarismo?
Ainda que o protagonismo político dos Caiado remonte à segunda metade do século 19, o período denominado “caiadismo” estendeu-se por 18 anos (1912-1930). Nesse período, o Partido Democrata foi hegemônico em Goiás; sua Comissão Executiva era presidida pelo coronel reformado Eugênio Jardim, falecido em 1926 e sucedido pelo bacharel em direito Antônio (Totó) Ramos Caiado. Na Comissão Executiva havia um único parente de Totó — exatamente Eugênio Jardim, seu cunhado. Os demais integrantes provinham de outros clãs familiares, que se interligavam a partir de ideias e interesses comuns. Os Caiado permaneceram no ostracismo político de 1930 a 1945, ainda que uma dissidência familiar perfilhasse ao lado do interventor Pedro Ludovico Teixeira. Com o fim do Estado Novo, os Caiado voltaram à arena política, elegendo deputados estaduais e federais. Durante o regime dos militares, Leonino Caiado foi eleito governador; em tempos difíceis, exerceu um governo competente e equilibrado, destacando-se pela ênfase dada à agropecuária.

“Leonino Caiado, governador competente e equilibrado, fortaleceu a agropecuária goiana” | Foto: arquivo

Quanto à imagem de autoritarismo?
A imagem de autoritarismo da família projetou-se com a campanha de demonização dos Caiado, deflagrada por seus adversários ainda na Velha República, em jornais do Rio de Janeiro e replicada nos periódicos locais. Esse perfil negativo consolidou-se durante o longo consulado de Vargas e Ludovico, quando o Poder Legislativo permaneceu desativado e a imprensa estava sob censura. Referida imagem não me parece inteiramente destituída de fundamento, até porque a sociedade goiana era (ainda é) marcada por atributos “de força, virilidade e autoritarismo”, ancorados no agrarismo predominante na fronteira em deslocamento, rumo ao Oeste e ao Norte do país. Ronaldo Caiado é médico ortopedista, formado no Rio de Janeiro, com mestrado em Ortopedia e Traumatologia. Especializou-se em cirurgia da coluna na França, onde foi assistente estrangeiro na Universidade de Paris. Creio é o primeiro governador de Goiás com titulação desse nível e vivência no exterior. Seguindo antiga tradição familiar, ingressou na política, elegendo-se sucessivamente para a Câmara dos Deputados e o Senado. Vindo a ser um dos parlamentares mais bem avaliados do Congresso. Os anos passados fora de Goiás não o dissociaram da terra natal. Sendo proprietário rural e homem do campo, Ronaldo Caiado permanece fiel às suas raízes e aos valores dominantes no meio rural, com os quais se identifica. Dentre os quais a honestidade pessoal e a crença nos valores da verdade, da honra e da coragem. Sua eleição em pleito direto para governador deve ter, para os Caiado, o sabor de uma redenção.

Ronaldo Caiado tornou-se conhecido nacionalmente nas eleições presidenciais de 1989 e sempre foi um parlamentar atuante, com uma base fiel de eleitores. Não havia logrado êxito em ocupar o cargo de governador até 2018. Sua participação ativa no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff o recolocou em evidência no país. A sra. avalia que os embates do impedimento o gabaritaram para o governo?
Ronaldo Caiado já era conhecido fora das fronteiras de Goiás por sua atuação no Congresso, sempre associado à bancada ruralista, que parte da mídia define como formada por parlamentares bisonhos, ambiciosos, truculentos quando não desumanos. Não resta dúvida que o posicionamento de Caiado (favorável ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff) conferiu-lhe maior visibilidade. Não acredito, entretanto, que “os embates do impeachment” o tenham gabaritado para exercer o governo de Goiás — o que ele deve, sem dúvida, à sua formação profissional em instituições de alto nível, no Brasil e no exterior. E, sobretudo, à experiência política, na Câmara dos Deputados e no Senado, sem envolvimento com ideias ou fatos desabonadores de sua conduta pessoal.

Ronaldo Caiado | Foto: arquivo

Caiado está entre os apoiadores de Jair Bolsonaro, eleito presidente da República. Como postula que será constituída a relação entre a Presidência e o governo de Goiás?
Não será difícil a aproximação entre os governos de Caiado e Bolsonaro. Eles foram contemporâneos na Câmara dos Depu­ta­dos, mas desconheço se mantinham relações amistosas. Os governos federal e estadual deverão aproximar-se. Até porque estão ideologicamente afinados e a situação de um e de outro parece similar, em termos de dificuldades econômico-financeiras.

Fora Totó Caiado e Pedro Ludovico, os dois maiores nomes da história da política goiana são Iris Rezende e Marconi Perillo. Iris tem sido bastante criticado por sua atual administração em Goiânia. Marconi enfrenta problemas na justiça e ficou em quinto lugar na eleição para o Senado. A senhora admire que há um vácuo político que pode ser preenchido por Ronaldo Caiado?
Pela personalidade, pela compleição física e até pela voz, Ronaldo Caiado parece destinado a ocupar espaços — sobretudo na política, onde não há vazios. No tsunami eleitoral que assolou o Brasil, o Estado de Goiás viu-se engolfado de forma irreversível, conforme o demonstram os resultados do último pleito. De outra parte, cresce a importância econômica e política dos Estados centrais, na medida em que o eixo econômico se desloca e o interior do país se revela. Talvez seja a hora de se projetarem no plano nacional lideranças oriundas desse novo mundo em ebulição.

A imagem pública de Caiado sempre foi relacionada basicamente com sua formação médica, raízes rurais e atuação como parlamentar da bancada ruralista. Recentemente, flertou com questões ligadas à segurança pública. Como será o seu comportamento diante de questões complexas como a educação básica e fundamental, o ensino universitário, a cultura e os problemas sociais — temas até então fora de seu discurso?
Caiado viveu em grandes centros da cultura nacional e mundial, como Rio de Janeiro e Paris. Como estudante e pós-graduando, teve oportunidade de frequentar as melhores bibliotecas, os grandes museus e teatros, usufruindo da vida cultural dessas metrópoles. Em pronunciamentos e entrevistas, tem-se mostrado preocupado em melhorar o nível da educação em Goiás. Um dado interessante deve ser lembrado: os Caiado foram e são acusados de serem avessos a preocupações educacionais e culturais. Não é o que a história registra no período conhecido como do caiadismo. No governo do desembargador Alves de Castro, cunhado de Totó Caiado, inaugurou-se o primeiro grupo escolar do Estado, no bojo de ampla reforma educacional; as matrículas escolares cresceram exponencialmente. No governo de Brasil Caiado, foi instalado o primeiro jardim de infância e construída a sede própria da Escola Normal, de formação de professores. O governo de Alfredo Lopes de Morais (último do Partido Democrata) celebrou convênio para a vinda da Missão Pedagógica Paulista, com vistas a modernizar e aperfeiçoar a instrução pública em Goiás, que foi objeto de nova regulamentação. A Faculdade de Farmácia e Odontologia de Goiás, fundada por um grupo de profissionais da saúde, teve como primeiro diretor o médico Brasil Caiado.

“Totó Caiado foi demonizado, mas era moderno, tanto que uma filha, Consuelo, foi líder feminista em Goiás” | Imagem: arquivo

Qual a ligação das mulheres da família Caiado com a cultura?
As mulheres da família Caiado estão entre as primeiras a formar-se em curso superior nessa área: Consuelo Caiado, em farmácia; Enery Caiado, em odontologia. Há registro de pianistas, poetisas, pintoras, cronistas e colaboradoras de jornais femininos, tais como “A Rosa” e “O Lar”, editados na Cidade de Goiás. A mulher de Brasil Caiado, Noêmia Rodrigues, era formada em piano pelo Conservatório de Música de São Paulo. Sua filha, Brasilete, pianista diplomada pelo Conservatório de Música do Rio de Janeiro, foi professora e fundadora da Faculdade de Filosofia Cora Coralina e liderou o processo de tombamento da inscrição da Cidade de Goiás na lista do Patrimônio Mundial da Unesco. Nas searas do feminismo, Consuelo Caiado (filha mais velha de Totó Caiado) articulou-se com Bertha Lutz (primeira deputada federal brasileira) para a fundação da Liga para o Progresso Feminino em Goiás; foi diretora do tradicional Gabinete Literário Goiano onde realizou gestão modernizadora. Leão Caiado e Ilydia Perilo Caiado cultivaram as letras e deixaram descendência ilustre, comprometida com a causa da cultura. Um dos seus filhos, Leolídio Caiado, escritor e membro da Academia Goiana de Letras, foi precursor do ambientalismo, destacando-se na preservação do Rio Araguaia. Tendo em vista o background familiar, tenho esperança de que Caiado venha a mudar, para melhor, a política educacional e cultural de Goiás.

“Leolídio Caiado inovou como um dos primeiros ambientalista de Goiás. E também era escritor” | Foto: arquivo

A historiografia sobre a República Velha reforçou o laço perverso do coronelismo, destacando a violência gratuita e o mandonismo político. No caso de Goiás, o conto “A Enxada”, de Bernardo Élis, tornou-se o estereótipo do coronel. A sra., no livro “Poder e Paixão”, mostra um aspecto mais ameno do coronelismo. É possível afirmar que o coronel tinha um papel civilizador em regiões agrestes, como o sertão goiano nos tempos da República Velha?
O coronelismo é fenômeno social complexo. Além do coronel proprietário rural existiu (existe?) o coronel bacharel, o coronel padre, o coronel comerciante. No contexto analisado, em regiões isoladas e distantes, o coronelismo vicejou no vácuo do poder público, tendo como distintivos o autoritarismo e o patriarcalismo. Onde não se fazia sentir a presença do Estado, o coronel se impunha como sr. e árbitro, concentrando também atribuições executivas e judiciárias, além de preeminência econômica e cultural. Não diria que “o coronel possuía um papel civilizador em regiões agrestes” — se entendermos civilização como algo sedimentado e refinado. Longe de cidades e vilas, o coronel reunia atributos que o colocavam como autoridade maior a ser respeitada. Em contrapartida, a ele cabia traçar e impor limites que permitissem a ordeira convivência. Nos depoimentos e documentos da família Caiado, transparece também certa responsabilidade social do fazendeiro/proprietário rural para com peões e agregados, em momentos de doença ou de calamidade. A recíproca é verdadeira. A “violência gratuita” não se configurava como regra geral. “O Tronco” é obra de ficção, inspirada em fatos reais, sendo que o autor, Bernardo Élis, consultou relatórios transcritos nos Anais da Câmara dos Deputados. O massacre realmente aconteceu, mas foi episódio único, em suas dimensões superlativas de desumanidade e terror.

A historiografia do século 20, nas versões marxista e da Escola dos Annales, valorizou o estudo das estruturas sociais e econômicas, em detrimento da atuação individual. Diferentemente dessas posições, em suas obras mais conhecidas, como “Arraial e Coronel” (1978) e “Poder e Paixão” (2009), a sra. destacou a atuação dos indivíduos da elite política e econômica. Quais suas motivações pessoais para o estudo dessas temáticas de viés mais biográfico?
Nas décadas de 1970 e 1980 quando escrevi “Arraial e Coronel — Dois Estudos de História Social” e, mais tarde, “Poder e Paixão — A Saga dos Caiado” — o gênero biográfico emergia de relativo ostracismo e voltava a ser cultivado, sobretudo nos países europeus. Grandes nomes da literatura — Stefan Zweig, André Gide, André Maurois, Lytton Strachey e Antonia Fraser — dedicaram-se a escrever biografias e recuperar “o drama da vida”. Com o advento da história cultural, o objeto da biografia passou a ser capturar “a unidade pelo singular”. Nas palavras de Mary del Priore, o indivíduo e suas ações são vistos “em sua relação com o ambiente social e psicológico, sua educação e experiência profissional”, com o que se abandona “a biografia positivista de antanho”. Afirmo em “Poder e Paixão” que tentei elaborar “uma renovada história regional, refugir ao determinismo e ao economicismo predominantes em boa parte da historiografia goiana”, pelo que “perfilho o ressurgimento da narrativa, com a valorização do interesse pelos eventos”. “A história dos acontecimentos é a superfície da História; tenho-os, todavia, como espelhos que refletem as estruturas e, ao mesmo tempo, modificam-nas.”

A mim mesma, aos entrevistadores e leitores reitero a pergunta: poderá este livro ser visto como uma coletânea de biografias? E respondo: “Talvez, mas não exclusivamente, até porque ele deixa claro que há um nexo maior na longa duração de determinadas características da sociedade goiana: a violência estrutural imanente, a predominância de grupos aparentados no poder, a dicotomia irreconciliável entre oposição e situação, com a consequente purgação dos derrotados, em momentos de aparente ruptura. E aí está a permanência mais expressiva: na História de Goiás, as mudanças são mais epidérmicas do que reais, ao menos até a década de 1960, data limite do estudo”. Permito-me lembrar Lucien Febvre quando afirma que a obra histórica “é aquela que, além do local e nacional, visa o humano”. Espero ter alcançado essa dimensão.

A sra. sofreu patrulha ideológica no ambiente universitário?
Não diria que sofri patrulha ideológica, mas certa discriminação. Não da parte de alunos: com estes sempre tive excelente relacionamento, inclusive quando fui diretora do ICHL, em tempos temerários (1969-1973). Quanto aos colegas docentes, conheci, sim, a face desagradável da discriminação e hostilidade de uma minoria malformada e mal-educada, sem compromissos com os verdadeiros objetivos da Universidade, quais sejam o ensino e a pesquisa sem comprometimento ideológico. Vivi alguns momentos trágicos na Diretoria do ICHL — uma aluna foi morta à noite, à porta desse Instituto, com um tiro vindo do escuro; assassinato nunca solucionado, mas que a voz corrente atribuía ao fato de ser “arquivo vivo” de um grupo esquerdista, que a teria eliminado. Há outros fatos a contar, mas sinto-me desconfortável ao lembrá-los.

Além de historiadora, a sra. é cronista. Como define esse aspecto de sua produção?
Lembrando Sandra Pesavento: a obra literária é um “tipo especial de fonte para o historiador — e o historiador um tipo especial de leitor da obra literária” Ou, invocando Adorno: a literatura é historiografia inconsciente. No exercício de seu ofício, o historiador elabora uma narrativa interpretativa do passado, com vistas à construção de versão coerente e aceitável do que teria acontecido em outro tempo. Tanto o romance, como o conto, a poesia, o teatro e, sobretudo, a crônica poderão acrescentar algo mais ao já conhecido contexto histórico; pelo que o historiador vislumbrará na literatura subsídios que não encontra em outras fontes. Como registro de sensibilidades que são contemporâneas do narrador, a literatura permite conhecê-las e resgatá-las por meio do discurso do prosador ou do poeta. Na obra literária, o historiador procura a marca do tempo em que foi escrita; além do contexto e do fato, busca a humanidade da época, suas paixões e vibrações, bem como tenta recapturar o sistema de valores, os conceitos e as ideias que pautam a vida das personagens e da sociedade na qual se inserem. Relativamente à crônica, o que seria da nossa história colonial sem Antonil, Fernão Cardim, Gabriel Soares de Souza e Jean de Lery? O que saberíamos do Rio de Janeiro na virada do século 19 e início do século 20, se não tivéssemos Machado de Assis e João do Rio? O que entenderemos da sociedade brasileira se não lermos Nelson Rodrigues, Drummond, Rubem Braga, o atualíssimo Luis Fernando Verissimo e a irreverência de José Simão? Ao escrever crônicas (desde 1952l, estarei eu colaborando — modestamente, embora — com os historiadores do futuro, quando se debruçarem sobre Goiás e Goiânia dessas atribuladas últimas décadas?

Na ocasião do incêndio do Museu Nacional, a sra. publicou um texto tratando de suas relações com a instituição. É possível mensurar a amplitude do prejuízo? Tal tragédia vai servir pelo menos para mudar a perspectiva do brasileiro frente a importância da preservação do patrimônio histórico?
Há que se reconhecer a necessidade de mudanças drásticas na conceituação e na práxis da política cultural vigente no país. Em qualquer sistema cultural sua parte mais nobre — e por consequência prioritária — diz respeito a instituições que colocam ao alcance de cidadãos o que de mais valioso produziu e continua a produzir o espírito humano. Estamos falando de museus, bibliotecas, teatros e arquivos públicos, postos a serviço da sociedade. Onde pobres e ricos, homens, mulheres e crianças de qualquer etnia, crença ou nível social possam reconhecer-se no patrimônio comum e na identidade compartilhada. Recursos vultosos vêm sendo repassados sob a forma de renúncia fiscal de empresas a “projetos culturais”, somando milhões de reais que subsidiam shows, gravações, filmes e espetáculos protagonizados por famosos, cujo patrocínio (milionário) se repete, ano após ano. Já os museus, bibliotecas, arquivos e teatros para a apresentação de orquestras e espetáculos de maior complexidade continuam à míngua de recursos. Como aconteceu em 2018, com o pranteado Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro — da qual recebeu recursos irrisórios. É preciso rever toda a política cultural, que é replicada (com os mesmo erros) nos Estados e municípios. Verbas orçamentárias condignas, novos conceitos e novas práticas de gestão precisam aproximar a cultura e a educação, inclusive com a destinação de recursos às instituições que formam a espinha dorsal da nossa cultura e da nossa identidade. Para que possam, de fato, integrar-se e servir à sociedade brasileira.

Ademir Luiz da Silva e Eliézer Cardoso de Oliveira são professores da Universidade Estadual de Goiás (UEG).